quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Amor (Michael Haneke, 2012)




Amor examinado

O que esperar de Haneke falando de amor? Não uma comédia romântica, sem dúvida, muito menos daquelas tão celebradas por corações jovens hollywoodimente alimentados a cada temporada por gente bonita e "ideal". Dessas, salvam-se poucas.

Desde O Sétimo Continente (1989), o cinema de Haneke parece nos nutrir do que seria um vazio, emoções quase sempre ocas projetadas por um cineasta muito interessado na relação do espectador com as imagens diante de si. Violência Gratuita (1997) e Caché (2005) são os exemplos máximos desse olhar, filmes que, num estreito relacionamento com a videografia, sugerem afiadíssima extrapolação da janela - ela, a janela da tela, a cortina cinematográfica - que separa sua ficção de nossa realidade. Em mais de um sentido, Haneke nos testa, seja no mistério de uma fita enviada a personagens, seja na violência que acontece fora do campo (e que, por isso, por estar fora do olhar, realmente seria menos agressiva?), seja numa sádica piscada para a câmera.

Por outro lado, cada filme deste autor também nos leva a questionar a exatidão dessa frieza, ou ao menos adicionar algumas vírgulas. E então chega este Amor, que, para o cinema praticado por Haneke, duro e seco, chega a ser até mesmo emotivo, na falta de palavra melhor. Uma minúscula dose de doçura, sobretudo nos rumos finais, talvez?

É difícil pensar nessas palavras - "emotivo", "doçura" - quando se escreve sobre tal cineasta, no risco de confundir ainda mais possíveis espectadores guiados apenas pelo título do filme. Aqueles que conhecem Haneke já estão familiarizados com sua visão de mundo, visão esta que tem sido recebida por Hollywood com crescente curiosidade: em 2010, A Fita Branca (2009) figurou entre os indicados a Melhor Filme Estrangeiro, e agora Amor recebe uma coleção de nominações, incluindo Filme e Diretor. Ambos os filmes foram premiados com a Palma de Ouro em Cannes em seus respectivos anos.

Assistir a um Haneke é como entrar num consultório. Ainda lembro com exatidão de meu amigo André de Leones encarando O Sétimo Continente: um filme sob o ponto de vista dos objetos, dizia ele. É uma sensação que às vezes também parece valer aqui.  Em Amor, seu estilo seco e duro permanece irretocável na companhia do casal Georges e Anne (Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, dois grandes nomes do cinema francês: ela desde Hiroshima Mon Amour, de Resnais, e ele, desde antes de As Corças, de Chabrol), professores de música aposentados e já com seus 80 anos. São sobriamente ternos, ainda vão juntos a concertos, dividem momentos de refeição numa pequena mesa de um apartamento francês burguês. Certo dia, ela não responde, e a rotina começa a ser outra.

Cena por cena, uma adoecida Anne lembra cada vez mais um recipiente do que antes era uma vida com corpo, sugerindo versão amarga de "felizes para sempre ou até que a morte os separe". A gradativa inexistência de alguém, sob o constante olhar de um sentimento. Parece reverberar de algum modo a filosofia de Irrversível, de Gaspar Noé, de que "o tempo destrói tudo", muito embora sejam filmes e autores tão distantes em tom e estilo de filmar.

Constrói-se a partir daí um tipo de teste para os personagens, incluindo uma filha interpretada por Isabelle Huppert. A cada aparição, Huppert soa como um suave aconchego no meio desse apartamento que aos poucos passa a impressão de ser filmado por Haneke como se fosse um caixote da morte. A presença dos espaços e das paredes é sensacional, muito lúcida e impiedosa, a câmera às vezes agindo como um pedaço de mobília qualquer. Uma cena de pesadelo é particularmente interessante, podendo encontrar sua dose de gritos no público.

