domingo, 26 de janeiro de 2014

Ninfomaníaca: Volume 1



Punhetagem

Antes de Ninfomaníaca de fato começar, o espectador será informado de que, embora autorizada por Lars von Trier, esta é uma edição censurada. Inicialmente dividido em dois volumes enxutos para a estreia nos cinemas, o filme terá sua versão completa lançada no Festival de Berlim, em fevereiro. Uma hora a mais de sexo, dizem, para que o público, que pensava e talvez pense ser uma coletânea de cenas pornográficas, possa, quem sabe, tentar compensar suas decepções nesse aspecto. Porque Ninfomaníaca, até o momento, não tem nada que valha alarde. A não ser que o espectador, que tem acesso a tudo hoje em dia, mesmo quando não quer, ainda se choque com um boquetezinho mais ou menos visível ali na tela.

De todo modo, temos aqui a obra mais marketeira de von Trier, cineasta que faz questão de ser ele próprio uma espécie de release de imprensa. "Provocador", "polêmico" e "instigante" são adjetivos que parecem acompanhá-lo feito uma bula. No caso de Ninfomaníaca, cuja divulgação sugere mais criatividade que o próprio primeiro filme em si (os grandes lábios do cartaz eram usados em portas de metrô na Europa, se abrindo a cada entrada e saída das estações), há um claro planejamento de que seja visto/vendido/comprado três vezes.

Por enquanto, o que se tem é somente um meio filme, e sem o menor esforço para concluir sua primeira parte (num longa que, como de hábito em von Trier, já é dividido em capítulos), tornando difícil qualquer tentativa de desenvolver um pensamento mais concreto em torno do que assistimos. Poderíamos lembrar, apenas a título de comparação, de Tarantino e seu Kill Bill (2003/2004), também dividido em dois volumes (e igualmente separado por capítulos internos), mas havia ali um fechamento redondo de sua primeira metade, com direito a cliffhanger novelístico e muito preciso, encerrado no corte seco, um fim. O Volume 1 de Ninfomaníaca desaparece num fade, indicando a conexão com um porvir.

Menos complicado que pensar num filme incompleto, porém, é observar o interesse de von Trier pela mulher e os enigmas que a cercam, nutrindo uma obsessão de certa forma obscura pelo feminino. Há, na obra deste autor, uma coleção de mulheres protagonistas em processo de esgotamento, estranhamente tentadas a cair dentro de uma espécie de fissura moral, o que acaba aprisionando-as em algum momento. Soa também como um percurso de aprendizado dos mais perversos (o melhor exemplo talvez seja Dogville, em que a Grace de Nicole Kidman aprende sobre aquele lugar, aquelas pessoas, sobre si mesma e, ironicamente, sentencia a pequena vila à desgraça), o que nos leva às contantes acusações de misoginia recebidas pelo diretor.

Em Ninfomaníaca, Joe (Charlotte Gainsbourg), largada num beco após provável espancamento, é encontrada e acolhida por Seligman (Stellan Skarsgard), falante senhor que tentará racionalizar, através de metáforas e alusões com pescaria, matemática, música e literatura, a bagunça que é aquela mulher tão íntima do acaso.

Essa relação é claramente psicologizada por meio da encenação de um divã "casual", Joe deitada numa cama, a contar suas aventuras sexuais (flashbacks que trazem Stacy Martin no papel de Joe, sendo dela as cenas mais "safadas") e os porquês de se considerar uma má pessoa, e Seligman numa cadeira, sendo ele o início de um fluxo de reflexões que, se não soam pseudos só de ouvir, envolvem Ninfomaníaca numa entediante jornada de obviedades cinematográficas.

No diálogo sem fim dessa sessão de psicanálise de história de pescador, por exemplo, boa parte da troca de falas parece montada para que Trier ostente seu conhecimento erudito. "Você tem um livro na cabeceira. Tem lido? - Relido, na verdade. - O que é? - Edgar Allan Poe"; "Legal seu aparelho de som. - É um toca fitas. - Tem alguma fita nele? - Sim. - O que é? - Bach"; algo assim, ou algum comentário a partir de Epicuro, gerando um pretensiosismo jogar-verde-pra-colher-maduro que não parece encontrar lugar na tela.

Até então, as pretensões de von Trier me pareciam pelo menos servir a certa criatividade de cinema, a um interesse no filmar e narrar. Em Anticristo (2009), além de os personagens serem movidos pelo pretexto (ainda que raso) da elaboração de uma tese acadêmica, tornando assim a erudição um elemento pertencente de toda a situação (e de uma ironia bem mais curiosa, por conta dos simbolismos religiosos), não é todo dia que se vê genitálias masculinas e femininas serem tratadas daquela maneira.

Em Ninfomaníaca, contudo, as contantes reflexões, acompanhadas por imagens redundantes, passam a impressão de apenas ilustrar um álbum de figurinhas metido a besta. Se há, por um lado, a procura pelo distanciamento do espectador ao inserir números, cálculos, gráficos e cenas documentais, há, também, um rápido cansaço dessa repetição que parece revelar um diretor que não tem muito a dizer (e por dizer também me refiro a filmar) desta vez. São vários os momentos em que Seligman ou Joe descrevem algo e von Trier vai lá colocar na tela a imagem do que é descrito. "Ele aguardava na porta, como um gato...", e temos a imagem de um gato; "...mas se movia como um leopardo", e, surpresa!, a imagem de um leopardo; não muito diferente daquelas reportagens esportivas, em que a voz em off anuncia que "o Goiás está voando baixo no Brasileirão" e é acompanhada pela imagem de uma garça dando o rasante num lago qualquer. Num filme de duas horas, isso logo vira um porre de previsibilidade.

Com exceção da cena em que Joe "lacrimeja" de maneira, digamos, um tanto distinta ao perder um ente querido (pois até a cena com Uma Thurman no papel da esposa traída me parece óbvia em seu humor), nada destas primeiras duas horas de Ninfomaníaca se atreve a ir além do esperado, por vezes beirando o patético, como quando von Trier exibe uma sequência de fotos de pintos. Para quem viu os recentes Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, e Um Estranho no Lago (2013), de Alain Guiraudie, filmes que lidam com o sexo e a sexualidade com tanto desprendimento (ok, talvez Kechiche nem tanto, mas ainda assim um belo filme de amor) e segurança do que mostrar, esse tipo de coisa soa como provocação infantil, nada mais.

Não há como negar, no entanto, o interesse pelo material. Sexo é a isca fácil, assim como prazer e desejo, seus elos imediatos. Mas não é sobre sexo, claro. Solidão, quem sabe?

Von Trier nos sugere, enfim, que a chave pode estar no personagem de Jerôme (Shia LaBeouf), rapaz ligado a uma memória e a algum traço do que poderia ser amor, ou algo próximo disso, espécie de charada que acaba soterrada diante de tanto bê-a-bá, overanálises, overexplicações e overdidatismos por todos os lados, o que, sem querer fazer um trocadilho, não evita a forte sensação de ser tudo uma mera punhetagem pau mole.

