quinta-feira, 29 de novembro de 2012

007 - Skyfall



Este novo 007 poder ser a melhor coisa para a carreira de Sam Mendes, cineasta oscarizado em 1999 por Beleza Americana e que não parece envelhecer muito bem, seus filmes ficando de alguma maneira corroídos pelo esforço de alguma memória mais forte deles. Você pensa em Beleza Americana e pensa numa sacola vazia deslocada pelo ar e fica mais ou menos nisso. Ainda gosto do filme (e dos dois seguintes, Estrada para Perdição e Soldado Anônimo), mas até quando?

007 - Skyfall traz Mendes à franquia do agente britânico, talvez o nome mais pomposo a comandar a série. Com Craig, Javier Bardem e Ralph Fiennes no elenco, temos aqui o 007 mais caro da história, superando 200 milhões em orçamento. É a cobrança da arena de blockbusters de hoje, embora Skyfall mire uma curiosa homenagem ao passado.

Se Mendes tem uma sólida chance de se renovar por aqui, a mitologia de James Bond, renovada em 2006 com Cassino Royale (o melhor?), encara o destino de reciclagem, inevitável. 007 consiste justamente em um personagem imortal do cinema, mas envelhecido a cada era, substituído por anúncios de novos atores, novas equipes, novos tempos, novo tudo.

Mesmo com a enfadonhice de Quantum of Solace (2008), o arco de Daniel Craig como Bond sempre foi interessante por essa perspectiva. Um Bond claramente pós-Jason Bourne, é tratado e se comporta muito mais como uma espécie de soldado, tendo consciência disso e, o melhor, às vezes grilado com tais condições. Em Casino Royale falava-se muito de ego, e assim o Bond de Craig vira curiosa mistura de brucutu e fragilidade, nos melhores sentidos.

Skyfall sugere a não muito distante conclusão desta sua curta era. Reflete sobre passagem de tempo, envelhecimento, passado. Emulando algumas simplicidades, chega a lembrar um filme de espionagem antigo, com uma trama girando em torno de algo muito simples: proteger M (Judi Dench) de um vingativo ex-agente (Javier Bardem), espelho do que esse Bond poderia se tornar.

Bardem é incrível, aliás. Por mais que esteja inserido no pacote clássico de vilanices e nas ligeiras afetações de um estereótipo, escapa de qualquer desconforto. Um amigo definiu seu personagem como Frank-N-Furter loiro, e é bem por aí. Vilão para recordar, introduzido por Mendes com um plano sequência fixo, Bardem vindo do fundo até chegar a um quase close, uma primeira cena toda para si. O diretor é melhor nesses pequenos momentos do que nas obrigatórias cenas de ação, logo percebemos (há um desastre de trem que é normal para os padrões de hoje).

A história de caça e proteção nos levará, enfim, a conhecer um pouco da vida de James Bond, suas origens. O fato de suas raízes transportarem o filme para a Escócia indica elegante aceno a Sean Connery, o primeiro a interpretar o papel e, não seria injusto dizer, grande responsável por justificar a longevidade da série.

Essa sequência escocesa é impressionante. Skyfall é arremessado dentro de outro filme, isolado um ou dois tons mais pessoais, tudo a ver com o 007 solitário e abandonado escrito para Craig. O cenário é um casarão antigo, que em certo momento pega fogo e ilumina as cenas feito um farol, não deixando dúvidas de que um 007 fotografado por Roger Deakins é um 007 no mínimo singular.

Pena Daniel Craig aguentar, no máximo, só mais um. Ele é bom demais no papel, tanto quanto as agonias de seu Bond.

sábado, 3 de novembro de 2012

36ª Mostra SP - Na Neblina, de Sergei Loznitsa




Filme de sons e corpos ao redor
*escrito em 29 de outubro de 2012

Na Neblina teve a presença de seu diretor, Sergei Loznitsa, na sua primeira exibição na Mostra. Loznitsa apresentou seu trabalho se dizendo curioso em saber como uma parte do mundo não tão próxima da guerra receberia seu filme, que se passa ao oeste da União Soviética, então ocupada por nazistas. A Mostra exibe toda a carreira do diretor, numa incrível oportunidade de conferir seus documentários.

