quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Som ao Redor



Crônica de um Brasil de ontem e hoje

Tarefa um tanto ingrata a de falar sobre O Som ao Redor após tantos já terem falado e com tamanha presença do filme no boca a boca da internet. O Facebook da produção, por exemplo, é exemplar em fazer e manter o seu buzz), assim como o próprio perfil do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. Além de cineasta com farta e premiada carreira em curtas, Kleber foi crítico de cinema por mais de dez anos, tendo cobrido diversos festivais internacionais, sobretudo Cannes, o que lhe rendeu seu primeiro longa, o documentário Crítico (2008), em que propõe uma série de reflexões em torno da interessante relação entre dois universos tão próximos e, não raramente, tão díspares: o dos cineastas e o da crítica de cinema.

Tendo se despedido da crítica (com raras exceções) para se dedicar às filmagens de seu primeiro longa ficção, Kleber é todo cineasta em O Som ao Redor. Desde o Festival de Rotterdam do ano passado, o longa acumula prêmios em mostras e festivais, além de elogios da crítica internacional. Chegou a figurar entre os melhores do ano pelo New York Times. Kleber pegou muito avião, sofreu muito jet lag.

No Brasil, foi lançado em Gramado e exibido em mostras e festivais nacionais. Estreou oficialmente no país este ano, em janeiro, circulando pelo enorme Brasil com modestas nove cópias 35mm e algumas projeções digitais, fazendo filas em cada uma das exibições. É distribuído pela Vitrine Filmes, pequena distribuidora que, com muito esmero e dedicação, tem feito um trabalho notável pelo cinema brasileiro. Será dela a distribuição de Doméstica, novo documentário do também pernambucano Gabriel Mascaro (ler crítica aqui).

Tive a oportunidade de assistir a O Som ao Redor numa de suas primeiras exibições em território brasileiro, no Festival de Brasília, onde se viu ali um filme tão inspirado e grande que a tela preparada no Teatro Nacional ficou pequena para ele - literalmente, pois o filme é filmado em scope, a imagem vazando dos lados naquela ocasião. Cerca de um mês depois, pude rever no Cinesesc de São Paulo, durante a Mostra, num digital perfeito, imagem enorme, e o som, tão importante e onipresente no filme, cristalino.

Para quem acompanhou a carreira de Kleber como crítico e curtametragista, ele encontra no diâmetro de um longa o espaço para sua visão de mundo, reforçando o seu apreço por um cinema autoral. É muito interessante observar a construção desse olhar nos curta-metragens, vistos agora como uma bela oficina para O Som ao Redor.

Com maior ou menor sutileza, elementos de cada um deles, e de seu autor, são elaborados no longa: a sensação de paranoia e aprisionamento (Enjaulado, 1997); o flerte com o fantástico (A Menina do Algodão, 2002; Vinil Verde, 2004), uma fonte de inspiração ainda incomum no Brasil e que aqui deve muito a nomes como John Carpenter; a experiência estrangeira e o distanciamento geográfico de relações amorosas (Noite de Sexta, Manhã de Sábado, 2006); a intimidade da classe média, seu cotidiano, seus comportamentos observados (Eletrodoméstica, 2005, que empresta sua cena final, agora num contexto maior); o lamento pelo fim de cinemas antigos, a nostalgia do que é projetar cinema em salas de rua, para tantos (Homem de Projeção, 1992); e, enfim, sua conflituosa relação com Recife, onde nasceu e vive (Recife Frio, 2009).

Talvez Kleber tenha feito, de fato, um filme inicialmente muito pessoal. É filmado em Setúbal, seu bairro. Mas isso é algo que, sabemos, foge ao controle. Torna-se irrelevante as maiores ou menores ambições de um longa já muito rodado em seu primeiro ano de vida, sugerindo ainda muito sangue pra rolar, muito a ser comentado e comparado. Em matéria recente na Folha, chegaram a trazer Glauber Rocha e Cinema Novo ao debate. Tudo bem. Só que, mais uma vez, tendo a concordar com o Inácio Araújo: pra que gritar o Glauber e o Cinema Novo em tudo que se destaca à margem do comercial no cinema brasileiro, assim, tão forçosamente? Se até a noção de Retomada já foi superada (ou não?), talvez seja a hora de fazer o mesmo se desprender (veja bem: não falo em ignorar, jamais) desse fantasma do Cinema Novo. Particularmente, não vejo nada de Glauber aqui. A bem da verdade, enxergo muito antes Chabrol, com sua verve criminal que se revela por trás das cortinas nos fins dos filmes e, em parte, também no estilo de filmar (nouvelle vague em geral), no seu tato para a crônica burguesa, do que qualquer coisa do Glauber.

