sexta-feira, 20 de abril de 2012

Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios




Hoje estreou o novo Beto Brant, Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios. Foi outro que vi em fevereiro, na V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, que tem o hábito de abrir com filmes nacionais e entrada franca. Brant, que dirige ao lado de Renato Ciasca, mais uma vez adapta Marçal Aquino (O Invasor), tendo Camila Pitanga e Gustavo Machado como o casal protagonista. Presente nessa sessão de dois meses atrás, Machado disse nunca ter visto tanto filme bom e fora do mainstream passando tudo em um shopping, local da Mostra.

Em um filme bem atuado, Pitanga e Machado saem inteiros dessa corda bamba que é Eu Receberia.... Ele interpreta um fotógrafo interessado pela imagem do indígena brasileiro, ela, uma bela moça do município, sua provável “musa”, digna de um ensaio Playboy particular. A exemplo de Mariana Ximenes em O Invasor e Tainá Müller em Cão Sem Dono, Brant continua filmando mulher de um jeito safado sem parecer vulgar. Pitanga nunca esteve tão à vontade, em todos os sentidos.

Eu Receberia... começa bem, com plano de abertura que mostra o que parece ser uma índia, completamente nua, na praia, fazendo poses para o que se presume ser uma sessão de fotos. Talvez seja o melhor plano desse filme que encontra ladeiras pra descer, com um certo Brasil muito bem resumido na imagem da garota jogada na areia, mar ao fundo, sol. Brant e Ciasca vão se dedicar, então, a uma brasilidade um tanto quanto além do controle enquanto se enroscam no romance do casal protagonista (e forasteiro), alternando o sexo convincente com o que me pareceu uma forçada imersão nos rostos do povo, do brasileiro do norte. Algumas cenas passam a impressão de existir dentro de uma estranha requisição ecológica, como se estivesse ali de passagem. Outras, principalmente as conclusivas, são espremidas entre fades bocejantes, um excesso de apaga-acende capaz de deixar o filme ansioso por seu próprio fim.

Há, enfim, alguma moldura de Brasil, ou de um Brasil, com todo um esforço nesse sentido, desde o município de Santarém, com seus residentes, seu comércio, os rios paraenses, até a miscigenação traduzida no corpo de Pitanga. Sensação geral, contudo, é de que Brant é mais feliz nas suas capturas de um Brasil urbano, rodeado de concreto que tem algo mais a lhe dizer.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cartas do Kuluene



Esse é cinema daqui, "feito em Goiás, nas condições de produção de Goiás", como disse o próprio diretor, Pedro Novaes, ao modestamente apresentar a primeira sessão de seu documentário ("que também brinca com ficção") na V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, em fevereiro. Goiás é estado de produção cinematográfica ainda pouco expressiva, e ver um bom longa saindo daqui é algo a ser notado. Cartas do Kuluene (2011) também foi exibido na última Mostra de São Paulo.

De fato, há no filme uma entrega muito grande ao esquema de cartas, gerando curiosa impressão de leituras visuais. São relatos de três indivíduos que tiveram um contato muito próximo com tribos indígenas do Brasil: um anarquista francês do começo do século 20, um antropólogo americano se aventurando na década de 30, e o próprio Pedro, em recente convívio de 40 dias com os índios do Xingu, interesse herdado de seu pai. 

Cartas do Kuluene é carregado de narração, o que talvez possa incomodar alguns, embora o filme tenha duração precisa nesse sentido (menos de 80 minutos) e seja, enfim, muito bem narrado. Os três homens registram suas experiências como uma profunda imersão em um mundo que definitivamente não é o deles, filhos brutos do ocidente tentando se encontrar num universo paralelo de filosofia muito própria. Um tipo curioso de dedicação, sempre.

Os índios são aqui analisados e observados com sensatez e respeito, numa tentativa de compreensão do que, para nós, é "estranho". Ao mesmo tempo fascinado e entediado, Pedro revela experiências dúbias em relação a essa sua atípica quaresma. Em seu terço de filme, imagens do Xingu, "ilustrações" para as cartas, por vezes trazendo a equipe de filmagem à tela. Nos terços dos estrangeiros, cenas de "reconstituição" de um passado relativamente distante, algumas delas meio decalcas, brigando para fazer jus ao que seus autores dizem em off, mas que cumprem seu papel de complemento.

Maior força desse doc epistolar me parece se concentrar nas experiências do próprio diretor, suas "cartas" contendo a pessoalidade mais interessante e envolvente dos três. Pedro fala do pai, da infância, cita sua esposa, seu tesão por antropologia, tudo aparentemente muito sincero, evitando qualquer risco de cair numa egotrip. A escrita tem algo de poesia, tão ou mais literária quanto a dos outros dois, lembrando, em certos aspectos, os documentários de Herzog (O Homem Urso), homem também muito chegado na relação do homem com a natureza, com povos, ele mesmo tendo feito um curto documentário sobre os últimos remanescentes de uma tribo amazônica. A comparação surpreendeu Pedro, que, num papo pós-sessão, disse não ter pensado no grande cineasta alemão ao fazer o filme. Pedi que, na próxima, narrasse em inglês carregado de sotaque germânico.

Texto escrito em fevereiro, na V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões

quarta-feira, 4 de abril de 2012

As Neves de Kilimanjaro



Nunca vi grande coisa no cinema de Robert Guédiguian. Acho dois de seus filmes mais elogiados, Marie-Jo e Seus Dois Amores e A Cidade Está Tranqüila, uns sacos de assistir. Mas esse As Neves de Kilimanjaro (mesmo nome de um longa de 1952, com Gregory Peck e Ava Gardner) é Guédiguian me agradando de verdade, filme com um humanismo bonito e natural.

O cineasta é um típico autor de mesmos atores, tendo na incrível Ariane Ascaride a sua veia arterial. A atriz está em todos os seus filmes e traz um daqueles rostos que sugerem muita vida já vivida, sofrida e aproveitada em pequenos e verdadeiros prazeres. Contracena mais uma vez com Jean-Pierre Darroussin, outro favoritão de Guédiguian, assumidamente construindo sua carreira e obra completa entre amigos. Basicamente, em As Neves de Kilimanjaro, o casal interpretado por eles tem de lidar com a denúncia de um crime. Os dois sofrem moralmente, ele por ser um trabalhador muito humano, ela por ser mãe-mulher-gente humana.

Cena do crime é boa, súbita, conduzida por Guédiguian como se tivesse acontecido na nossa própria casa. Um dos culpados é ser humano com família, história e sugestões de vida muito sensatas, mesmo que movido por inconformismo. Ainda mais interessante é o sindicalista de Darroussin, homem de esquerda com crises de consciência burguesa, anti-colonialista com certo grau de radicalismo (se recusa a aprender inglês), mas que sabe cantar Beatles e Rolling Stones e tem uma ligação pessoal com revistinhas do Homem-Aranha. Não há o menor traço de hipocrisia nessa sua composição, apenas gente de carne e osso.


O filme é inspirado no poema "Os Pobres", de Victor Hugo, e abre com uma lista-loteria de desemprego, loteria esta muito importante no todo. Por sua vez, o título se apresenta por uma música especial para o casal, que ganha dos amigos e familiares uma viagem para a África, presente de aniversário de casamento; "sob os pés do Kilimanjaro", diz alguém. Surge daí, em cena próxima ao fim, à beira da praia, o momento mais inspirado do filme, com Guédiguian mostrando que a África pode estar ali mesmo, na França. Singelo.


Texto escrito em fevereiro, durante a V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões