sábado, 22 de janeiro de 2011

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas



Cinema 6-D

É realmente complicado escrever sobre Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010). Há, inclusive, uma pequena sensação de risco, pois é um filme que, de certo modo, te desafia em sua imersão como cinema, e, não menos importante, de onde parte esse cinema e como nos relacionamos com ele. E o tailandês Apichatpong Weerasethakul (ou apenas Joe, como ele mesmo sugere) é muito bom nisso, talvez um dos melhores do que poderíamos chamar de cinema sensorial, mas com o cuidado para que tal termo não limite sua obra.

Entre outras coisas, o trabalho de Joe sugere o cinema de uma Tailândia dicotômica em comunicação com o mundo. Quando Joe pega seus Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século e os divide ao meio, ou trabalha com elementos de modernidade em filmes, digamos, essencialmente mais “rurais”, não há exatamente um efeito de choque, pois não há agressividade alguma, tampouco o privilégio de um a outro. Joe localiza uma Tailândia harmoniosa, tudo muito suave, assim como vários minutos de Tio Boonmee dedicados a um quarto que aparentemente não tem nada a ver com o restante do filme, mas, em toda a postura rotineira das cenas, não se opõem. “Personagem” tradicional da imagem asiática, a figura de um monge, por exemplo, com frio devido à sua cabeça raspada estar na direção do ar-condicionado pode parecer detalhe, mas é carregada de forte simbolismo no cinema deste artista.

O longa é a sequência de um projeto iniciado em um curta de 2009, intitulado Uma Carta Para Tio Boonmee, e, narrativamente, Joe pode ter realizado aqui o seu filme mais claro. Em suma, faz exatamente o que explicita no delicioso título: acompanhamos tio Boonmee, um adoecido fazendeiro que relembra algumas de suas vidas passadas. São recordações que surgem juntamente com o retorno de alguns de alguns entes queridos, momentos que Joe filma com simplicidade, mas carregado em tom de mistério e espiritualidade, um tom que se fortalece com o interesse de Joe em colocar personagens natureza adentro, com sons muito vivos. O verde é orgânico e poderoso, parte do longa filmada e sonorizada com uma câmera-mato que envolve e deslumbra. Cinema 6-D, sem óculos.

Também parece ser rico enxergar em Tio Boonmee um olhar asiático sobre a morte. A peregrinação do personagem título se torna um desbravamento quase mítico em seu existencialismo levemente fantasioso. Se Godard, com um close e um corte seco, colocou o universo numa xícara de café, Joe coloca todo um céu estrelado (o universo?) dentro de uma caverna, mais tarde comparada a um útero.

Temos em Joe um cineasta com perfeito domínio de uma atmosfera. O que mais chama a atenção é que o enigmático está mais no clima, criado e alimentado por enquadramentos estranhos durante um diálogo, por meros pares de olhos vermelhos ou pela súbita inserção de uma fábula sobre a relação entre uma princesa e seu servo. Além de enriquecer o filme em beleza com todo o encanto dos sons e do azul de uma cachoeira, essa fábula não apenas reforça o gosto de Joe por fábulas em si (Mal dos Trópicos), mas por animais, com pelo menos três dignos de um destaque quase onírico em Tio Boonmee. Uma imagem dos macacos-fantasmas foi bastante circulada durante a exibição no último Festival de Cannes, no qual recebeu a Palma de Ouro. De fato, é uma das imagens mais potentes de um filme que justifica o Cinema como arte.