domingo, 30 de dezembro de 2012

Febre do Rato



It's a trap!

Cláudio Assis continua estômago e sexo, filosofia que pregava em Amarelo Manga (2002), seu longa de estreia. Dois longas depois, me pergunto se já não estaria na hora dele saber que cinema pode ser mais que isso.

Em certa medida, este Febre do Rato é seu melhor filme, mesmo acomodado numa mediocridade autoral: Assis dirige cada vez melhor, seu olho para movimentos de câmera, montagem e enquadramentos superiores (há um travelling no teto que me lembrou até mesmo algo de De Palma, veja só) sendo invariavelmente inspirado, aqui casando com a melhor fotografia que Walter Carvalho já fez pra ele, eclodindo num filme preto-e-branco que, como um bom amigo notou, teria muito de cinema marginal, a começar por Sganzerla. O papo também beira por esse lado, ainda que Assis não me pareça profundamente interessado em levar suas questões (políticas, sexuais, humanas...) muito adiante, como o próprio Sganzerla conseguia em seu tempo (com um diálogo cinematográfico mais rico que Glauber, gosto de dizer), até quando flertava com o caótico.

Febre do Rato tem hedonismo e poesia aos montes. O protagonista é Irandhir Santos, ator interessantíssimo (vejam-no em O Som ao Redor) interpretando um poeta marginal. É um personagem guiado pelo prazer e pelo que parece ser um confronto ideológico contra algo sobre o qual Assis não nos localiza muito bem. "Pelo direito de errar"? Talvez seja só isso mesmo, com o poeta sendo emocionalmente atingido por uma garota chamada Eneida (Nanda Costa), relação de urinas intimistas e siriricas poéticas, o tipo de coisa que Assis parece fazer apenas para tentar causar algum desconforto; apenas porque ele pode, porque ele tem esse poder, e de alguma forma parece se divertir com isso. Soa presunçoso e trafega irritante na tela.

Não consigo levar o cinema de Cláudio Assis a sério. Acho tudo muito forçado, carregado, juvenil. Talvez o maior problema desse seu cinema "de entranhas" (earmm...) seja deixar aquela sensação de que foi feito para que qualquer um que não goste seja acusado de carolice. Armadilha de criança.

O Hobbit - Uma Viagem Inesperada




Cinema pouco inesperado

Revisitar um mesmo universo não é algo incomum nesse cinema que, desde os anos 80, soube se apoderar do gosto do público pelas sequências, pela continuação de uma experiência consagrada, com o invariável talento de Hollywood para multiplicar tudo isso em cifras. No seu melhor e no seu pior, George Lucas e seu Star Wars estão aí até hoje, infindáveis.

O Hobbit chega aos cinemas nesta última quinzena de dezembro com a promessa de “estreia do ano” e também de investimento técnico da vez, filmado a 48 frames por segundo, o dobro das filmagens tradicionais do cinema, deixando o filme com cara de, dizem, um telão de LED. Vi em 2D-24 fps, hoje uma sensação quase de “à moda antiga”, então falta conferir esse suposto salto tecnológico que ainda corre o perigo de ser um fracasso. De todo modo, é curioso que em meio a cada vez menor sobrevivência da película diante do digital, um blockbuster dessa magnitude pense como avanço uma imagem que, ao que parece, aproxima-se de uma plasticidade televisiva.

Toda essa responsabilidade de marketing se relaciona com expectativas lucrativas e, não podemos subestimar, emocionais, uma vez que reenvolve quantidade significativa de fãs não apenas literários, mas também cinematográficos. Entre 2001 e 2004, O Senhor dos Anéis, projeto arriscado de três longas em conjunto, bateu recordes de bilheteria e se consolidou um marco no épico de fantasia. Dirigido pelo mesmo Peter Jackson, O Hobbit confia tanto num passado de 10 anos que aposta em outra trilogia, ainda que baseado em livro três vezes menor: sem conclusão definitiva até o final de 2014, é claramente encarado como um novo O Senhor dos Anéis, embora não seja.

A primeira diferença fundamental está no seu tom, boa parte dele devota do livro, escrito para crianças. Às vezes de maneira até ousada, agregando certo número de cantorias e um timing cômico abrangente, aqui Peter Jackson, um belo condutor de histórias grandiosas (seu King Kong é incrível), parece exercer muito mais a função de relator do que a de criador de outro épico imenso. Relata até demais, amplia até demais o mundo que tem em mãos, adicionando personagens por mera curiosidade (Radagast, bobo, infantil, aparições completamente Disney World), mas, mesmo obedecendo a expectativas blockbusterianas de sequências de ação, o que se tem aqui é obra menor.

Desde o princípio, O Hobbit briha mais quando se distancia do que lhe seria mais épico. No papel do hobbit Bilbo Bolseiro, interpretado por Ian Holm em O Senhor dos Anéis, que se passa 60 anos depois, Martin Freeman é um acerto absoluto em seus olhares, hesitações e domínio de um texto tão sólido quanto divertido. Numa trilogia que se vê na necessidade de repetir o gigantesco, o seu melhor está na atuação do pequeno herói frágil. Uma cena de disputa de charadas, célebre momento para os leitores, é ponto forte do cinema travesso de Jackson e deve ser um enigma para crianças, do riso ao temor em segundos. Muito bom.

Em resumo, Bilbo é convocado por Gandalf (Ian McKellen, repetindo o papel) a auxiliar 13 anões a recuperar suas riquezas, tomadas anos antes por um dragão despeitado chamado Smaug. Para isso, devem cruzar parte da Terra-Média, o fascinante continente fantasioso criado pela literatura de Tolkien, a fim de chegarem à montanha onde reside o bicho.

Jackson introduz essa história com a energia do prelúdio de sua trilogia anterior. Não revela, mas apenas sugere uma imagem que se possa ter do dragão, animal icônico das fantasias e imaginações, portanto digno do suspense visual. Jackson tem um momento inspirado nesse início, quando faz com que uma sugestiva pipa invada a tela pela direita, fora de campo, precedendo os ataques de Smaug.