O ano é 1942 e o início de seu filme não poderia ser mais depressivo. Começa com um longo plano que leva a três enforcamentos, execuções que terão sua importância na história. É um plano que já dita com perfeição o tom impiedoso do qual Loznitsa cuida com atenção e, vá lá, algum carinho. Aqueles que assistiram a Minha Felicidade (2010), sua ficção anterior, puderam se preparar para esse tipo de ninar pesado. Ao lado de Além das Montanhas, de Cristian Mungiu, é a exibição que mais se sente à vontade no gélido ar condicionado dos cines Frei Caneca.

Dos três personagens centrais, um se destaca: Sushenya (Vladimir Svirskiy), sujeito acusado de traição. Em sua casa, ao lado da mulher, Sushenya é levado por um oficial da USSR e seu auxiliar. O objetivo é executá-lo a algumas centenas de metros dali, numa relação de captores-prisioneiro que chega a ensaiar algo de western. A missão não sai como esperada, muito embora Na Neblina não abandone em nenhum momento seu clima fatalista.

Os três homens estão mais para almas que vagam por campos distantes da guerra. Seus corpos, enquanto indivíduos mais sólidos, estariam nos flashbacks reservados a cada um deles. A Sushenya são concedidos os grandes momentos de Na Neblina, desde uma solitária lágrima, imagem que parece sintetizar o filme em sua solidão e tristeza (e, não muito atrás, desespero calado), até o último plano, uma elegante justificativa para o título. É um homem que carrega corpos.

Na Neblina é bem capaz de crescer conforme as pessoas deixam a sala, caminhando num ritmo semelhante ao do cinema de Loznitsa, como se fossem executar ou ser executados. O longa me parece ser baseado em som de tiro, assim como Blokada (2006), da carreira documentarista do cineasta, e seus poderosos sons destrutivos inseridos nas imagens de registro de um apocalipse real. Aqui, os tiros são altos e doídos, como devem ser as guerras.

Após a sessão, o diretor respondeu a algumas questões dos espectadores. Perguntei sobre o seu cuidado com o som, que tanto me impressionou. Loznitsa  disse ser sua parte preferida, a mixagem de som, mais que qualquer outro processo de filmagem. "Para mim, sons não são apenas sons. São música." Curiosamente, revelou não estar muito contente com os sons de tiros e explosões.

36ª Mostra SP - "Entre o Amor e a Paixão" e "Boa Sorte, Meu Amor"




De decepções e frustrações

Dois filmes que despertavam meu interesse já há algum tempo acabaram se revelando pequenas decepções: Entre o Amor e a Paixão (Take This Waltz, 2011), segundo longa da atriz Sarah Polley, e Boa Sorte, Meu Amor (2012), mais um representante da vivíssima safra pernambucana.

Há seis anos, Polley estreava na direção com Longe Dela, filme muito delicado que conseguia escapar daquele pacote Alzheimer de emoções lacrimosas, comum no tema. Trazia, ainda, bela atuação de Julie Christie, sustentando closes como uma verdadeira grande atriz. Era um primeiro trabalho maduro.

É aqui, na segunda investida, que a agora diretora está mais para uma aprendiz. Tem em mãos a clássica história de moça/mulher casada (Michelle Williams) que se apaixona por outro cara. Daí o... sábio... título nacional, pois ela está “entre o amor” matrimonial “e a paixão” jovial.

A julgar pela trilha sonora (tirar “Video killed the radio star” da cabeça é o desafio pós-sessão), passa perto de ser um As Pontes de Madison indie em sua premissa. A comparação com um dos maiores Eastwoods não faz bem ao filme.

Seth Rogen interpreta o marido, gourmet literário de receitas à base de frango e com senso de humor elaborado para se encaixar no ator. É um casal infantil e cheio de climão, em parte por conta de uma resistência sexual muito mal sustentada. Química entre Rogen e Williams é estranha e de difícil assimilação (por outro lado, talvez seja a ideia...), mesmo com outros personagens, amigos e amigas, rodeando suas vidas.

Relação com o novo moço, um aspirante a artista que ela conhece num voo e mora próximo à sua casa, não fica muito atrás. Interpretado por Luke Kirby como um cachorrinho para adoção, o rapaz desperta uma paixão incontrolável, recíproca e, oficializada em falas pouco convincentes (ver observação sobre “cachorrinho para adoção”), permeada de tesão.

Entre o Amor e a Paixão às vezes parece apenas uma brincadeira. Um jogo adolescente, transitando entre momentos inspirados e tentativas desengonçadas de reflexão em torno da rotina que acomete certos relacionamentos. A Polley amadurecida aparece numa cena de vestiário feminino, corpos nus de jovens e de idosas colocados em lados opostos; a Polley juvenil surge numa câmera gira-mundo durante sequência de passagem de tempo, as várias fases aventureiras de uma relação que se encareta aos poucos.

Woody Allen, por exemplo, fez mais com muito menos em seu Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos (2010), sequer um de seus melhores. No filme, o roteirista encarnado por Josh Brolin percebe que desejo é algo que depende da janela de onde se observa o outro. Cena breve, sutil e com a graciosidade entristecida que Polley parece buscar em todo o seu longa, mas encontrando somente uma comédia romântica no meio do caminho e ali estacionando.
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Já Boa Sorte, Meu Amor, estreia de Daniel Aragão, chama a atenção por, entre altos e baixos, somar à galeria inventiva, criativa e produtiva do atual cinema pernambucano, grande mina da cinematografia nacional. É, a exemplo do brilhante O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, filme com um olhada e uma mão dadas a um passado (de pessoas, de regiões e, com sorte, do país) que ditará certas regras no presente.

A fotografia é de Pedro Sotero, também fotógrafo de O Som ao Redor. Realiza aqui um preto e branco severamente contrastante. Boa Sorte, Meu Amor beira o quadrinesco, namorico estético que as divisões de capítulos não deixam negar.

Aragão fez um filme visualmente bonito e, de certa forma, paciente, pois seus rumos finais viram outra coisa, de difícil precisão, com lugar para pelo menos uma cena forte. O acúmulo de incertezas é até capaz de combinar com o tom quase alienígena a que algumas cenas se submetem, como no encontro entre o protagonista e o pai de sua namorada e também ao que me pareceu uma referência (e ponto alto do filme) a Skyscraper Symphony, curta avant-garde de 1929.

Para uma (?) escola (?) tão incomodada com a prédiozação de Recife (Gabriel Mascaro, Kléber Mendonça Filho...), prédios e edifícios se fazendo de equalizadores de notas musicais gritantes é uma passagem que tem seu brilho.

Nosso personagem principal, Dirceu, trabalha justamente para uma empresa de demolição, sujeito próximo a esse mundo feito do que é concreto. Apaixona-se por Maria, estudante de música, garota escorregadia como a arte. Ela lembra uma visão no olhar e na câmera de Aragão, que a introduz com longo close em câmera lenta, uma espécie de encanto faceiro.

O protagonista, porém, não é dos mais fáceis. Trata-se de personagem que, se não é, soa meio babaca, e o filme não demonstra saber lidar muito bem com isso. Boa Sorte, Meu Amor sugere, enfim, uma história de redescoberta, ou melhor, de renascimento – ou, ainda melhor, de reconstrução – mas de um sujeito que não tem muito que oferecer além do que me pareceu ser uma constante tensão mimada.
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Por fim, a frustração da Mostra foi, na verdade, o cancelamento de uma de suas exibições mais esperadas: a cópia digitalmente restaurada (4K, som 7.1, um sonho) de Tubarão, de Steven Spielberg, que teria sido exibido na segunda-feira, 22/10, no Cine Frei Caneca 1. Grande fila, fãs, ingressos aparentemente esgotados, expectativa para ver na tela de cinema um dos melhores (talvez o melhor) Spielbergs.

Era a primeira das quatro sessões programadas para a Mostra. Não rolou. A explicação: “O arquivo não abriu.” Ofereceram um filme russo no lugar.

