sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Quando Eu Era Vivo


Quando Eu Era Vivo e os cômodos eram mortos

Existe alguém com um norte tão bem definido no que diz respeito a fazer cinema de terror e horror no Brasil quanto o Filmes do Caixote? Cinema de terror que tenha um tato minimamente comercial, no caso. Que tenha alguma facilidade de chegar ao público médio, considerando, ainda, a falta de tradição que temos no gênero (José Mojica é um caso ímpar, cuja obra se tornara cult em relação a si própria).

Marco Dutra e Juliana Rojas sempre ousaram embrenhar por esse lado. Dirigindo em dupla, realizaram curtas que se assumem como cinema de gênero (O Lençol BrancoUm Ramo), assim como Trabalhar Cansa (2011), primeiro longa dos dois e que também se entrega ao fantástico. Em Quando Eu Era Vivo, Dutra dirige solo, enquanto Rojas (que filmou o seu próprio curta fantástico em 2012, O Duplo) põe as mãos na montagem. Parecem saber o que quer, e isso fica cada vez mais evidente no que têm filmado.

Acho que foi o José Geraldo Couto, no Blog do IMS (Instituto Moreira Salles) o primeiro a observar, em texto, certas semelhanças entre Quando Eu Era Vivo e o cinema de Roman Polanski. Couto chega a exemplificar com uma cena específica de O Inquilino (1976), mas a lembrança também pode chegar a O Bebê de Rosemary (1968) e até mesmo Repulsa ao Sexo (1965), no que já teríamos aí uma trinca bem certeira do autor polonês.

Polanski sabia - e ainda sabe, como podemos verificar no recente Deus da Carnificina, de 2011 - adoecer seus espaços e, com eles, os personagens que ali abrigam. É um mestre em transformar espaços fechados em algo um tanto demente: quartos, cômodos, apartamentos inteiros. Um conjunto de paredes, algo tão sólido, capaz de se colocar como uma presença a mais, uma coisa a ser sentida, não raramente com os piores efeitos possíveis.

Na história de um homem (Marat Descartes) que volta a morar temporariamente com o pai (Antônio Fagundes) após se separar da esposa, Quando Eu Era Vivo ecoa muito dessa influência, confirmando um cineasta que produz por meio de uma cinefilia que não morre em si mesma. Porque Quando Eu Era Vivo compreende certas regras, com as quais Dutra acaricia no atacado e no varejo, às vezes brincando com clichês do gênero (a gaveta, a maçaneta), outras vezes levando a sério, embora com aquele sorrisinho de lado, crendices e folclores facilmente reconhecidos por nossa cultura de superstição. A cena em que Descartes, sentado numa cadeira, é "benzido", é um acerto absoluto, pois, além de saltar do cômico para a tensão extrema (e reveladora), traz toda uma carga de crença popular, tão comum ao brasileiro, inclusive a classe média, justamente o campo de exercício do Filmes do Caixote.

Após bela abertura de créditos iniciais e uma introdução com gravações de arquivo que, colocadas ali no começo, parecem logo estimular a imaginação macabra que será fundamental para o filme, o pai, recebendo seu primogênito, reapresentará ao filho o prédio e, sobretudo, o apartamento. A cada olhada de Descartes pela sala, Dutra devolve com um plano de ponto de vista, nos mostrando o que o protagonista olha, vê e observa, numa espécie de raio-x inicial do lugar. Terá de dormir na sala, uma vez que seu antigo quarto está agora ocupado por uma estudante de música (Sandy), que pode não ser a única inquilina ali dentro.

A habilidade de canto da moça possui papel fundamental na história (baseada em A Arte de Produzir Efeito sem Causa, de Lourenço Mutarelli), o que faz de Sandy o cajado a matar duas capivaras de uma vez, muito embora pareça à vontade somente com 50% da faceta da personagem, os outros 50% talvez carentes de alguma força e impacto, principalmente ao lado de Descartes, impecável no seu mix de lassidão e "enfermidade".

Descartes leva seu personagem, Júnior, a novos estágios de delírio. Obcecado pelas antigas gravações em VHS e pela memória da mãe, por sua vez chegada num ocultismo, não hesita em investigar e desenterrar o passado familiar. Faz isso de maneira concreta, resgatando objetos e remodelando o apartamento. O espaço fechado finalmente toma corpo, assumindo-se macabro. A possessão de um lugar cotidiano.

A câmera de Dutra pode não entortar e suas imagens podem não se impregnar de uma elasticidade febril como em Polanski, mas a apreensão de que algo estranho e "vivo" se esconde por trás de tanta tralha e decoração peculiar é bastante similar. Há em Dutra certa rigorosidade e estabilidade contínua dos planos, até mesmo delicadeza, que fazem desse apartamento algo íntimo e, portanto, assustador conforme tal familiaridade passa a ser associada ao inexplicável. Essa sensação vai desde, mais uma vez, gavetas e maçanetas, objetos tão comuns do dia-a-dia e eternamente requentados pelo cinema de gênero, até um boneco do Fofão filmado de modo encapetado e capaz de remeter à infância de muita gente; aquele receio do que pode estar à espreita no cantos da casa, atrás da mobília, nos corredores mal iluminados, na esquina da porta, no olhar de um boneco. Um filme de clima, sem dúvida.

