sábado, 23 de fevereiro de 2013

Lincoln




O homem Lincoln

Gosto do Spielberg lúcido. Lúcido, não necessariamente sério. Amistad era sério e trôpego. A Cor Púrpura era sério, porém alucinado com o dramalhão (tem coisas constrangedoras ali). Lincoln é bastante lúcido. Talvez porque Spielberg nunca estivesse tão próximo de John Ford, que tem o seu próprio filme sobre o presidente, A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1939).

Um dos emblemas do cinema norte-americano, da cultura de imagem dos Estados Unidos, Ford filmou parte da história do país, filmou westerns, fez o rosto de John Wayne. Spielberg às vezes tem um pouco dessa pegada, do ser essencialmente norte-americano, característica muito mais visível em Clint Eastwood, outro que poderia ter feito este filme, e até melhor.

Engraçado que muitos observaram positivamente o flerte com Ford, mas não o fizeram para enriquecer Cavalo de Guerra, um Spielberg rejeitado, mas que já tinha ali muito do diretor de Rastros de Ódio, emulando uma era antiga, aquela sensação de cinema-escola. E ele filma como poucos.

Aqui, a escola é dialoguista. O roteirista Tony Kushner é mais conhecido por Angels in America, minissérie de 2004 dirigida por Mike Nichols, mas na mesma época ele trabalhava no roteiro de Munique (2005), o último grande Spielberg e, infelizmente, um tanto esquecido.

O ritmo de Lincoln é ditado por diálogos incessantes. Filme de conversação, um longa de fôlego e copo d'água, o que pode cansar espectadores muito mais do que qualquer precisão da história dos Estados Unidos.

Situado em 1865, no pulsar da Guerra Civil, não é exatamente uma cinebiografia. Como se portasse uma pinça, a história é delimitada pelos dias em torno da votação responsável por decretar o fim da escravidão nos EUA, política liderada pelo então presidente Abraham Lincoln, aqui interpretado com aquela exatidão esperada de Daniel Day-Lewis, ator fenomenal. Ele é, mais uma vez, favorito ao Oscar. Se vencer, será seu terceiro.

No gogó, Spielberg parece visualizar um filme sombrio (no sentido de "sombras" mesmo) durante horas de negociações, acertos e politicagens. Tem um olho incrível para a beleza dos planos, mesmo quando lhe parecem exigir simplicidade. Lincoln entre cortinas, à beira de uma janela, é bela imagem. É um sujeito alto, presidente varapau, estatura ricamente explorada por Spielberg, ao ponto de nutrir curioso estranhamento em determinadas cenas. Numa discussão com a esposa (Sally Field), momento que melhor repercute o tema paterno, tão caro ao cineasta, um autor, espaço para discorrer melodrama dos bons, montagem e posicionamento de câmera fazem da larga diferença de altura entre o casal um elemento de tensão e ameaça, ainda que Lincoln seja figura de extrema gentileza. Perto dele, a mulher lembra uma boneca de pano.

Essa relação com o físico do personagem é dos pontos mais interessantes do filme. A TV e um certo excesso de cinema de planos fechado nos habituaram a pensar atuação como rosto, a cinematografia do close, das feições, esquecendo a importância do corpo como um todo e sua reação ao espaço. A serenidade de Lincoln e suas raras explosões, mas que são quase inteiramente controladas e pensadas (o levantar da mão antes de bater numa mesa), estão no tempo que Day-Lewis leva para se mover, na precisão do caminhar, nas costas levemente curvadas.

Sem falar nada, Lincoln é um senhor de respeito, com claros anos já vividos e abatidos, cansados. Emana importância sem que haja a necessidade de qualquer uma das várias aproximações que Spielberg faz de seu rosto quando começa a dizer ou pensar algo relevante (neste filme, essa assinatura é quase um cacoete). Munido de cartola, isso permite a Lincoln uma assinatura visual que precede tanto homem quanto presidente, uma marca capturada pelo filme, sua silhueta e sua sombra no chão anunciando sua chegada ou sua partida. Tão emblemático que o filme se recusa a mostrá-lo atingido, caído. Prefere imortalizá-lo na chama de uma vela.

Por fim, é uma obra bastante capaz de superar a sensação "de americanos para americanos". A burocracia política do país fica atrás da noção de bipartidarismo. A bem da verdade, Spielberg é até bem didático naquilo que interessa. Republicanos e, principalmente, democratas (à época, eles representavam a visão conservadora, contrários a abolição da escravatura) quase possuem alvos na testa, e a cena dos votos é filmada e montada como uma disputa de pênaltis.

Lincoln, o filme, é mais tradicional que Django Livre, mas ambos se arquitetam sobre um mesmo grande tema humanista. Na dúvida, o personagem de Tommy Lee Jones praticamente desenha essa filosofia em sua última cena, até meio boba, mas, ok, passa o recado.

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