Essa habilidade do diretor de contar histórias permanece admirável. Com quase três horas e se estruturando em outros dois longas de mesma duração, admito ter me surpreendido com um ritmo que me deixou a impressão de estar diante de uma produção redonda de duas horas. Por outro lado, é estranhamente inconclusivo, sobretudo na (inicialmente coerente) necessidade de se criar um vilão-de-primeira-parte que... ganha sobrevida para o próximo episódio.

Não muito atrás, é quase impossível distinguir os anões, sendo mais prático pensá-los apenas como um grupo, um bloco de personagens, exceto pelo líder, que talvez seja presença tão inexpressiva quanto sua importância narrativa (o ator parece sempre ter acabado de acordar), o que, por tabela, compromete outras questões (sua relação com Bilbo, por exemplo).

Dez anos depois, O Senhor dos Anéis ainda me impressiona como épico hercúleo que é, um desses feitos memoráveis. O Hobbit, porém, me parece não exatamente um teste de paciência, mas de curiosidade. De tão familiarizado com este universo, Jackson o traz de volta com uma espécie de selo de garantia, um “padrão de qualidade” que, ao contrário do que era arriscado há uma década, agora soa como defensivo. As mesmas câmeras, a mesma fotografia, muito pouco do “novo” que outro diretor, como o anteriormente cotado (contratado?) Guillermo del Toro, poderia inserir de maneira interessante num projeto desses. Aqui, por enquanto, há pouco com o que se surpreender.

p.s.: impressão depois de ver em 48 fps: parece um museusão de cera em movimento. É estranho. Tô velho pra 3D, esse entojo nos olhos. Tô velho pra 48 fps? Ainda não sei dizer. Fico pensando até que ponto não é reflexo de uma intimidade com plasmas, LCDs e LEDs já adquirida pelo "novo" público (Terra-Média tá com a maior cara de National Geographic). É uma espécie de cine aquário.

Cinema não exige fidelidade a único formato (ainda bem), mas a tradicional película ainda é minha melhor amiga. Filmes parecem bichos vivos nela, quase como se quisessem escapar. Cinema sempre foi coisa viva pra mim.

A Vida Útil



Filme em perfeita sintonia com a reabertura do Cine Cultura

Após meses fechado para reformas, o Cine Cultura volta às suas atividades nesta sexta-feira, 07 de dezembro. Localizado na Praça Cívica, o cinema conhecido como "o mais charmoso de Goiânia" não poderia ter escolhido melhor reabertura: La Vida Útil (2010), de Federico Veiroj, cineasta uruguaio. Com 70 minutos de duração, o longa será exibido na sessão de 18h30 de segunda à sexta e na sessão de 17h aos sábados e domingos.

Como é sabido, salas de rua tornaram-se espécies em extinção, sobretudo a partir da virada dos anos 70 para os anos 80, quando Hollywood entendeu que shopping centers eram um excelente lugar para os negócios, e que Tubarão e Star Wars apontavam um modelo a ser seguido. A cinefilia teve de se adaptar, o público mudou. Aos poucos, as pessoas deixaram de ir ao cinema e adquiriram um hábito mais... sedutor(?): consumir o cinema, e em um local onde poderiam consumir muitas outras coisas.

Soma-se a isso o fato do cinema também desprender-se da sala de exibição, da tela grande, encontrando seu novo lugar nas fitas VHS, nos DVDs, nas TVs por assinatura e, hoje, nos arquivos virtuais, na imaterialidade da "nuvem". O olhar coletivo encontrou um amigo rival: o ver doméstico.

O filme de Veiroj fala justamente de um cinema pouco sobrevivente, de exibições alternativas e autorais,   como ciclo de filmes uruguaios e Mostra Manoel de Oliveira. É a Cinemateca de Montevidéu, mas poderia ser qualquer cinema de rua da América Latina.

Acompanhamos Jorge (Jorge Jellinek), funcionário da Cinemateca da capital uruguaia por mais de 20 anos. É sua rotina de trabalho que lembrará o espectador o quanto há de ofícios comuns e burocráticos por trás do prazer de assistir a um filme, além dos inúmeros esforços para que esse tipo de cinema seja mantido vivo. São salas atordoadas por problemas técnicos e flanqueadas por dependências administrativas, sendo o "economicamente não rentável" um motivo para cordas no pescoço.

Numa cena de discurso mais explítico, outro personagem explica a importância destas salas não apenas como exibidoras, mas como espaços de aprendizado e formação de espectadores. A política de público das cinematecas, tão importante nas décadas de 1950 e 1960, ficou para trás assim como o nostálgico preto-e-branco de La Vida Útil virou sinônimo de passado.

Os últimos suspiros do lugar parecem estar no som das cortinas se abrindo, no barulho do rolo de filme no projetor e no movimento das portas, tão sozinhas quanto Jorge, detalhes e instantes que Veiroj filma com afetuoso interesse, revelando paixão e lamento. Não por acaso, mesmo distante de sua Cinemateca, Jorge parece procurar pequenos momentos cinematográficos para sua vida, com uma cena nas escadas de uma universidade sendo das mais bonitas e encantadoras.

É um filme com um forte clima de solidão e abandono. Não exatamente de pessoas (de alguma forma, elas estão salvas, surpreendentemente!), mas a solidão de um tipo de cinema e, não muito atrás, de um tipo de prazer.

Assistir a La Vida Útil num cinema como o Cine Cultura é, em certa medida, ser o filme. Ou, na mais feliz das hipóteses, declarar que sua atmosfera cinefilamente fúnebre (mas doce e, por fim, esperançosa) ainda pode se enganar.

Curvas da Vida



A última vez que Clint Eastwood atuou num filme em que também não fosse diretor foi há quase 20 anos: Na Linha de Fogo (1993), de Wolfgang Petersen. Neste Curvas da Vida, é dirigido por Robert Lorenz, seus assistente de direção em várias produções, aqui estreando como diretor.

É difícil visualizar como se dão as relações humanas e de proximidade num meio industrial como Hollywood, pensamento de produção sustentado, em parte, por firmes contratos de patrão-empregado, como qualquer atividade empresarial. Temos aqui, então, aquela sensação de tapinha nas costas, com Lorenz comandando não apenas aquele que foi seu "superior" em várias ocasiões artísticas, mas uma espécie de entidade superior do cinema norte-americano.