PS: por uma dessas felizes coincidências, o Cine Cultura exibiu na última semana o Sempre Bella [Belle Toujours, 2006), homenagem do grande Manoel de Oliveira a Bela da Tarde [Belle de Jour, 1967], de Buñuel, e que pode ser um antídoto para a bobagem que penso ser Ninfomaníaca. Filmes me parecem cultivar semelhanças, até porque Manoel é outro obcecado pela figura da mulher e pelas incertezas que acompanham este ser tão frequentemente encarado como impreciso, impreciso, ou, numa linguagem tão comum à literatura e ao cinema, misterioso. Mas com o velho cineasta português é aquela delicadeza e, melhor, aquela simplicidade que, na verdade, é apenas aparente. Sempre Bela tem 68 minutos, reflexões e confissões - sobre, sim, desejo, prazer, amor e sexualidade feminina - que surgem estimuladas não por um divã forçado, mas por um mero barman e uma sofisticação que se nota pelo filmar, pela atmosfera daquela gente que "vive" ali. Quando Husson, durante o concerto de uma orquestra, percebe a presença de Séverine na plateia do teatro, roubando por completo sua atenção, Oliveira chama um plano mais aproximado dos músicos, na tentativa de retomar o interesse do personagem de Michel Piccoli para a apresentação musical; é assim, na montagem, no domínio da linguagem do cinema, que em cinco minutos é possível compreender a existência de um enigma, de uma atração, de um abalo. Nada de quase seis horas lançadas em três edições diferentes, nada de análise psicanalítica "por acaso" e erudição mecanicamente ostentada, nada de questões e imagens óbvias. Manoel de Oliveira não precisa exibir nada do que conhece. Ele só precisa fazer um filme.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Vida Secreta de Walter Mitty (2013)

Ben Stiller e o kit enganação

Enquanto assiste a A Vida Secreta de Walter Mitty*, quinta investida de Ben Stiller na direção de um longa, o espectador pode considerar, por algum momento, revisar sua vida e se dedicar a outras prioridades. "Trabalhar menos, aproveitar mais a vida, ser feliz", essas coisas de autoajuda que, bem, dificilmente ajudam alguém (muito pelo contrário, aliás). E como todo filme que se esforça muito para mudar a vida de seu público, fracassa.

Aqui, Stiller interpreta o personagem do título, funcionário da revista ainda-impressa-mas-a-caminho-de-se-tornar-somente-online LIFE. Trabalha na equipe há anos e é acostumado com o cotidiano, vivendo vida não só tediosa como também entediante. Um cara cinza, ombros caídos, sem vida ("LIFE", sacaram?). Sua única via de escape é sonhar acordado, inventando versões alternativas para o que realmente gostaria de fazer em situações que, na verdade, nada faz.

Despertos ou não, sonhos são sempre materiais imagéticos de grande elasticidade. Por adentrarem em terreno onde tudo é possível, são cinematograficamente interessantes, sem limites de exploração. Stiller, no entanto, filma esse "vale tudo" como apenas um deck de cartas piadistas que, no fim das contas, querem dizer algo muito importante para as nossas vidas.

Mitty trabalha na seção de edição de fotos. A partir de um fotograma perdido, que deveria ser capa da última edição impressa da revista, caberá a ele a responsabilidade de cruzar o mundo a fim de encontrar item tão precioso.

Até alcançar seu objetivo, Mitty, auxiliado por interesse romântico (Kristen Wiig, uma zero à esquerda no filme), terá de descobrir o que são outras três fotos e segui-las. Três desafios, três pistas, descoberta de mundos novos, perigosos e aventureiros, quase como num conto infantil.

O problema é que Stiller, que pode ser um ótimo comediante mas não um ótimo diretor (sua tentativa de encarnar outros filmes como anedotas já soa como uma boba repetição), parece largar seu filme numa dúvida, o que seria curioso caso gerasse alguma estranheza, mas é simplesmente apático e um beco sem saída para algo tão fabricado: se as grandes viagens e experiências de Mitty são apenas parte de sua imaginação, eis um longa que não sai do lugar; por outro lado, se tudo acontece de fato, não importa, já que tampouco fica difícil identificar o fingimento de suas intenções, de sua "mensagem".

Para um filme que tem como meta acordar o público para a necessidade de desbravar, para o arriscar-se, A Vida Secreta de Walter Mitty mal disfarça o quanto é conservador. De tão próximo das células clássicas da indústria que o gera, tudo tem origem na busca do par romântico, da paixão (Mitty e a piscada virtual para a colega de trabalho). Mais que isso: Mitty irá se revelar figura paterna exemplar, e, portanto, a projeção de marido exemplar (a substituir um marido não tão exemplar).