36ª Mostra SP - Tabu (2012), de Miguel Gomes




*Texto escrito em 22 de outubro/2012

Miguel Gomes e os encantos narrativos

Encarado como um dos grandes filmes a serem vistos na Mostra, Tabu parece fazer jus às expectativas, burburinhos e comentários empolgados pelos corredores freicanecanos e andanças da Augusta entre uma sessão e outra. Miguel Gomes, cineasta português, vem do elogiado Aquele Querido Mês de Agosto (2008), longa que não captou muito de minha atenção, sem me dizer grande coisa, talvez merecendo uma revisão (quem sabe na própria Mostra, onde é exibido ao lado de seus outros filmes). Aqui, fez algo realmente imperdível, uma dessas obras capazes de se abrigar num tempo (ou, no caso, dois tempos), numa política, numa relação histórica e numa visão de sentimento.

Filmado em preto e branco e resolução 4:3, Tabu ainda é um meio filme mudo. Tem-se a impressão de estar diante de um trabalho incapaz de pertencer a algum período específico – as partes mudas são, na verdade, sonorizadas por eventuais sons ambientes, risos e trilha –, embora ecoe um cinema antigo. Murnau, de Aurora, é uma clara referência.

Não soa, porém, como homenagem ou exercício, tarefas cumpridas – e muito bem – por diretores como Aki Kaurismäki (Juha, 1999) e o oscarizado Michel Hazanavicius (O Artista, 2012).

O que Gomes faz é trazer resquícios de seu país colonizador para elaborar, de maneira muito literária, belíssima história de romance. Cuidadosamente aquecidas, muitas de suas características só serão reveladas cenas à frente, sem que seus aspectos literários comprometam suas imagens, encantos por si só.

Uma narração, voz fascinante em sua indiferença, nos leva pelo filme como quem conta uma história de ninar. Há todo um tom de fábula a acariciar Tabu, impressão gentilmente cedida por seu prólogo: um pequeno conto aventureiro situado na África e que traz na imagem de um jacaré o elo entre o contemporâneo e anos não esquecidos.

No presente, uma senhora viciada em cassino vive aos cuidados de sua empregada cabo-verdiana, (interessante presença, ela lê uma edição juvenil de Robinson Crusoé), e, indiretamente, de sua atenciosa vizinha de apartamento. Juntas, as três sugerem passados diferentes de uma mesma nação.

Apesar de sadia, a idosa já parece velha o suficiente para apresentar leves traços de senilidade. São, na verdade, apegos a lembranças, memórias doces e dolorosas que serão traduzidas por outro personagem, teletransporte cinematográfico que Gomes realiza sentado à mesa.

Possível obra-prima, Tabu é capaz de revisitar a relação entre dois continentes através de um delicado filme de amor. Aquele gesto de virar-se para trás, lançando olhar dos mais sentidos.

36ª Mostra SP - Quatro Dias em Maio




Quatro Dias em Maio (4 Tage Im Mai, 2011) de Achim Von Borries

Filme alemão caretaço sobre a Segunda Guerra Mundial, limitado ao feijão-com-arroz do jovenzinho que vira amigo de soldado(s). Historinha de “militares bons” e “militares maus”, novelinhas passadas e repassadas tantas vezes, e por tanta gente melhor (Spielberg?).

Quatro Dias em Maio se passa nos dias de desistência nazista, quando restantes de tropas perdiam suas obrigações de combate. Um menino alemão se vê na posição de prisioneiro de um grupo do exército soviético e de possível informante de algumas sobras vagantes dos nazistas.

Com pequena alma de soldado, talvez nascido no tempo errado para isso, o jovem cria certo vínculo com o russo de maior patente, um “homem de bem”, e com uma moça alemã, que, mulher atraente, é vista como pedaço de carne em meio a hienas de uniforme. No filme, aprendemos – ora, vejam só – que brigar por mulher pode transformar aliado em inimigo e inimigo em aliado.

Curiosamente, este exemplar de cinema clássico dos mais irritantes encontra-se numa Mostra que tem como tema a retrospectiva Andrey Tarkovskiy, cineasta que, ao lado do também russo Elem Klimov (Vá e Veja, 1985), soube resumir a complexidade de uma guerra no rosto de um garoto. Colocar A Infância de Ivan (1962) muito próximo à simploriedade de Von Borries deve causar uma espécie de abalo sísmico.