Já no nosso caso, aqui o teste, assim como o brilho do incômodo sentido, talvez - e sublinho o talvez - seja o de considerar o lado de cá da janela de cinema (seja ela a tela de cinema, da TV ou do computador) um outro cômodo desse lar, uma extensão do lugar habitado e, não menos importante, vivido pelo casal. Um extracampo, para onde Haneke pode ou não dirigir seu olhar.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Django Livre



Western operístico e black power

Lamento um pouco que o título brasileiro do novo Quentin Tarantino não seja "Django Desacorrentado". A tradução literal traria algo de poético e mítico, um perfeito casamento com a lenda germânica de Siegfried, herói em busca de sua amada Brunhilde.

O paralelo com a ópera de Wagner, baseada no personagem lendário, torna-se sugestivo em energia e tom. Em certo momento, o Dr. King Schultz (Christoph Waltz, a melhor nova parceria que Tarantino poderia ter feito) resume parte da história de Siegfried para Django (Jamie Foxx), ex-escravo liberto justamente pelo caçador de recompensas alemão após um súbito confronto de sanguinolência... animalesca, em vários sentidos.

Django Livre se passa em 1858, coladinho no começo da Guerra Civil dos EUA, época em que um negro livre no Sul era chocante, e um negro livre montado a cavalo era absurdo. Tempos em que "nigger" (geralmente traduzido como "crioulo", embora a palavra brasileira não faça justiça ao quilate ofensivo do original) era comum, termo expressado a cada cinco minutos de projeção, o que, já sabemos, voltou a enfurecer Spike Lee.

Como é de se esperar, Tarantino mais uma vez insere o espectador em seu universo de livre associação cinéfila. As referências, homenagens e releituras escorrem por todos os lados, explorando em maior ou menor grau a educação cinematográfica do público, que, uma vez cinema adentro, deverá se familiarizar (antes, durante e/ou depois) ainda mais com o western spaghetti, gênero já tão honrado pelo cineasta (Kill Bill, Bastardos Inglórios). O cabeça-de-chave da vez é o cinema de Sergio Corbucci, sobretudo Django (1966), de onde Tarantino toma emprestado não somente o nome e a música de abertura, mas também Franco Nero, o Django original italiano, em respeitosa participação especial.

Máquina enciclopédica de fazer cinema, temos aqui um autor que compreende como poucos uma infinitude de filmes que o precedem. Apropria-se de outros para fazer algo muito seu. Não muito raramente, surge algum teimoso para dizer que Tarantino é mera cópia disso ou daquilo, ignorando o hábito que o cinema, desde sua modernidade, tem de olhar muito bem para si mesmo. Ao seu próprio modo, Tarantino é um estudioso, assim como Scorsese ou De Palma, para nos atermos somente aos norte-americanos.

Essa cinefilia presente em seus filmes encontra respaldo na cinefilia clássica investigada por Antoine de Baecque (seu livro "Cinefilia", lançado pela Cosac Naify, é imprescindível para compreender a importância dos cinéfilos na história do cinema), atualizando-a sem receio algum, como na valorização do consumo no desenvolvimento da voz da cinefilia atual (entre outras coisas, À Prova de Morte é um engajamento via camisetas, pôsteres e diversos cultos a objetos). No cinema de Tarantino, existe uma ampla noção de erudição, que não se restringe ao que alguns insistem em tomar como "alta cultura". Tanto quanto um elo operístico, importa o que a cultura pop tem a oferecer, e o que filmes, gêneros, cineastas, enfim, cinemas desprezados têm de enriquecedor.

Não por acaso, Schultz fala do herói adotado por Wagner com o mesmo interesse que Bill (David Carradine) fala do Superman em Kill Bill. Ele encontra neste Django negro um novo Siegfried, que por sua vez tem sua própria Brunhilde (Kerry Washington), a ser resgatada de um fazendeiro escravocrata que, de tão metido a europeu (estaria aqui uma cotovelada nas desengonçadas noções de "alta cultura"?), prefere ser chamado de monsieur Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, muito bom).