Por fim, e de modo algum menos importante, não interessando o conjunto de lições supostamente aprendidas, o mistério da fotografia é entregue de maneira que Stiller parece julgar recompensadora. É na capa da LIFE, exposta para toda a população e observada por futuro casal de mãos dadas, como num comercial (e não seria?), que A Vida de Walter Mitty exibe sua desonestidade, valorizando tão sorridentemente nada mais que o trabalho e a família. O próprio filme é, assim, uma ilusão das mais baratas de se comprar.

*existe uma versão homônima de 1947, dirigida por Norman Z. McLeod.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

2013: Melhores


Ainda dá tempo?

Eu costumava ser mais entusiasmado com listas de final de ano. Fazia de melhores e piores. Religiosamente. Categoricamente. Ainda gosto, mas sem tanta excitação. É bom para mapear, ver o que o colega crítico/cinéfilo pode ter gostado ou desgostado diferente de você. Se gera alguma boa discussão, melhor ainda.

A cinefilia a qual somos afeiçoados, aquela que acabara germinando a nouvelle vague, surge acompanhada de algumas de suas próprias manias. Hoje isso é cada vez mais fetichizado, por vezes deixando-a a mercê do mero prazer do acúmulo. "Ver mais, ver mais, ver mais, listar, dar nota" (o que com a internet no travesseiro pode ser quase desesperador) e não ir muito além disso.

Não que não seja importante assistir a vários filmes. Eis aí uma base da cinefilia, afinal. Mas o consumo desenfreado do olhar às vezes pode revelar apenas isso: consumo.

Listas, TOPs, o que seja, podem ser apenas listas. Dependendo da veiculação, podem ajudar na carreira de um filme e também na memória em torno dele. Na melhor das hipóteses, em níveis um pouco mais pessoais, servem de guia rápido.

Desta vez não me sinto tentado a apontar os desagrados. Alguns são óbvios, e, no fim das contas, pra quê? De todo modo, para não passar no zero, nada foi tão árduo pra mim quanto a sessão de Os Miseráveis ainda no começo do ano, aquele musical torto e cheio de si.

Bom, meu pequeno guia de 2013, meus dez preferidos (lançados no Brasil), do que deu pra ver, são estes abaixo:

1) Tabu (2012), de Miguel Gomes
2) O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho
3) Depois de Lúcia (2012), de Michel Franco
4) Las Acacias (2011), de Pablo Giorgelli
5) Killer Joe (2011), de William Friedkin
6) O Mestre (2012), de Paul Thomas Anderson
7) Além das Montanhas (2012), de Cristian Mungiu
8) A Caça (2012), de Thomas Vinterberg
9) Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche
10) Amor (2012), de Michael Haneke

Ainda vale mencionar A Cidade é uma Só? (2013), de Adirley Queirós, pelo pequeno e inspirado raio-x de uma Brasília distante da imagem passada pela capital; Bastardos (2013), de Claire Denis, pelo desfecho esbofeteante; Um Estranho no Lago (2013), de Alain Guiraudie, pelo que esconde e pelo que não esconde num bosque; O Estranho Caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, por, em toda a experiência de seu cineasta, ser tão singelo ao manobrar imagens que remetem às origens do cinema (coisa que o compatriota Gomes também faz em Tabu, mas de maneira distinta) e fazer disso uma espécie de obsessão, ilusória ou não; Django Livre (2012), que mesmo ficando pra trás na escala Tarantino, é fruto de alguém que entende os meios de amplificar o cinema; e Gravidade (2013), porque, apesar de Cuarón insistir em rejeitar a simplicidade de duas pessoas aterrorizadas com o fato de estarem jogadas à sorte no espaço como se fossem bilboquês humanos, inflando seu filme com simbolismos de renascimento, num mix de ciência e criação que age como freadas irritantes no espetáculo que tem em mãos, ainda é uma baita experiência visual e sonora dentro de uma sala de cinema.

ps: não vi Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, e nem Um Toque de Pecado (2013), de Jia Zhang-ke.