Nesse tom de crônica, aliás, Kleber versa com perfeição. Há uma série de personagens no bairro de Setúbal, coleção de pequenas tramas que se amarram, um multiplot bem seu (um pouco como Robert Altman, ok, mas talvez isso também seja um pensamento meio forçado). Alguns problemas e incômodos brotam em seus núcleos: o irritante latido do cachorro de um vizinho; o som do vendedor de CDs piratas; o roubo do som de um carro, enfim... acontecimentos que logo evidenciam uma realidade repleta de som e ruído, de grades e muros, de prédios e vistas, de ruas e coberturas, de altos e baixos e, importantíssimo, de demarcações de espaços e lugares. O filme se fecha brilhantemente nesse aspecto.

Imerso em sonoridade, temos aqui uma obra quase musical. O cuidado com o som impressiona, todo calculado em sua enervante presença. Kleber adota uma espécie de "não atuação" com os atores, um distanciamento de maiores dramatizações e, nos piores casos do nosso cinema, teatralizações. O elenco fala baixo, em tom natural, uma calma que transparece na mise-en-scène e permite que a atmosfera do filme se transforme em algo sólido e robusto, os momentos mais fantásticos e fantasmagóricos (a cena da cachoeira, por ex.) fortalecidos por esse clima onipresente. Aqui, o som ao redor importa tão ou mais que o som das pessoas, esmagadas por ruídos e medos latentes, enjauladas por portões e barras de ferro domésticas, oprimidas por uma arrogante arquitetura metropolitana (o cinema pernambucano vem se mostrando realmente mordido com isso, vide Um Lugar ao Sol, de Mascaro, e Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão).

Kleber é um raro caso de cineasta brasileiro que vê no som um elemento tão importante para o cinema quanto a imagem. Numa cena incrível, o som vira a matéria-prima de um pesadelo urbano: o receio do invasor, um tipo de personagem "oculto" que ganha o corpo de um garoto negro, visto com suspeita por seguranças independentes e com estranheza pela própria câmera, no topo de árvores ou dentro das casas. Partindo de farelos, e com bastante discrição, O Som ao Redor cresce dentro de si, desferindo olhares para um passado ainda tão presente no Brasil. Há ecos de escravidão (esse garoto mal tem rosto, é uma presença, e, numa cena específica, praticamente um espírito) e, sobretudo, de relações e disputas de poder. Não por acaso, a introdução do filme acena para Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho.

 Essas relações de poder não fogem nem mesmo do que seria o mais próximo de um protagonista: João (Gustavo Jahn), rapaz que passou sete anos na Alemanha e trabalha no Recife como vendedor de imóveis. No ritmo da trama, descobrimos ser sobrinho de um senhor de engenho, tanto do campo como da cidade, senhor respeitado no bairro, o Seu Francisco (W.J. Solha). Sensato e aparentemente consciente de seu lugar privilegiado na sociedade, João seria um pouco como a voz sóbria do longa. Mas João tem empregados, e, por mais gentil que seja com eles, sabe, mais uma vez, de seu lugar nessa relação. Em algumas cenas, O Som ao Redor se comporta como primo distante do documentário Doméstica, sendo capaz de comentar sobre o espectador que o assiste.

Na cena em que João encontra o filho de uma empregada (e também seu empregado? Não lembro ao certo) cochilando em seu sofá, como o público reage ao "flagra"? E na reunião de condomínio, cenário tipicamente brasileiro, movida com humor impecável e uma afiadíssima piada com a VEJA, em que os leitores classe-média-sofre da revista parecem ter ganhado seu retrato oficial? Muito bom, embora já se perceba uma tendência a encarar o filme como um discurso "de esquerda", no sentido de comprar/vender uma política, quando um de seus brilhos é justamente tentar se localizar em solo bem mais complexo que bipartidarismo. Está além, muito além.

Fora o scope, executando o longa numa proporção larga, o estilo de Kleber guia todo o nosso estranhamento. As manifestações pontuais de um "TUM!" sonoro, a precisão de um ou outro zoom, a atenção a detalhes do bairro... tudo isso sugere que algo a mais acontece. Que a sensação de insegurança é um estágio da violência, que existe um outro filme por trás disso tudo, de uma habilidade invejável ao lapidar noções de causa e consequência, e de como isso, na história de um país, nos coloca em nossos "devidos" lugares.

Que filme.

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