Curvas da Vida espirra Clint Eastwood por todos os lados. Ele não só atua, como também produz um destes pequenos batimentos cardíacos dos EUA: o tradicional filme de esporte tipicamente norte-americano, que tem tudo a ver com Eastwood e seu elo com o país (western, cinema clássico, melodrama, história...).

Aqui, ele interpreta Gus, um experiente olheiro de baseball. Homem de papéis, olhos e ouvidos, resiste ao uso de tecnologias. É visto por colega de trabalho como alguém ultrapassado, digno de aposentadoria forçada. Gus tem uma filha, Mickey (Amy Adams), advogada a contragosto, o esporte sendo sua autêntica paixão, e boa parte do filme mira na alimentação desse relacionamento.

Cinema clássico, 2 + 2, dirigido por Lorenz como se Eastwood lhe tomasse a tabuada. São formulinhas e esqueminhas que o próprio Eastwood soube dominar desde cedo com tanto cuidado e amadurecimento, pacientemente lapidando seus filmes para que o jogo de emoções seja, enfim, jogado com a inteligência de quem sabe que esse tipo de ilusão pode ter um valor verdadeiro (atualmente, Ben Affleck, em cartaz com Argo, nos sugere um provável herdeiro desse cinema). Obras como Menina de Ouro e As Pontes de Madison vieram desse profundo esmero eastwoodiano.

A sabedoria vendida em Curvas da Vida, porém, é rasa, limitada a distinguir o certo e o errado via melodrama dos mais infantis. O antagonista de Gus é um jovem olheiro (Matthew Lillard, interpretando o babaca padrão) munido de computador e estatísticas, representando o lado bocó da tecnologia de ponta, como se esta fosse rival dos "instintos" in loco. Para concluir a vilania, ele também se revela um machista.

Cada um ao seu modo, eles observam um rebatedor promissor, garoto caracterizado como um bully, vilãozinho Disney asqueroso que a pesada direção de Lorenz não deixa dúvidas: odeie o rapaz e seja recompensado no final.

Há, também, um romance paralelo entre filha de Gus e o personagem de Justin Timberlake. Ele é legal, ela só lida com idiotas robóticos de escritório, então é um filme com pacote completo de figurinhas amassadas de tão batidas. Na trama paralela de Mickey, ela se reaproximará da vida mais simples e dos trajes não executivos ao mesmo tempo em que será sacaneada por gente de terno e gravata. Essas dicotomias aparecem no filme como letras escritas pelo Chorão do Charlie Brown Jr.

O prazer fica por conta da presença de Eastwood em uma de suas especialidades: o rabugento. Cada resmungo soa como um verso dadaísta.

Irresistível não se deixar levar pelo clichê e dizer que, se dirigido por Eastwood, Curvas da Vida talvez encontrasse algo de sólido. O longa abre com um cavalo correndo em direção à câmera, um plano muito a cara do cineasta, que vez o outra podemos vislumbrar em certas cenas e questionar o que poderia ter feito diferente de Lorenz. Nos rumos finais do filme, uma cena chave, situada num quintal, há o arremesso em câmera lenta de uma bola e a importância de um som, e não deixo de pensar se Eastwood não teria filmado o momento num plano lateral e mantendo fora de quadro a chegada da bola à luva.

Na melhor das hipóteses, fica a impressão de termos visto um Clint Eastwood de segundo escalão.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

007 - Skyfall



Este novo 007 poder ser a melhor coisa para a carreira de Sam Mendes, cineasta oscarizado em 1999 por Beleza Americana e que não parece envelhecer muito bem, seus filmes ficando de alguma maneira corroídos pelo esforço de alguma memória mais forte deles. Você pensa em Beleza Americana e pensa numa sacola vazia deslocada pelo ar e fica mais ou menos nisso. Ainda gosto do filme (e dos dois seguintes, Estrada para Perdição e Soldado Anônimo), mas até quando?

007 - Skyfall traz Mendes à franquia do agente britânico, talvez o nome mais pomposo a comandar a série. Com Craig, Javier Bardem e Ralph Fiennes no elenco, temos aqui o 007 mais caro da história, superando 200 milhões em orçamento. É a cobrança da arena de blockbusters de hoje, embora Skyfall mire uma curiosa homenagem ao passado.

Se Mendes tem uma sólida chance de se renovar por aqui, a mitologia de James Bond, renovada em 2006 com Cassino Royale (o melhor?), encara o destino de reciclagem, inevitável. 007 consiste justamente em um personagem imortal do cinema, mas envelhecido a cada era, substituído por anúncios de novos atores, novas equipes, novos tempos, novo tudo.

Mesmo com a enfadonhice de Quantum of Solace (2008), o arco de Daniel Craig como Bond sempre foi interessante por essa perspectiva. Um Bond claramente pós-Jason Bourne, é tratado e se comporta muito mais como uma espécie de soldado, tendo consciência disso e, o melhor, às vezes grilado com tais condições. Em Casino Royale falava-se muito de ego, e assim o Bond de Craig vira curiosa mistura de brucutu e fragilidade, nos melhores sentidos.

Skyfall sugere a não muito distante conclusão desta sua curta era. Reflete sobre passagem de tempo, envelhecimento, passado. Emulando algumas simplicidades, chega a lembrar um filme de espionagem antigo, com uma trama girando em torno de algo muito simples: proteger M (Judi Dench) de um vingativo ex-agente (Javier Bardem), espelho do que esse Bond poderia se tornar.

Bardem é incrível, aliás. Por mais que esteja inserido no pacote clássico de vilanices e nas ligeiras afetações de um estereótipo, escapa de qualquer desconforto. Um amigo definiu seu personagem como Frank-N-Furter loiro, e é bem por aí. Vilão para recordar, introduzido por Mendes com um plano sequência fixo, Bardem vindo do fundo até chegar a um quase close, uma primeira cena toda para si. O diretor é melhor nesses pequenos momentos do que nas obrigatórias cenas de ação, logo percebemos (há um desastre de trem que é normal para os padrões de hoje).