Django Livre, por sinal, envolve todo um banquete de sotaques que parecem ir além de carregados: são estilizados. A cada filme, Tarantino aperfeiçoa seu tato com o linguajar. DiCaprio explora isso em uma afetação que, nos pontos altos, pode lembrar Al Pacino. Curiosamente, o filme chega ao Brasil com várias cópias dubladas, o que deve ser experiência no mínimo bizarra.

O crescendo operístico é construído aos poucos. Relação entre Schultz e Django é digna de atenção: o ex-escravo, recebendo o sobrenome "Freeman" ("homem livre"), adquire conhecimento a cada cena. Aprende palavras novas, aperfeiçoa sua mira, lapida uma identidade - mesmo que para isso tenha de incorporar outros papéis - sempre com uma mão amiga e respeitosa do parceiro. Se os códigos e as morais entre homens que regem o western frequentemente envolvem o que ficou conhecido como bromance, Tarantino concebe um dos mais bonitos.

É notável também como a independência de Django floresce, especialmente após a chegada ao Mississipi. Há algo de destemido e inconsequente nesse personagem que tem, no fim da linha, uma vingança (tema caro a Tarantino) capaz de justificá-lo. Montado a cavalo, o que já configura um desafio por si só, Django se transforma numa lenda própria do Sul, diante de brancos e, mais importante, negros.

A galope, espingarda empunhada ao alto, o filme lhe reserva uma montagem engrandecedora antes do confronto final, uma das muitas cenas de violência extravagante. Cada vez mais Tarantino usa o sangue como uma pintura, um elemento de cor em relação amorosa com a fotografia. Sangue em algodão, sangue escorrendo por um cavalo, sangue explodindo no ar, visível, despudorado, coisa de quem controla a tela como quiser. Sangue é mise-en-scène.

O banho de sangue e corpos, aliás, pode ser visto como dividido em duas partes, assim como o filme se divide em antes e depois do Mississipi, onde se encontra a exuberante vilania de Calvin Candie e o longa toma certa distância do faroeste ao passo que encosta nos exploitations de escravidão (ver cena da retirada de Brunhilde de sua punição). No entanto, o brilhantismo de Django Livre talvez esteja na revelação de outro vilão, ainda mais significativo: Stephen (Samuel L. Jackson), o velho lacaio negro de Calvin, cúmplice da opressão de seus semelhantes. É nele que a câmera desfere um, dois, três ou mais closes assim que os heróis chegam à exuberante residência do fazendeiro. É Stephen o grande antagonista de Django, sugerindo uma obra que não pensa a "resolução" da escravidão (e, por conseguinte, do racismo) como um mero acerto de contas entre brancos e negros.

Herói, bandido e mocinha redefinidos, Django Livre termina, enfim, completamente black power.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Temporada de Oscar




Indicados

Esqueci da data das indicações ao Oscar. Não sei se isso revela um crescente desinteresse pela premiação (ranhetice de novas idades, talvez), o qual eu ainda estaria negando, ou se é consequência de um janeiro mentalmente ocupado. Aposto no segundo. O do ano passado foi até bem interessante, premiando O Artista, ainda que previsivelmente previsível.

O que dizer das indicações deste ano, comentando meio às cegas, sem ter visto a maioria dos filmes?

Spielberg: Lincoln é o mais nomeado, com 12 indicações. Sempre entrarei num Spielberg com olhos e ouvidos gulosos, mesmo quando é vendido por trailers bocejos, como os deste. O Cavalo de Guerra (2011), do qual ninguém gostou, eu achei lindão e bem honrado como "cinema das antigas". E é um cara de algumas obras-primas na carreira, a começar por Tubarão.