36ª Mostra SP - Dia de Garrone

Reality, de Matteo Garrone

O Resto do Mundo (Le reste du monde, 2012), de Damien Odoul

Damien Odoul está com dois títulos na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: A Riqueza do Lobo e o telefilme O Resto do Mundo, ambos de 2002. No caso do último, roncos e bocejos foram devidamente registrados durante a sessão.

Odoul fez de O Resto do Mundo o que se espera de produções para TV, uma coisa repleta de cabeças falantes, com mais da metade de suas cenas cortadas acima do pescoço, pensadas para se acomodar na tela pequena.

Nessa vitrine de rostos, a modelo canadense Marie-Eve Nadeau surpreende como protagonista. Ela é muito boa, apesar de ser tudo muito chato e enfadonho, dando aquela sensação de que televisão ruim é parecida em qualquer lugar.

O filme tem, por exemplo, interessante presença de Emmanuelle Béart em papel (coadjuvante) de acabada, mas que rapidamente se transforma num dos vários clichês de algo que quer ser tão baixo astral e mostrar que “famílias têm problemas”.

O filme fala de suicídio e gravidez para quem está em casa, jantando uma comida congelada qualquer.


Reality (2012), de Matteo Garrone

Reality não poderia se distinguir mais da chatice audaciosa que é Gomorra (2008), trabalho anterior de Matteo Garrone. Temos aqui um filme que gira entorno de apenas um personagem, Luciano (Aniello Arena, um achado), peixeiro de Nápoles que, a fim de agradar suas pequenas filhas, faz um teste para entrar no Grande Fratello, a franquia italiana do Big Brother.

Por todo o filme, o espectador é levado a acompanhar, de mãos dadas, um homem comum que adoece aos poucos.

Casado, três filhos e com certa estabilidade, ele imerge em suas próprias noções fantasiosas, clima de irrealidade sugerido por Garrone logo no plano de abertura, um maravilhoso movimento de câmera aéreo nos apresentando uma charrete vitoriana percorrendo as ruas da Nápoles moderna.

É o primeiro de muitos planos abertos que, com trilha de contos de fadas, envolvem Luciano numa cada vez mais triste sensação de esperança.

Maior parte do filme, porém, traz Arena bem próximo à câmera, rosto enorme na tela. Ator que se revela incrível, há um olhar infantil nele que chega a ter algo de Renato Aragão, piscando inocência por todos os lados, o que me pareceu de uma beleza muito especial.

É um sujeito grande reduzido a fraldas, psicologicamente falando, movido por obsessões e até mesmo paranoias, momentos realizados com risos e sorrisos. Há uma cena envolvendo um gafanhoto que é quase inacreditável como Garrone consegue encaixá-la com tamanha naturalidade. Reality diverte, mas sempre deixando um aperto sentido.

Seduzido por bizarrices e patetices, o universo das celebridades sempre foi solo fértil para criticar o que haveria de mais vazio em seu modo de viver, sua realidade paralela.

Filmes como A Malvada (1950) conseguiram refletir sobre isso com acidez exemplar, enquanto Fellini e seu A Doce Vida (1960) viram beleza e melancolia nesse mundo peculiar, mas com visão não menos crítica, olhar que também gerou um Woody Allen encarado como menor, Celebridades (1998).

Da grande sátira de Paul Verhoeven a Hollywood, Showgirls (1995), ninguém quis saber, infelizmente.

Garrone parece ter adicionado uma zoada sadia a essa lista que, claro, é muito maior. Cena situada em uma boate escancara seu desejo de ridicularizar o que já é facilmente ridicularizável, resultando numa galhofa boa de ver. Belo filme sobre aparências e ilusões, com indiscutível guinada em direção a um desfecho arrasador.


Hemel (2012), de Sacha Polak

Primeiro longa da diretora holandesa Sacha Polak, aqui tentando falar de sexo “numa boa”. Traz como título o nome de sua protagonista, Hemel (Hannah Hoekstra), moça bonita de doer e que parece viver para transar.

Além de homens, ela cultiva sua relação com o pai alguns graus acima na escala de intimidade, sugerindo algo de incestuoso que, podemos desconfiar, está ali apenas para adicionar mais um elemento sexual à vida da garota.