A história de caça e proteção nos levará, enfim, a conhecer um pouco da vida de James Bond, suas origens. O fato de suas raízes transportarem o filme para a Escócia indica elegante aceno a Sean Connery, o primeiro a interpretar o papel e, não seria injusto dizer, grande responsável por justificar a longevidade da série.

Essa sequência escocesa é impressionante. Skyfall é arremessado dentro de outro filme, isolado um ou dois tons mais pessoais, tudo a ver com o 007 solitário e abandonado escrito para Craig. O cenário é um casarão antigo, que em certo momento pega fogo e ilumina as cenas feito um farol, não deixando dúvidas de que um 007 fotografado por Roger Deakins é um 007 no mínimo singular.

Pena Daniel Craig aguentar, no máximo, só mais um. Ele é bom demais no papel, tanto quanto as agonias de seu Bond.

sábado, 3 de novembro de 2012

36ª Mostra SP - Na Neblina, de Sergei Loznitsa




Filme de sons e corpos ao redor
*escrito em 29 de outubro de 2012

Na Neblina teve a presença de seu diretor, Sergei Loznitsa, na sua primeira exibição na Mostra. Loznitsa apresentou seu trabalho se dizendo curioso em saber como uma parte do mundo não tão próxima da guerra receberia seu filme, que se passa ao oeste da União Soviética, então ocupada por nazistas. A Mostra exibe toda a carreira do diretor, numa incrível oportunidade de conferir seus documentários.

O ano é 1942 e o início de seu filme não poderia ser mais depressivo. Começa com um longo plano que leva a três enforcamentos, execuções que terão sua importância na história. É um plano que já dita com perfeição o tom impiedoso do qual Loznitsa cuida com atenção e, vá lá, algum carinho. Aqueles que assistiram a Minha Felicidade (2010), sua ficção anterior, puderam se preparar para esse tipo de ninar pesado. Ao lado de Além das Montanhas, de Cristian Mungiu, é a exibição que mais se sente à vontade no gélido ar condicionado dos cines Frei Caneca.

Dos três personagens centrais, um se destaca: Sushenya (Vladimir Svirskiy), sujeito acusado de traição. Em sua casa, ao lado da mulher, Sushenya é levado por um oficial da USSR e seu auxiliar. O objetivo é executá-lo a algumas centenas de metros dali, numa relação de captores-prisioneiro que chega a ensaiar algo de western. A missão não sai como esperada, muito embora Na Neblina não abandone em nenhum momento seu clima fatalista.

Os três homens estão mais para almas que vagam por campos distantes da guerra. Seus corpos, enquanto indivíduos mais sólidos, estariam nos flashbacks reservados a cada um deles. A Sushenya são concedidos os grandes momentos de Na Neblina, desde uma solitária lágrima, imagem que parece sintetizar o filme em sua solidão e tristeza (e, não muito atrás, desespero calado), até o último plano, uma elegante justificativa para o título. É um homem que carrega corpos.

Na Neblina é bem capaz de crescer conforme as pessoas deixam a sala, caminhando num ritmo semelhante ao do cinema de Loznitsa, como se fossem executar ou ser executados. O longa me parece ser baseado em som de tiro, assim como Blokada (2006), da carreira documentarista do cineasta, e seus poderosos sons destrutivos inseridos nas imagens de registro de um apocalipse real. Aqui, os tiros são altos e doídos, como devem ser as guerras.

Após a sessão, o diretor respondeu a algumas questões dos espectadores. Perguntei sobre o seu cuidado com o som, que tanto me impressionou. Loznitsa  disse ser sua parte preferida, a mixagem de som, mais que qualquer outro processo de filmagem. "Para mim, sons não são apenas sons. São música." Curiosamente, revelou não estar muito contente com os sons de tiros e explosões.

36ª Mostra SP - "Entre o Amor e a Paixão" e "Boa Sorte, Meu Amor"




De decepções e frustrações

Dois filmes que despertavam meu interesse já há algum tempo acabaram se revelando pequenas decepções: Entre o Amor e a Paixão (Take This Waltz, 2011), segundo longa da atriz Sarah Polley, e Boa Sorte, Meu Amor (2012), mais um representante da vivíssima safra pernambucana.

Há seis anos, Polley estreava na direção com Longe Dela, filme muito delicado que conseguia escapar daquele pacote Alzheimer de emoções lacrimosas, comum no tema. Trazia, ainda, bela atuação de Julie Christie, sustentando closes como uma verdadeira grande atriz. Era um primeiro trabalho maduro.

É aqui, na segunda investida, que a agora diretora está mais para uma aprendiz. Tem em mãos a clássica história de moça/mulher casada (Michelle Williams) que se apaixona por outro cara. Daí o... sábio... título nacional, pois ela está “entre o amor” matrimonial “e a paixão” jovial.

A julgar pela trilha sonora (tirar “Video killed the radio star” da cabeça é o desafio pós-sessão), passa perto de ser um As Pontes de Madison indie em sua premissa. A comparação com um dos maiores Eastwoods não faz bem ao filme.

Seth Rogen interpreta o marido, gourmet literário de receitas à base de frango e com senso de humor elaborado para se encaixar no ator. É um casal infantil e cheio de climão, em parte por conta de uma resistência sexual muito mal sustentada. Química entre Rogen e Williams é estranha e de difícil assimilação (por outro lado, talvez seja a ideia...), mesmo com outros personagens, amigos e amigas, rodeando suas vidas.

Relação com o novo moço, um aspirante a artista que ela conhece num voo e mora próximo à sua casa, não fica muito atrás. Interpretado por Luke Kirby como um cachorrinho para adoção, o rapaz desperta uma paixão incontrolável, recíproca e, oficializada em falas pouco convincentes (ver observação sobre “cachorrinho para adoção”), permeada de tesão.