Haneke: eu costumo chamar Michael Haneke de "o cineasta oficial do mal-estar da civilização". Gênio contemporâneo, passou perto de ser canneado e oscarizado na mesma temporada, com A Fita Branca (que tratarei de rever assim que terminar a leitura de Hitler, de Ian Kershaw). O mesmo pode acontecer agora, seu novo filme, vencedor da última Palma de Ouro, agora com Melhor Filme, Diretor, Atriz, Roteiro e, claro, Produção Estrangeira... Para um cineasta versado no amargo e no incômodo, seu Amour sugeriria algo... terno em sua carreira? Deste eu fiz questão de ler pouco a respeito antes de finalmente assistir. Talvez seja justamente um reconhecimento da faceta amarga e incômoda do amor. Não seria o primeiro, mas seria o primeiro comentário de Haneke sobre tal sentimento.

Os Miseráveis: o trailer é bom. Tom Hooper e seu O Discurso do Rei me dão preguiça, no entanto. Hollywood tem apostado grande no sujeito, algo na linha funcionário do mês. O filme tem 157 minutos e tentarei me limpar de preconceitos.

Hugh Jackman: muito bom ver Jackman indicado. Gosto dele, bastante. Subestimado em O Grande Truque, superou rápido aqueles filmecos que o usavam como bonitão da vez (Alguém Como Você, Kate & Leopold, A Senha - Swordfish, Van Helsing, só o estrume escorrendo...). Seu Wolverine também já deu, mas disso ele não escapa, com mais dois vindo por aí. Arriscou com Aronofsky, Woody Allen e Baz Luhrman. Torço para que interprete Clint Eastwood numa cinebiografia futura.

Ah, sim: não vai ganhar.

Paul Thomas Anderson: Anderson, Tarantino, Fincher... o clube dos "maior que tudo isso", a serem premiados daqui umas décadas, que nem Scorsese.

Ben Affleck e Ang Lee: curto esses dois (Affleck como diretor, apenas), mas não curti tanto assim Argo e As Aventuras de Pi. São filmes com algumas muletas: o de Affleck, pegando a narrativa clássica como se fosse uma tabuada, coisa que ele domina, mas este que é tido como seu maior acerto me parece menos interessante que seus outros dois; o de Ang Lee tem a liçãozona de moral, um encontro com Deus que me pareceu ter mais gordura do que o filme - que gosto - consegue suportar.

Lista completa dos indicados no site do Oscar.

Amigo André também pitacou as indicações em seu blog. Haneke também significa muito pra ele.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Mandíbulas e o prazer do outro


Foto tirada de onde eu estava sentado na sessão do Cinesesc, Outubro/2012.

Dia desses pra trás, estava eu aplicando Tubarão em uma pessoa que nunca tinha visto este maravilhoso Spielberg antes. Ela é sensível ao medo. Compreensível. E fascinante, em termos de cinema, esse brilho de realidade que sabemos ser simulado, mas entramos nisso de bom grado, porque é bom.

O filósofo Kendall Walton fala sobre isso em seu texto "Temores fictícios", e é criticado pelo também filósofo Gregory Currie num artigo chamado "Ficções visuais". Ambos versam sobre essa característica do faz-de-conta e estão no primeiro volume daquela coletânea bicolor da SENAC, Teoria Contemporânea do Cinema. São textos meio truncados, mas valem a leitura.

Falei tudo isso para, na verdade, dizer que me lembrei da magnífica sessão da cópia digitalmente restaurada, no Cinesesc de São Paulo, durante a Mostra do ano passado. Eu era o quinto na fila e pude escolher o lugar que quisesse. Prefiro um pouco à frente do meio, ligeiramente à esquerda, e foi lá mesmo. Perfeição.

Do segundo ataque em diante, aquele do garotinho, com toda a preparação da montagem (brilhante, foda, obra-prima) na praia, pessoas atrapalhando a visão de Brody (Roy Scheider), um Spielberg sem medo de transformar crianças em amontoados de sangue, passei a manter um olho na tela e outro no casal da fileira da frente, duas ou três poltronas à minha direita.

A garota era a pessoa mais feliz daquela sala, provavelmente. Assistia ao filme pela primeira vez, estava claro. Ali, no cinema, imagem e sons perfeitos, quase uma espectadora de 1975. Cada som mais alto, um salto. A cada sugestão ou aparição do bicho, ela se encolhia no ombro do namorado, virava o rosto, voltava a olhar pra tela, escondia de novo. O rapaz se divertia com isso. Abraçava. Explicava algumas coisas, talvez processos de filmagem, como o truque de utilizar uma pequena gaiola diante de um tubarão normal, fazendo do animal uma besta enorme.