A infância, por sinal, age como tiro de largada do longa. É a fase em que mais estamos sujeitos a nos impressionar, afinal. Mesmo que venha a adquirir um aspecto redundante e repetitivo, retendo um pouco o ritmo do filme, é no material das fitas em VHS que a infância é exposta. Não por acaso, em várias momentos Descartes lembra uma criança crescida.

Se Quando Eu Era Vivo não esconde ter sua raiz no núcleo familiar apodrecido (por mais que o último diálogo sugira um desfecho mais leve do que de fato é), é da infância que nascem os incômodos. O primeiro registro em VHS, logo no começo, é quase uma versão condomínio de causos contados ao redor de fogueira de acampamento.

Dutra fez aqui um filme de bruxaria dos bons. Que o cinema brasileiro não tenha medo dele.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Frances Ha

Amores modernos

Vi com atraso o Frances Ha (2012), muito comentado/divulgado em terra brasilis por ser coprodução brasileira, com dedo de Rodrigo Teixeira no meio. Salvo engano, foi bem visto por aqui, e há alguns dias esteve de novo em cartaz em Goiânia, na semana da Retrospectiva 2013 do Cine Cultura, tendo sido um dos sete mais votados pelo público.

O filme é dirigido por Noah Baumbach, que em 2005 fez o muito bom A Lula e a Baleia e depois não engatou nada de muito interessante (Margot e o Casamento em 2007 e O Solteirão em 2010). Até chegarmos a este Frances Ha, um aceno dos mais graciosos para o cinema francês, a Nouvelle Vague, sobretudo para Leos Carax e François Truffaut.

Ou, como completou um amigo, não um aceno, mas uma levada pra cama, uma esfregação, umas pegadas, tudo sem abandonar a ternura, em nenhum momento.

Conhecemos um pouco da vida de Frances (Greta Gerwig), moça - ainda nos 30, afinal - de Nova York que não tem residência própria, nem namorado, tampouco emprego. Divide apartamento com a melhor amiga (Mickey Summer), é considerada "inamorável" por outro roomate e é apenas aprendiz de dançarina numa companhia de dança que pode ou não contratá-la para trabalhar.

Dito assim, soa como uma dessas comédias românticas previsíveis, em que todos os problemas começam a ser resolvidos a partir do momento em que a protagonista encontra um cara. No entanto, Frances Ha, filme e personagem, ao contrário de qualquer coisa com Zooey Deschanel, é mais íntimo da autenticidade do que se supõe.

Entre as dificuldades de se virar sozinha, temos uma mulher - já nos 30, afinal - a (re)descobrir sua identidade. Para tanto, a interpretação de Gerwig é uma exatidão, fazendo de Frances um traço alegre e meio torto, um hífen embaçado a dividir uma moça-mulher, e Baumbach a filma assim, quase como uma menina grande. Há nela certa timidez e insegurança, mas também explosões espontâneas que a levam, enfim, a aproximar-se de si mesma e, não surpreendentemente, da França, que é sobretudo uma aproximação do próprio filme.

O início, coleção de cenas que resumem a proximidade entre Frances, cujo nome lembra "França", e sua amiga de nome francês, Sophie, parece resumir a força do filme. Estão elas, sempre juntas, no parque, na lavanderia, no apartamento, quase eternas. Não demora para que nossa protagonista perca o que parecia ser uma de suas bases e tenha que aprender a se reconfigurar, se jogar no mundo, movida por sentimento, porque é assim com boa parte das pessoas, certo?

Ainda que singelo, esse começo é muito poderoso. Entrega-nos um filme de amor. Não o amor romântico (inexistente no filme, chegando a ser descartado ao menor indício de que algo pudesse acontecer, como num diálogo entre Frances e um de seus dois roomies; é, não há clima de Jules e Jim aqui), mas o amor de amizade. E é dessa relação afetuosa que surge a paixão pelo cinema moderno francês, um "modern love" como o que serve de trilha para a corrida de Frances no meio da rua, espelhada no pique dado por Denis Lavant em Sangue Ruim (1986), de Carax.

Frances corre como Lavant (embora para o outro lado, para a esquerda, porque essa corrida é dela), dança molecamente à beira de uma fonte e do nada decide viajar pra Paris por apenas dois dias. Enquanto isso, Baumbach dosa seu longa com cortes descontínuos, trilhas de Georges Delerue e um preto-e-branco ao mesmo tempo doce e insinuante, ou seja, um pacote Nouvelle Vague que faz da visita à capital francesa, tão impetuosa para a personagem, algo natural, para não dizer inevitável. Todos os contratempos parecem levar àquele destino, de importância física (para a protagonista) e simbólica (para o filme), cidade em que, não por acaso, incentivará cena de declaração das mais bonitas.

Felizmente, o filme está longe de ser refém de suas referências, evitando se transformar numa brincadeira interna entre cinéfilos (porque, como já disse uma vez, com o amor moderno pelo cinema também nasce e se desenvolve uma faceta um tanto insalubre da cinefilia). Toma logo uma vida própria, lá no começo mesmo, naquelas brincadeiras joviais que ignorariam qualquer censura adulta. O plano final, que serve de fundo para os créditos, não deixa a menor dúvida: Frances Ha, filme e personagem, finalmente oficializam seu encontro.