Entre o Amor e a Paixão às vezes parece apenas uma brincadeira. Um jogo adolescente, transitando entre momentos inspirados e tentativas desengonçadas de reflexão em torno da rotina que acomete certos relacionamentos. A Polley amadurecida aparece numa cena de vestiário feminino, corpos nus de jovens e de idosas colocados em lados opostos; a Polley juvenil surge numa câmera gira-mundo durante sequência de passagem de tempo, as várias fases aventureiras de uma relação que se encareta aos poucos.

Woody Allen, por exemplo, fez mais com muito menos em seu Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos (2010), sequer um de seus melhores. No filme, o roteirista encarnado por Josh Brolin percebe que desejo é algo que depende da janela de onde se observa o outro. Cena breve, sutil e com a graciosidade entristecida que Polley parece buscar em todo o seu longa, mas encontrando somente uma comédia romântica no meio do caminho e ali estacionando.
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Já Boa Sorte, Meu Amor, estreia de Daniel Aragão, chama a atenção por, entre altos e baixos, somar à galeria inventiva, criativa e produtiva do atual cinema pernambucano, grande mina da cinematografia nacional. É, a exemplo do brilhante O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, filme com um olhada e uma mão dadas a um passado (de pessoas, de regiões e, com sorte, do país) que ditará certas regras no presente.

A fotografia é de Pedro Sotero, também fotógrafo de O Som ao Redor. Realiza aqui um preto e branco severamente contrastante. Boa Sorte, Meu Amor beira o quadrinesco, namorico estético que as divisões de capítulos não deixam negar.

Aragão fez um filme visualmente bonito e, de certa forma, paciente, pois seus rumos finais viram outra coisa, de difícil precisão, com lugar para pelo menos uma cena forte. O acúmulo de incertezas é até capaz de combinar com o tom quase alienígena a que algumas cenas se submetem, como no encontro entre o protagonista e o pai de sua namorada e também ao que me pareceu uma referência (e ponto alto do filme) a Skyscraper Symphony, curta avant-garde de 1929.

Para uma (?) escola (?) tão incomodada com a prédiozação de Recife (Gabriel Mascaro, Kléber Mendonça Filho...), prédios e edifícios se fazendo de equalizadores de notas musicais gritantes é uma passagem que tem seu brilho.

Nosso personagem principal, Dirceu, trabalha justamente para uma empresa de demolição, sujeito próximo a esse mundo feito do que é concreto. Apaixona-se por Maria, estudante de música, garota escorregadia como a arte. Ela lembra uma visão no olhar e na câmera de Aragão, que a introduz com longo close em câmera lenta, uma espécie de encanto faceiro.

O protagonista, porém, não é dos mais fáceis. Trata-se de personagem que, se não é, soa meio babaca, e o filme não demonstra saber lidar muito bem com isso. Boa Sorte, Meu Amor sugere, enfim, uma história de redescoberta, ou melhor, de renascimento – ou, ainda melhor, de reconstrução – mas de um sujeito que não tem muito que oferecer além do que me pareceu ser uma constante tensão mimada.
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Por fim, a frustração da Mostra foi, na verdade, o cancelamento de uma de suas exibições mais esperadas: a cópia digitalmente restaurada (4K, som 7.1, um sonho) de Tubarão, de Steven Spielberg, que teria sido exibido na segunda-feira, 22/10, no Cine Frei Caneca 1. Grande fila, fãs, ingressos aparentemente esgotados, expectativa para ver na tela de cinema um dos melhores (talvez o melhor) Spielbergs.

Era a primeira das quatro sessões programadas para a Mostra. Não rolou. A explicação: “O arquivo não abriu.” Ofereceram um filme russo no lugar.

36ª Mostra SP - Tabu (2012), de Miguel Gomes




*Texto escrito em 22 de outubro/2012

Miguel Gomes e os encantos narrativos

Encarado como um dos grandes filmes a serem vistos na Mostra, Tabu parece fazer jus às expectativas, burburinhos e comentários empolgados pelos corredores freicanecanos e andanças da Augusta entre uma sessão e outra. Miguel Gomes, cineasta português, vem do elogiado Aquele Querido Mês de Agosto (2008), longa que não captou muito de minha atenção, sem me dizer grande coisa, talvez merecendo uma revisão (quem sabe na própria Mostra, onde é exibido ao lado de seus outros filmes). Aqui, fez algo realmente imperdível, uma dessas obras capazes de se abrigar num tempo (ou, no caso, dois tempos), numa política, numa relação histórica e numa visão de sentimento.

Filmado em preto e branco e resolução 4:3, Tabu ainda é um meio filme mudo. Tem-se a impressão de estar diante de um trabalho incapaz de pertencer a algum período específico – as partes mudas são, na verdade, sonorizadas por eventuais sons ambientes, risos e trilha –, embora ecoe um cinema antigo. Murnau, de Aurora, é uma clara referência.

Não soa, porém, como homenagem ou exercício, tarefas cumpridas – e muito bem – por diretores como Aki Kaurismäki (Juha, 1999) e o oscarizado Michel Hazanavicius (O Artista, 2012).

O que Gomes faz é trazer resquícios de seu país colonizador para elaborar, de maneira muito literária, belíssima história de romance. Cuidadosamente aquecidas, muitas de suas características só serão reveladas cenas à frente, sem que seus aspectos literários comprometam suas imagens, encantos por si só.

Uma narração, voz fascinante em sua indiferença, nos leva pelo filme como quem conta uma história de ninar. Há todo um tom de fábula a acariciar Tabu, impressão gentilmente cedida por seu prólogo: um pequeno conto aventureiro situado na África e que traz na imagem de um jacaré o elo entre o contemporâneo e anos não esquecidos.

No presente, uma senhora viciada em cassino vive aos cuidados de sua empregada cabo-verdiana, (interessante presença, ela lê uma edição juvenil de Robinson Crusoé), e, indiretamente, de sua atenciosa vizinha de apartamento. Juntas, as três sugerem passados diferentes de uma mesma nação.

Apesar de sadia, a idosa já parece velha o suficiente para apresentar leves traços de senilidade. São, na verdade, apegos a lembranças, memórias doces e dolorosas que serão traduzidas por outro personagem, teletransporte cinematográfico que Gomes realiza sentado à mesa.