Ela foi muito feliz. Ele também.

Um prazer cinéfilo reside justamente aí, em "apresentar", ou melhor, em acompanhar a primeira vez de pessoas queridas. Existe aquela sensação de "legado", que pode ser mais importante do que nos parece. O cinéfilo, hoje, também virou uma espécie de arquivista.

Outra impressão valiosa é a de quase experimentar a sua primeira vez de novo. Desde que seja um prazer semelhante, claro. É um primeiro contato. Com Tubarão, difícil errar.

Mais do que isso, é a genuína alegria em ver o prazer do outro. O namorado estava feliz por ela. Eu estava feliz por ela. Por sua estreia tão privilegiada em um clássico, ainda que tardia. Cinema permite essas coisas bonitas entre pessoas, sejam elas muito próximas ou estranhas anônimas.  Tubarão permite essas coisas. Filme incrível.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Melhores e piores de 2012


Um dos vícios da cinefilia é esse negócio de listas. Todo ano tem. É bom, é rápido, é passagem. Mas depois de dois dias elas já meio que ficam escanteadas, os filmes já se embaralharam em suas posições. Acabam servindo como uma espécie de guia para quem por acaso gosta de acompanhar esse tipo de coisa, de indicação rápida, e também como aquele ato não menos cinéfilo de defender esta ou aquela obra.

Ficam aqui os filmes que estrearam comercialmente no Brasil. Muita coisa de 2012 eu vi em festival ou mostra, filmaços como O Som ao Redor, Na Neblina, Tabu e Além das Montanhas e que serão lançados comercialmente apenas em 2013.

Do que pude ver dos lançamentos oficiais, fico por aqui. Não vi o novo Kiarostami, nem o muito elogiado Mistérios de Lisboa. Ano corrido.



1) Millenium - O Homem que Não Amava as Mulheres ( The Girl with the Dragon Tattoo, 2011), de David Fincher

Fincher fez outro filme de serial killer que em vários aspectos lembra um filme de monstro, seu terceiro. Seven e Zodíaco também nos levam a uma agonia perturbadora em meio ao que parece ser apenas investigação, nos deixando, por fim, numa toca, na boca de uma criatura, por mais humana que seja.

Este Millenium talvez seja o maior nesse sentido, além de filme de amor muito bonito.

2) Drive, de Nicolas Winding Refn (2011)

Mais um filme de amor, aqui um pouco mais brutal. É uma jornada cinéfila pelo cinema "de carros", assim como À Prova de Morte, de Tarantino, também era, mas com outra música na pista. Refn é cool do jeito dele; é posudo, do jeito que muita mise-en-scène consegue brilhar. É um beijo de martelo.

3) O Porto (Le Havre, 2011), de Aki Kaurismäki

Kaurismäki (O Homem sem Passado, Luzes na Escuridão) em seu terreno um tanto... extraterreno. Um cinema sem sol, de fotografia que parece vir de luas, mas belissimamente preocupado com o calor humano.

4) Holy Motors (2012), de Leos Carax

Tipo de cinema que te pega de calças curtas, não só por obviamente flertar com certo surrealismo, o que costuma ser automaticamente intrigante, mas por versar de alguma forma com o processo de construção ficcional. Faz isso não de maneira metalinguística, mas do que parece ser o acompanhamento de "missões" de um ator, talvez preso pelo próprio cinema de Carax. Por fim, Holy Motors dá uma cambalhota e surpreende como um filme sobre... limusines (será mesmo?). Só vendo.

p.s.: o filme de Carax é, na verdade, uma dúvida, o que me move a revê-lo mais uma, duas vezes, sem muito tardar. Pode ser que eu não venha a enxergar mais nada ali, achando tudo uma coleção boba de momentos bonitos. Por enquanto, até mesmo este risco me fascina, e não desgrudo desses momentos.

5) O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), de Tomas Alfredson

Cinema atmosférico. Tão sutil na narrativa que, mesmo envolvente no clima construído, ela pouco importa (e parece ser feita exatamente pra isso). Em grande medida, brinda e homenageia o passado; as pessoas e seu tempo. É, também, um terno filme que valsa com o homoerotismo.

6) L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância (2011), de Bertrand Bonello

Das mais belas dedicatórias que a profissão mais antiga do mundo poderia ter.

7) Habemus Papam (2011), de Nanni Moretti

Um Papa em crise, um ator frustrado. O Vaticano como o grande palco de uma farsa.

8) Minha Felicidade (Schastye moe, 2010), de Sergei Loznitsa

Estreou no Brasil com dois anos de atraso, mas iluminou Loznitsa aos nossos olhos. É um cinema duro, sua primeira ficção, ele que por muito tempo ficou acampado na área do documentário, alguns deles muito fortes (Blokada), outros, experiências curiosas de visão e audição (Paisagem). Em maior e menor escala, Loznitsa parece interessado em como negociações de poder com outras pessoas criam trajetos de dor e angústia.

O filme endurece como cimento e tem um olhar pessimista sobre a Ucrânia. Em 2012, Loznitsa apareceu com Na Neblina, que me impressionou ainda mais.

9) A Invenção de Hugo Cabret (Hugo Cabret, 2011), de Martin Scorsese

Scorsese professor, módulo História do Cinema, mas lecionando na beirada da cama, num conto de despertar. E os Lumière, ao lado de Méliès, ganham outra dimensão. Único 3D que realmente me agradou.

10) La Vida Útil - Um Conto de Cinema (La Vida Útil - Un Cuento de Cine, 2011), de Federico Veiroj

Filme com um forte clima de solidão e abandono. Não exatamente de pessoas (de alguma forma, elas estão salvas, surpreendentemente!), mas a solidão de um tipo de cinema e, não muito atrás, de um tipo de prazer.

Menção honrosa: Looper - Assassinos do Futuro (Looper, 2012), de Rian Johnson

O filme é uma doideira, desdobrando-se em três. O desfecho é quase bunda mole, mas até lá você já lembrou até de Carrie - A Estranha. Massa.


PIORES DE 2012

1) 2 Coelhos (2012), de Afonso Poyart


"Parece que Guy Ritchie e Zack Snyder vomitaram ali", disse um amigo. Eu não conseguiria resumir melhor.

2) Histórias Cruzadas (The Help, 2011) de Tate Taylor

Filme sobre gente negra que tem sorte de ter gente branca legal por perto. Uma sessão dupla com aquele Crash - No Limite seria pra sair sequelado.

3) Branca de Neve e o Caçador (Snow White and the Huntsman, 2012), de Rupert Sanders

Charlize Theron em nota errada, lôcaça de bruxa, é quase divertido. Mas Hollywood está empenhada em transformar todos os contos de fada em clipes da Avril Lavigne.

4) A Dama de Ferro (The Iron Lady, 2011), de Phyllida Lloyd

Meryl Streep ficou parecendo o Jigsaw. Ela tá ótima. O filme é horrível. Equação chata e não muito incomum na carreira dela.

5) Rock of Ages (2012), de Adam Shankman

Só consigo pensar que isso é uma adaptação não oficial de Guitar Hero.

6) O Homem que Não Dormia (2012), de Edgard Navarro

Deste eu até conheço defensores sérios, mas não consegui entrar no que quer que fosse.

7) Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012), de Gary Ross

Battle Royale, só que chato e frufruzento.

8) O Vingador do Futuro (Total Recall, 2012), de Len Wiseman

Cinema vaga-lume. Cinema de ficar jogando luzinha na sua cara. Cinema oftalmo.