Acaba soando como um soft porn que se finge de filme para adolescente pensar, o que provavelmente seria medíocre mesmo se não fosse fingido, mergulhando em moralismos e conservadorismos óbvios assim que personagens vestem roupa.

Looper



Filme de gêneros

Um filme muito bom que pode estar passando despercebido nos cinemas é Looper, que no Brasil ganhou o subtítulo Assassinos do Futuro. Apesar de esbanjar Bruce Willis e Joseph Gordon-Levitt em seus cartazes muito feios, a produção talvez tenha afastado aquela parte do público que vai ao cinema como vai a qualquer loja de shopping, em busca de produtos que serão trazidos em caixas do estoque, separadas por tipos e gêneros bem definidos. Num primeiro momento, nenhum problema quanto a isso, ao “ser de gênero” (temos grandes filmes assim), mas o próprio cinema, sobretudo na força de divulgação hollywoodiana, passou a criar espectadores que se orientam por seções de videolocadoras antes de procurarem interesses mais específicos em relação a este ou aquele filme.

Essa tarefa de classificar filmes em gêneros de prateleira, além de gerar eventuais bizarrices (O Paciente Inglês já foi AÇÃO para uma loja Blockbuster, anos atrás) teria em Looper um desafio. Policial? Ficção-científica? Drama? Que diabos?

Seu diretor e roteirista, Rian Johnson, já havia estreado em 2005 com algo um tanto incomum, o também muito bom Brick (aqui encontrado como A Ponta de um Crime), espécie de “noir colegial”. É um cineasta bem interessante em seus hibridismos, sem dúvida, e continua filmando muito bem, câmera leve e solta como um trapezista.

Aqui, Johnson nos leva a futuros, maior parte de sua história se passando em meados da década de 2040, vista aqui como um tempo sucateado, embora não apocalíptico. Na verdade, nada muito diferente do que conhecemos hoje, exceto por motocas voadoras, mas ainda motocas. Personagem de Levitt trabalha é um dos loopers, empregados contratados para matar pessoas que a máfia envia do futuro, 30 anos à frente, bela maneira de sumir com corpos. Às vezes, são os próprios loopers os alvos enviados, acordo milionário cujas consequências Johnson ilustra com o que parece ser um loop na própria narrativa (muito bom, mesmo). Toma essa, H.G. Wells.

Bruce Willis interpreta Levitt trinta anos mais velho. Num jogo de maquiagem incrível e, dizem, sem uso de efeitos especiais, temos Willis e Levitt muito parecidos em aparência. Os dois funcionam que é uma beleza, combinação curiosa entre uma eterna referência de action hero sólido e um pequeno querido cult (Gregg Araki que o diga) em ascensão a astro cool após ser adotado pelo bam-bam-bam Christopher Nolan (A Origem, Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge). Diálogo entre os dois num restaurante de estrada é importante para a narrativa e só convence na sua filosofia “deixe-se levar” porque é dado tempo a eles, a seus devidos olhares e falas.

Aquele espectador em busca do gênero perfeito ainda deverá estranhar seu sci-fi policial levar sua trama para uma fazenda tipicamente norte-americana e de lá não sair. Neste cenário, surgem outros dois personagens, mãe e filho que deixarão o filme alguns níveis mais intrigantes. O menino é... um fofo, pode acreditar.

Looper tem, enfim, a manha de ser "filme-de-viagem-no-tempo" na primeira metade e depois praticamente virar um horror paranormal, inquietação das boas que só vem a sossegar num final amarradinho.

Deve sair de cartaz logo, restando procurá-lo em locadoras, seja lá onde o enfiarem.

Cinco curtas queridos da 12ª Goiânia Mostra Curtas

O Duplo, de Juliana Rojas

Durante a primeira semana de outubro, Goiânia teve o prazer de receber curtas-metragens de praticamente todo o país. O Goiânia Mostra Curtas chegou à sua 12ª edição, mais de uma década trazendo filmes de pequena duração, alguns deles revelando olhares iniciais de cineastas que podem construir carreira de interesse.
 
Mais uma vez abrigada pelo Teatro Goiânia, local da maior parte de suas edições, a Mostra deste ano ocorreu entre 2 e 7 de outubro e exibiu mais de quarenta curtas somente na sua principal Competitiva, a Curta Mostra Brasil. Em meio a estas dezenas de produções, cinco delas cativaram minha atenção o suficiente para registrar uma ou outra reflexão mais profunda, cinemas de tiro curto capazes de gerar inquietações mais extensas. Certamente mereceram a tela grande em que foram vistas, mas fica aqui a sugestão para, futuramente, procurá-los em telas menores.
 
Capela (SP, 2011), de Gustavo Rosa de Moura

Talvez o mais curioso de todos os filmes exibidos, Capela se divide em três partes: “Manhã”, “Tarde” e “Noite”, cobrindo uma tradicional festa da cidade de Capela, interior do Sergipe. Trata-se de um documentário com um carinho pelo experimental, capaz de conceber, com recursos tão simples, uma fascinante atmosfera apocalíptica durante seu registro festivo.
 
Há algo de espiritual em torno do curta, não apenas pelo seu título e nome da cidade, mas por conseguir, em seu caráter de documento, uma pequena sensação de fim do mundo, uma brincadeira séria com fogos enlatados que voam pelos céus e giram alegremente pelas ruas. No terço final, Moura parece enfeitiçado por esse descontrole, gente a pé e montada a cavalo tentando capturar e arremessar buscapés, latas cuspidoras de fogo. É insano e beira o poético, chegando a lembrar dos curtas experimentais de Apichatpong Weerasethakul, cineasta tailandês.
 
Capela foi o premiado do Júri Prêmio Especial ABD-GO. Trailer: http://mirafilmes.net/destaques/capela/
 
Desterro (BA, 2011), de Cláudio Marques e Marília Hughes

A Barragem de Sobradinho, construída durante os anos 70, obra do regime militar, tem papel importante no curta de Cláudio Marques e Marília Hughes. Há mais de 30 anos, a construção da barragem desabrigou quatro cidades (Remanso, Casanova, Feito Sá e, parcialmente, Pilão Arcado), que acabaram submergidas. Duas mulheres estavam lá: Thereza Batalha, registrando, com uma câmera Super 8, a remoção de mais de 70 mil pessoas, e Dona Pequenita, moradora de Pilão Arcado e a única a retornar à cidade, tornando-se a residente solitária do que se tornou uma cidade fantasma.
 
A riqueza de Desterro está em como ele revela o que de fato é. A própria Dona Pequenita surge como uma alma abandonada, sensação criada depois de Marques e Hughes filmarem o pequeno município esquecido por meio de uma série de planos de casas mortas e lugares ocos, sem vida, dando tempo às imagens. Um cachorro perdido faz aquilo tudo respirar, até que nos leva, com muita calma, ao que realmente interessa: a história que envolve estas mulheres, fortalecida pelas imagens de arquivo de uma intervenção governamental que, na bela dimensão trabalhada pelo filme, chegou a passar por cima de verdadeiras existências.
 
Corpo Presente (PE, 2011), de Marcelo Pedroso.

O curta de Marcelo Pedroso, diretor do longa Pacific (2009), um dos documentários mais interessantes a surgir no Brasil nos últimos anos, pode exigir certa paciência do espectador. Boa parte de seus 22 minutos é dedicada à preparação de um boneco-defunto, imagens que, se são estranhas no princípio, passam a sugerir sua relação com a morte. Pedroso filma com frieza e enquadramentos clínicos, cirúrgicos, praticamente fatiando este “corpo” com a montagem. Não há trilha, o que potencializa cada som desse procedimento, uma literal limpeza de corpo e, talvez, alma.
 
O que Pedroso parece fazer com Corpo Presente é nos colocar, com tanta secura, diante da inevitável certeza da morte e da eventual inexistência de um corpo, ainda que, como sugere o final, permaneça como memória. Boneco, corpo, caixão, cremação e cinzas constituem, aqui, um conjunto muito sólido, podendo gerar aquela incômoda sensação de desamparo que vez ou outra se faz presente em cada um de nós. O filme tem força.
 
Corpo Presente recebeu Menção Honrosa pelo Júri Oficial, ao lado de O Duplo, de Juliana Rojas.
 

Porcos Raivosos (PE, 2012), de Isabel Penoni e Leonardo Sette

Eis a sinopse mais atrativa da Mostra: um grupo de mulheres decide fugir ao descobrir que seus maridos se transformaram misteriosamente em porcos furiosos. Porcos Raivosos foi exibido na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes deste ano, sua primeira projeção pública.
 
No curta, Penoni (antropóloga e diretora de teatro) e Sette ficcionalizam um mito indígena ao mesmo tempo em que documentam a tribo, sobretudo suas figuras femininas, de modo dos mais intrigantes. As mulheres em questão são índias da aldeia dos Kuikuro e quase todos os 10 minutos de filme são centrados nelas, que se comportam de maneira ritualística e, a partir de certo momento, defensiva. O som do filme é uma coisa, sugerindo algo possivelmente ameaçador do lado de fora da tenda, com os diretores mantendo a curiosidade no talo.
 
Sette e Penoni podem ter feito aqui um belo casamento entre o documentário antropológico e a narrativa fantástica. A câmera encara as índias de frente, as quais rebatem o olhar com muita força, celebrando, por fim, uma captura que talvez signifiqu para o espectador ocidental um rico feminismo simbólico. Uma vez que a temática desta edição da Goiânia Mostra Curtas se concentrava em diretoras mulheres e a feminilidade no cinema, faria sentido. Bonito.
 
Teaser de Porcos Raivosos: http://vimeo.com/48182481
 
O Duplo (SP, 2012), de Juliana Rojas

Juliana Rojas esteve envolvida com a Mostra de inúmeras maneiras: debate, oficina de direção, encontro de realizadores e as exibições de Um Ramo (2007), seu segundo curta ao lado do parceiro Marco Dutra, e O Duplo (2012), trabalho mais recente e, desta vez, solo. É, além de tudo, uma protegida da produtora Sara Silveira, mulher por trás de, entre outras coisas, os filmes do grande Carlos Reichenbach, cineasta recém-falecido.
 
Trabalhar Cansa, primeiro longa de Rojas e Dutra, foi exibido em julho no FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiental. É um desses filmes que dividem opiniões em seu trajeto e, com isso, constroem um interesse a mais em torno de si, especialmente por sabermos que temos aqui uma dupla de cineastas interessada num cinema incomum no Brasil: aquele que flerta diretamente com o fantástico. Zé do Caixão foi um dos poucos, quem sabe o único, a criar carreira nesse sentido por aqui, e mesmo assim de um jeito só dele. Rojas e Dutra orquestram algo menos avesso ao comercial, muito embora ainda façam um cinema de nicho e da admiração pelo estranhamento, isso desde o primeiro curta dos dois, o mórbido (e ótimo!) O Lençol Branco (2004), em que uma mulher tem dificuldades para aceitar uma perda familiar.
 
O elemento família é uma constante na obra de Rojas, assim como a protagonista feminina. Dentro de seu olhar sobre o fantástico, essas assinaturas parecem convergir para a vulnerabilidade humana daquela criatura que passou a ser tão cobrada em tudo, a mulher moderna. São personagens críveis e, na mesma medida, incríveis.
 
Em O Duplo, Rojas mergulha sozinha no mítico universo do doppelgânger, que seria um monstro ou ser fantástico capaz de duplicar uma pessoa, gerando uma cópia ambulante pelo mundo. É um tema geralmente explorado com riqueza no cinema, seja em filmes mais doces (A Dupla Vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski) ou mais horrorizados (Doppelganger, de Kiyoshi Kurosawa). Com uma quedinha pelo horror simples, Rojas investe numa leitura perturbadora, levando uma professora de ensino fundamental (Sabrina Greve, excelente, premiada em Gramado pelo filme) a lidar com incomodas aparições de seu duplo.
 
Rojas se mune de trucagens em que Greve é duplicada na tela, no mesmo quadro, evidenciando que O Duplo não é low profile em sua técnica. Há uma tensão não exatamente presente, mas agarrada a este filme muito confiante no que há de esquisito em sua história. É um curta que mostra que o grande cinema pode estar numa coisa que não se vê do lado de fora da janela, ou na crescente repetição de um som.