Possível obra-prima, Tabu é capaz de revisitar a relação entre dois continentes através de um delicado filme de amor. Aquele gesto de virar-se para trás, lançando olhar dos mais sentidos.

36ª Mostra SP - Quatro Dias em Maio




Quatro Dias em Maio (4 Tage Im Mai, 2011) de Achim Von Borries

Filme alemão caretaço sobre a Segunda Guerra Mundial, limitado ao feijão-com-arroz do jovenzinho que vira amigo de soldado(s). Historinha de “militares bons” e “militares maus”, novelinhas passadas e repassadas tantas vezes, e por tanta gente melhor (Spielberg?).

Quatro Dias em Maio se passa nos dias de desistência nazista, quando restantes de tropas perdiam suas obrigações de combate. Um menino alemão se vê na posição de prisioneiro de um grupo do exército soviético e de possível informante de algumas sobras vagantes dos nazistas.

Com pequena alma de soldado, talvez nascido no tempo errado para isso, o jovem cria certo vínculo com o russo de maior patente, um “homem de bem”, e com uma moça alemã, que, mulher atraente, é vista como pedaço de carne em meio a hienas de uniforme. No filme, aprendemos – ora, vejam só – que brigar por mulher pode transformar aliado em inimigo e inimigo em aliado.

Curiosamente, este exemplar de cinema clássico dos mais irritantes encontra-se numa Mostra que tem como tema a retrospectiva Andrey Tarkovskiy, cineasta que, ao lado do também russo Elem Klimov (Vá e Veja, 1985), soube resumir a complexidade de uma guerra no rosto de um garoto. Colocar A Infância de Ivan (1962) muito próximo à simploriedade de Von Borries deve causar uma espécie de abalo sísmico.

36ª Mostra SP - Dia de Garrone

Reality, de Matteo Garrone

O Resto do Mundo (Le reste du monde, 2012), de Damien Odoul

Damien Odoul está com dois títulos na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: A Riqueza do Lobo e o telefilme O Resto do Mundo, ambos de 2002. No caso do último, roncos e bocejos foram devidamente registrados durante a sessão.

Odoul fez de O Resto do Mundo o que se espera de produções para TV, uma coisa repleta de cabeças falantes, com mais da metade de suas cenas cortadas acima do pescoço, pensadas para se acomodar na tela pequena.

Nessa vitrine de rostos, a modelo canadense Marie-Eve Nadeau surpreende como protagonista. Ela é muito boa, apesar de ser tudo muito chato e enfadonho, dando aquela sensação de que televisão ruim é parecida em qualquer lugar.

O filme tem, por exemplo, interessante presença de Emmanuelle Béart em papel (coadjuvante) de acabada, mas que rapidamente se transforma num dos vários clichês de algo que quer ser tão baixo astral e mostrar que “famílias têm problemas”.

O filme fala de suicídio e gravidez para quem está em casa, jantando uma comida congelada qualquer.


Reality (2012), de Matteo Garrone

Reality não poderia se distinguir mais da chatice audaciosa que é Gomorra (2008), trabalho anterior de Matteo Garrone. Temos aqui um filme que gira entorno de apenas um personagem, Luciano (Aniello Arena, um achado), peixeiro de Nápoles que, a fim de agradar suas pequenas filhas, faz um teste para entrar no Grande Fratello, a franquia italiana do Big Brother.

Por todo o filme, o espectador é levado a acompanhar, de mãos dadas, um homem comum que adoece aos poucos.

Casado, três filhos e com certa estabilidade, ele imerge em suas próprias noções fantasiosas, clima de irrealidade sugerido por Garrone logo no plano de abertura, um maravilhoso movimento de câmera aéreo nos apresentando uma charrete vitoriana percorrendo as ruas da Nápoles moderna.

É o primeiro de muitos planos abertos que, com trilha de contos de fadas, envolvem Luciano numa cada vez mais triste sensação de esperança.

Maior parte do filme, porém, traz Arena bem próximo à câmera, rosto enorme na tela. Ator que se revela incrível, há um olhar infantil nele que chega a ter algo de Renato Aragão, piscando inocência por todos os lados, o que me pareceu de uma beleza muito especial.

É um sujeito grande reduzido a fraldas, psicologicamente falando, movido por obsessões e até mesmo paranoias, momentos realizados com risos e sorrisos. Há uma cena envolvendo um gafanhoto que é quase inacreditável como Garrone consegue encaixá-la com tamanha naturalidade. Reality diverte, mas sempre deixando um aperto sentido.

Seduzido por bizarrices e patetices, o universo das celebridades sempre foi solo fértil para criticar o que haveria de mais vazio em seu modo de viver, sua realidade paralela.

Filmes como A Malvada (1950) conseguiram refletir sobre isso com acidez exemplar, enquanto Fellini e seu A Doce Vida (1960) viram beleza e melancolia nesse mundo peculiar, mas com visão não menos crítica, olhar que também gerou um Woody Allen encarado como menor, Celebridades (1998).

Da grande sátira de Paul Verhoeven a Hollywood, Showgirls (1995), ninguém quis saber, infelizmente.

Garrone parece ter adicionado uma zoada sadia a essa lista que, claro, é muito maior. Cena situada em uma boate escancara seu desejo de ridicularizar o que já é facilmente ridicularizável, resultando numa galhofa boa de ver. Belo filme sobre aparências e ilusões, com indiscutível guinada em direção a um desfecho arrasador.


Hemel (2012), de Sacha Polak

Primeiro longa da diretora holandesa Sacha Polak, aqui tentando falar de sexo “numa boa”. Traz como título o nome de sua protagonista, Hemel (Hannah Hoekstra), moça bonita de doer e que parece viver para transar.

Além de homens, ela cultiva sua relação com o pai alguns graus acima na escala de intimidade, sugerindo algo de incestuoso que, podemos desconfiar, está ali apenas para adicionar mais um elemento sexual à vida da garota.

Acaba soando como um soft porn que se finge de filme para adolescente pensar, o que provavelmente seria medíocre mesmo se não fosse fingido, mergulhando em moralismos e conservadorismos óbvios assim que personagens vestem roupa.