9) O Espetacular Homem-Aranha (The Amazing Spider-Man, 2012), de Marc Webb

Andrew Garfield é bom, mas isso aqui é como repetir de ano em colégio diferente.

10) Beleza Adormecida (Sleeping Beauty, 2011), de Julie Leigh

O filme parece mesmo buscar a sensação de sonolência, de sono induzido. Parabéns.

Obs: quase coloquei Moonrise Kingdom entre os piores, um Wes Anderson que tem se revelado dos mais queridos. Adoro Anderson, mas ali me pareceu que este autor infelizmente (e inevitavelmente?) chega ao ponto de se reduzir aos seus cacoetes. Não seria o primeiro, claro; Tim Burton entrou nessa já há algum tempo.

É um filme doce e eu vejo algo de bonitinho naquele casal infantil, mas eu saí da sessão como se tivesse saído de uma aula de maquete, entediadíssimo. Tem o tipão de um campo de mini-golfe.

domingo, 6 de janeiro de 2013

As Aventuras de Pi. Ou quase.



Eu teria escrito sobre As Aventuras de Pi se a sessão em que tentei assisti-lo não estivesse dominada por idiotas. Era começo de tarde, meio de semana, sessão das 14h10. Cinemark, este complexo que, curiosamente, tende a atrair o pior tipo de público, acima de quaisquer outros cinemas de shopping que já vi.

15 minutos de filme e eu já estava especialmente enfurecido com um sujeito sentado três poltronas ao lado. Eu estava acompanhado, e ele também. Falava aos cotovelos e aos calcanhares. A pescoçadas. Esmurrava o ar com comentários, altos, como se estivesse em casa. Dizia o nome de todos os bichos que apareciam na tela. As Aventuras de Pi tem muitos bichos.

Firme, porém educadamente, pedi que fizesse silêncio. Olhei nos olhos. Falei "Por favor" no começo e "Por gentileza" no final. Superestimei a cidadania e a educação do meu... semelhante. Sempre superestimo. O homem, um estúpido completo, moleque por volta de 40 anos, me mandou mudar de lugar e tomar no meio do meu cu (ou à merda, não lembro; algo relacionado a bundas, isto é certo).

Basicamente, são duas as opções para este cenário: a primeira é entrar no jogo neandertal de troca de ofensas e babaquices, atrapalhando a sessão por completo. Eu cogitei. Meu vocabulário ofensivo é bom e ele certamente merecia, sobretudo se envolver alguma dose de humilhação direta. Ainda me arrependo de não tê-lo chamado de moleque, na frente da esposa ou o que quer que fosse.

A outra alternativa, mais civilizada, é chamar um funcionário, esperando que ofensas numa sala de cinema não sejam toleradas e, assim, alguém que não saiba se comportar seja colocado para fora.

Fui atrás do funcionário. O funcionário me seguiu, atencioso. Apontei o dedo na cara do babaca. O funcionário pediu compreensão e que eles fizessem silêncio. Ninguém foi expulso da sala, algo que lamentei. Eu poderia ter insistido. Não insisti. De algum modo, eu me preocupava com a possibilidade de me envolver em agressões físicas.

A sessão estava destruída. As outras pessoas também não paravam de falar, de fazer barulho, de acender luzinhas de celulares. Zoológico.

Incrível como, em frações de segundo, você começa a se perder em pensamentos sobre a educação (geral) do Brasil, em como é um país açoitado nesse aspecto; na educação do público goianiense, na Goiânia que carece muito de políticas cinematográficas (o que não é um desprivilégio nosso, eu sei), de cinemas de rua e de valorização da crítica, uma série de elementos que sempre estiveram relacionados com o ato de educar para o cinema, que não é apenas ver filmes, nem mesmo quando sozinhos em casa, ao invés de pensá-los somente como mais alguma coisa a se fazer no shopping.

O que faço aqui não é uma espécie de elegia às salas de rua. Tampouco um hate post dirigido aos cinemas de shopping e multiplexes, embora seja, muito indiretamente, às políticas de distribuição vigentes no Brasil, que permitem um descontrole e favorecem uma invasão de mesmacoisice nessas salas, em que capitais menores vêem suas opções ainda mais afuniladas, e o grande público pouco sabe de outros cinemas feitos, e, se pouco sabem, como poderia ter a chance de se importar?

Isso é treta antiga. Não falo nada de novo e gente mais graúda já disse isso mais de uma vez. O Inácio mesmo, há poucos dias. Pior que o eventual desconforto com os cinemas de shopping é a maneira com que os filmes são encarados ali. Por todos, inclusive por nós.

Em Goiânia, apesar dos muitos problemas de projeção que já testemunhei nos cines Lumière, é importante observar sua abertura para outros filmes, que já foi mais eficiente, mas ainda existe e, desde o ano passado, tem voltado seu interesse para o retorno da Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, uma repescagem do que é exibido no Rio e em São Paulo, meses antes. Tudo num shopping, ao lado da praça de alimentação.

A rede Cinemark costumava reservar um horário da semana para filmes mais alternativos. Não lembro o nome da iniciativa, mas era a sessão das 15h. Cada semana, um longa. Vi A Espiã, de Paul Verhoeven, lá. São sessões, espaços infiltrados, que não existem mais. Questões de lucro, claro.

Hoje, na cidade, a grande responsabilidade educativa de cinema reside sobre o Cine Cultura, muito bem localizado na praça central, a Praça Cívica. Barato, acessível, popular, mas na constante briga pela popularidade, já que exibe "filmes para poucos" (mas já não há espaços demais para os "filmes para muitos"?), obras "impopulares". Por isso me importa destacar que, ao lado do acesso aos filmes, exista esta noção de acesso a uma relação com o cinema.

Bom, As Aventuras de Pi...

Do que consegui prestar atenção, me pareceu um filme zen-filosófico repleto de auto-importância, sobretudo nas cenas em que a versão mais adulta do personagem Pi (Irrfan Khan, muito bom) aparece narrando (ou inventando) sua história.

Em resumo, a tal "vida de Pi" (título original e do livro homônimo) tem como destaque o seu naufrágio ao lado de alguns animais de zoológico. Por fim, sobram o jovem Pi e um tigre chamado Richard Parker dividindo um pequeno barco, espaço metafórico dos mais bonitos e que gera algum interesse de imagem e tecnologia em Ang Lee, cineasta de robusta sensibilidade. Lee é capaz de encontrar delicadeza e literariedade até onde inicialmente não se espera (Hulk seria o melhor exemplo, das épocas que adaptações Marvel eram pensadas com algo de cinema no meio, e não lançados como lancheiras em série, padronizadas), então fica aquela impressão de um longa colocado em seu colo, "aos cuidados de". Uma cena com uma baleia é mais fascinante do que eu consegui perceber, isso eu pude sentir, por exemplo.

O que mais me interessou aqui foi o envolvimento com o poder narrativo, o "contar histórias" e seu enriquecimento, suas dúvidas. Interessa ao próprio filme, tanto que é finalizado com esta questão. Até lá, porém, mergulha em boas intenções de mercearia, entregues a nós como pães quentinhos dentro do saco.

A noção de múltiplas crenças, ou melhor, de fascínio religioso, em seu sentido mais amplo, tem a força para ser levado a sério, ao invés de simplesmente ser grifado como "humanamente importante"? É um tipo de compreensão espiritual que Lee parece se esforçar para fazer funcionar, e o filme sugere claramente uma jornada de amadurecimento, de horizonte mais sofisticado que o primeiro O Hobbit, exibido na sala ao lado, muito embora o tom "caderno de ensinamentos", quase constante a partir de certo ponto, incomode.

De qualquer forma, este é um relato falho. Gosto de Lee e me interesso pelo filme, a ser revisto em outra oportunidade - até mesmo para esclarecer aqueles efeitos especiais um tanto pedestres na tela do cinema; achei estranhos, para não dizer obsoletos.