Looper



Filme de gêneros

Um filme muito bom que pode estar passando despercebido nos cinemas é Looper, que no Brasil ganhou o subtítulo Assassinos do Futuro. Apesar de esbanjar Bruce Willis e Joseph Gordon-Levitt em seus cartazes muito feios, a produção talvez tenha afastado aquela parte do público que vai ao cinema como vai a qualquer loja de shopping, em busca de produtos que serão trazidos em caixas do estoque, separadas por tipos e gêneros bem definidos. Num primeiro momento, nenhum problema quanto a isso, ao “ser de gênero” (temos grandes filmes assim), mas o próprio cinema, sobretudo na força de divulgação hollywoodiana, passou a criar espectadores que se orientam por seções de videolocadoras antes de procurarem interesses mais específicos em relação a este ou aquele filme.

Essa tarefa de classificar filmes em gêneros de prateleira, além de gerar eventuais bizarrices (O Paciente Inglês já foi AÇÃO para uma loja Blockbuster, anos atrás) teria em Looper um desafio. Policial? Ficção-científica? Drama? Que diabos?

Seu diretor e roteirista, Rian Johnson, já havia estreado em 2005 com algo um tanto incomum, o também muito bom Brick (aqui encontrado como A Ponta de um Crime), espécie de “noir colegial”. É um cineasta bem interessante em seus hibridismos, sem dúvida, e continua filmando muito bem, câmera leve e solta como um trapezista.

Aqui, Johnson nos leva a futuros, maior parte de sua história se passando em meados da década de 2040, vista aqui como um tempo sucateado, embora não apocalíptico. Na verdade, nada muito diferente do que conhecemos hoje, exceto por motocas voadoras, mas ainda motocas. Personagem de Levitt trabalha é um dos loopers, empregados contratados para matar pessoas que a máfia envia do futuro, 30 anos à frente, bela maneira de sumir com corpos. Às vezes, são os próprios loopers os alvos enviados, acordo milionário cujas consequências Johnson ilustra com o que parece ser um loop na própria narrativa (muito bom, mesmo). Toma essa, H.G. Wells.

Bruce Willis interpreta Levitt trinta anos mais velho. Num jogo de maquiagem incrível e, dizem, sem uso de efeitos especiais, temos Willis e Levitt muito parecidos em aparência. Os dois funcionam que é uma beleza, combinação curiosa entre uma eterna referência de action hero sólido e um pequeno querido cult (Gregg Araki que o diga) em ascensão a astro cool após ser adotado pelo bam-bam-bam Christopher Nolan (A Origem, Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge). Diálogo entre os dois num restaurante de estrada é importante para a narrativa e só convence na sua filosofia “deixe-se levar” porque é dado tempo a eles, a seus devidos olhares e falas.

Aquele espectador em busca do gênero perfeito ainda deverá estranhar seu sci-fi policial levar sua trama para uma fazenda tipicamente norte-americana e de lá não sair. Neste cenário, surgem outros dois personagens, mãe e filho que deixarão o filme alguns níveis mais intrigantes. O menino é... um fofo, pode acreditar.

Looper tem, enfim, a manha de ser "filme-de-viagem-no-tempo" na primeira metade e depois praticamente virar um horror paranormal, inquietação das boas que só vem a sossegar num final amarradinho.

Deve sair de cartaz logo, restando procurá-lo em locadoras, seja lá onde o enfiarem.

Cinco curtas queridos da 12ª Goiânia Mostra Curtas

O Duplo, de Juliana Rojas

Durante a primeira semana de outubro, Goiânia teve o prazer de receber curtas-metragens de praticamente todo o país. O Goiânia Mostra Curtas chegou à sua 12ª edição, mais de uma década trazendo filmes de pequena duração, alguns deles revelando olhares iniciais de cineastas que podem construir carreira de interesse.
 
Mais uma vez abrigada pelo Teatro Goiânia, local da maior parte de suas edições, a Mostra deste ano ocorreu entre 2 e 7 de outubro e exibiu mais de quarenta curtas somente na sua principal Competitiva, a Curta Mostra Brasil. Em meio a estas dezenas de produções, cinco delas cativaram minha atenção o suficiente para registrar uma ou outra reflexão mais profunda, cinemas de tiro curto capazes de gerar inquietações mais extensas. Certamente mereceram a tela grande em que foram vistas, mas fica aqui a sugestão para, futuramente, procurá-los em telas menores.
 
Capela (SP, 2011), de Gustavo Rosa de Moura

Talvez o mais curioso de todos os filmes exibidos, Capela se divide em três partes: “Manhã”, “Tarde” e “Noite”, cobrindo uma tradicional festa da cidade de Capela, interior do Sergipe. Trata-se de um documentário com um carinho pelo experimental, capaz de conceber, com recursos tão simples, uma fascinante atmosfera apocalíptica durante seu registro festivo.
 
Há algo de espiritual em torno do curta, não apenas pelo seu título e nome da cidade, mas por conseguir, em seu caráter de documento, uma pequena sensação de fim do mundo, uma brincadeira séria com fogos enlatados que voam pelos céus e giram alegremente pelas ruas. No terço final, Moura parece enfeitiçado por esse descontrole, gente a pé e montada a cavalo tentando capturar e arremessar buscapés, latas cuspidoras de fogo. É insano e beira o poético, chegando a lembrar dos curtas experimentais de Apichatpong Weerasethakul, cineasta tailandês.
 
Capela foi o premiado do Júri Prêmio Especial ABD-GO. Trailer: http://mirafilmes.net/destaques/capela/
 
Desterro (BA, 2011), de Cláudio Marques e Marília Hughes

A Barragem de Sobradinho, construída durante os anos 70, obra do regime militar, tem papel importante no curta de Cláudio Marques e Marília Hughes. Há mais de 30 anos, a construção da barragem desabrigou quatro cidades (Remanso, Casanova, Feito Sá e, parcialmente, Pilão Arcado), que acabaram submergidas. Duas mulheres estavam lá: Thereza Batalha, registrando, com uma câmera Super 8, a remoção de mais de 70 mil pessoas, e Dona Pequenita, moradora de Pilão Arcado e a única a retornar à cidade, tornando-se a residente solitária do que se tornou uma cidade fantasma.
 
A riqueza de Desterro está em como ele revela o que de fato é. A própria Dona Pequenita surge como uma alma abandonada, sensação criada depois de Marques e Hughes filmarem o pequeno município esquecido por meio de uma série de planos de casas mortas e lugares ocos, sem vida, dando tempo às imagens. Um cachorro perdido faz aquilo tudo respirar, até que nos leva, com muita calma, ao que realmente interessa: a história que envolve estas mulheres, fortalecida pelas imagens de arquivo de uma intervenção governamental que, na bela dimensão trabalhada pelo filme, chegou a passar por cima de verdadeiras existências.
 
Corpo Presente (PE, 2011), de Marcelo Pedroso.

O curta de Marcelo Pedroso, diretor do longa Pacific (2009), um dos documentários mais interessantes a surgir no Brasil nos últimos anos, pode exigir certa paciência do espectador. Boa parte de seus 22 minutos é dedicada à preparação de um boneco-defunto, imagens que, se são estranhas no princípio, passam a sugerir sua relação com a morte. Pedroso filma com frieza e enquadramentos clínicos, cirúrgicos, praticamente fatiando este “corpo” com a montagem. Não há trilha, o que potencializa cada som desse procedimento, uma literal limpeza de corpo e, talvez, alma.
 
O que Pedroso parece fazer com Corpo Presente é nos colocar, com tanta secura, diante da inevitável certeza da morte e da eventual inexistência de um corpo, ainda que, como sugere o final, permaneça como memória. Boneco, corpo, caixão, cremação e cinzas constituem, aqui, um conjunto muito sólido, podendo gerar aquela incômoda sensação de desamparo que vez ou outra se faz presente em cada um de nós. O filme tem força.
 
Corpo Presente recebeu Menção Honrosa pelo Júri Oficial, ao lado de O Duplo, de Juliana Rojas.
 

Porcos Raivosos (PE, 2012), de Isabel Penoni e Leonardo Sette

Eis a sinopse mais atrativa da Mostra: um grupo de mulheres decide fugir ao descobrir que seus maridos se transformaram misteriosamente em porcos furiosos. Porcos Raivosos foi exibido na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes deste ano, sua primeira projeção pública.
 
No curta, Penoni (antropóloga e diretora de teatro) e Sette ficcionalizam um mito indígena ao mesmo tempo em que documentam a tribo, sobretudo suas figuras femininas, de modo dos mais intrigantes. As mulheres em questão são índias da aldeia dos Kuikuro e quase todos os 10 minutos de filme são centrados nelas, que se comportam de maneira ritualística e, a partir de certo momento, defensiva. O som do filme é uma coisa, sugerindo algo possivelmente ameaçador do lado de fora da tenda, com os diretores mantendo a curiosidade no talo.
 
Sette e Penoni podem ter feito aqui um belo casamento entre o documentário antropológico e a narrativa fantástica. A câmera encara as índias de frente, as quais rebatem o olhar com muita força, celebrando, por fim, uma captura que talvez signifiqu para o espectador ocidental um rico feminismo simbólico. Uma vez que a temática desta edição da Goiânia Mostra Curtas se concentrava em diretoras mulheres e a feminilidade no cinema, faria sentido. Bonito.
 
Teaser de Porcos Raivosos: http://vimeo.com/48182481
 
O Duplo (SP, 2012), de Juliana Rojas

Juliana Rojas esteve envolvida com a Mostra de inúmeras maneiras: debate, oficina de direção, encontro de realizadores e as exibições de Um Ramo (2007), seu segundo curta ao lado do parceiro Marco Dutra, e O Duplo (2012), trabalho mais recente e, desta vez, solo. É, além de tudo, uma protegida da produtora Sara Silveira, mulher por trás de, entre outras coisas, os filmes do grande Carlos Reichenbach, cineasta recém-falecido.
 
Trabalhar Cansa, primeiro longa de Rojas e Dutra, foi exibido em julho no FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiental. É um desses filmes que dividem opiniões em seu trajeto e, com isso, constroem um interesse a mais em torno de si, especialmente por sabermos que temos aqui uma dupla de cineastas interessada num cinema incomum no Brasil: aquele que flerta diretamente com o fantástico. Zé do Caixão foi um dos poucos, quem sabe o único, a criar carreira nesse sentido por aqui, e mesmo assim de um jeito só dele. Rojas e Dutra orquestram algo menos avesso ao comercial, muito embora ainda façam um cinema de nicho e da admiração pelo estranhamento, isso desde o primeiro curta dos dois, o mórbido (e ótimo!) O Lençol Branco (2004), em que uma mulher tem dificuldades para aceitar uma perda familiar.
 
O elemento família é uma constante na obra de Rojas, assim como a protagonista feminina. Dentro de seu olhar sobre o fantástico, essas assinaturas parecem convergir para a vulnerabilidade humana daquela criatura que passou a ser tão cobrada em tudo, a mulher moderna. São personagens críveis e, na mesma medida, incríveis.
 
Em O Duplo, Rojas mergulha sozinha no mítico universo do doppelgânger, que seria um monstro ou ser fantástico capaz de duplicar uma pessoa, gerando uma cópia ambulante pelo mundo. É um tema geralmente explorado com riqueza no cinema, seja em filmes mais doces (A Dupla Vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski) ou mais horrorizados (Doppelganger, de Kiyoshi Kurosawa). Com uma quedinha pelo horror simples, Rojas investe numa leitura perturbadora, levando uma professora de ensino fundamental (Sabrina Greve, excelente, premiada em Gramado pelo filme) a lidar com incomodas aparições de seu duplo.
 
Rojas se mune de trucagens em que Greve é duplicada na tela, no mesmo quadro, evidenciando que O Duplo não é low profile em sua técnica. Há uma tensão não exatamente presente, mas agarrada a este filme muito confiante no que há de esquisito em sua história. É um curta que mostra que o grande cinema pode estar numa coisa que não se vê do lado de fora da janela, ou na crescente repetição de um som.