segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Passion, de Brian De Palma



Daí que vi Passion (2012), novo do Brian De Palma, que não fazia nada desde Redacted (2007), obra potente, terror do real e muito bem sincronizado com o interesse de De Palma pelos aparatos imagéticos, algo que ele também tenta aqui, abrindo seu novo longa com duas publicitárias (Rachel McAdams e Noomi Rapace) trabalhando em cima de um Mac filmado quase que ostensivamente.

De Palma reúne aqui muita coisa de sua obra, como se tentasse retornar a um território familiar, o das fantasias (sexuais e literais), dos assassinatos cortantes, do sexo/sexualidade como forma de controle (ou descontrole), do suspense que, de tão delineado, parece ter sido costurado em seda. A imagem de uma loira de óculos escuros saindo do elevador no meio de uma das sequências características do cineasta, em que o tempo se permite ficar ligeiramente suspenso para que as ações sejam catapultadas pela mise en scène, sugere uma espécie de travestismo invertido da grande cena de Vestida para Matar (1980).

A bem da verdade, Passion por várias vezes parece adotar o tom de uma publicidade ruim ou de um soft porn que jamais se atreve a ir além do ensaio (o que é aquele apartamento de McAdams e a garrafa de bebida servida pela atriz senão cenário e objeto de uma sensualidade mascarada?), o tipo de energia farsesca que este autor costuma transformar em belas peças de afetação, como se fossem porcelanas folhetinescas. Dália Negra (2006), se lembro bem, seguia os passos do noir tradicional, com pequeninas subversões, até se entregar a inspiradíssimos excessos novelescos num show muito particular de Fiona Shaw.

A história tem Rapace como uma espécie de auxiliar de McAdams, duas moças que acabam por disputar status, reconhecimento e posições na grande agência de publicidade em que trabalham. O espaço para punhaladas nas costas é amplo por aqui.

O filme cresce de alguma maneira quando esse enredo maquiado de A Malvada (Joseph L. Mankiewicz, 1950) decide cravar as unhas no expressionismo e se comportar como um quadro torto na parede. No entanto, com sua pegada lesbo, sua incursão nos sonhos, filmagens europeias (Berlim e, no mínimo, co-produzido por franceses), a impressão final é de que talvez Passion seja um siamês de Femme Fatale (2002), embora careça daquela alegria toda para dissimular e enganar.

De Palma já fez piadas melhores, sem dúvida. O próprio Femme Fatale, seu melhor em muitos anos, é um jogo perfeito. O recurso da tela dividida e a trilha de Pino Donaggio, parceiro de alguns dos De Palmas mais atrevidos, a começar por Carrie (1976), soam como lembranças um tanto distantes.

De todo modo, parece haver nesse conjunto a capacidade de revelar um cinema de memória. Passion está mais para uma saudade.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Halloween (1978)



O medo do lado de fora

Coloque Halloween, com seus 35 anos de rodagem, numa sala de cinema, imagem boa e som no talo certo, e o filme ainda se mostra calibrado de sustos e agonia.

O deslize da câmera Panavision Panaglide (na época, uma competidora da steadicam*) pelas ruas da vizinhança gera toda a ansiedade e estranheza de que precisamos. Uma inquietação, sem saber quando Michael Myers aparecerá pelo extracampo, por este ou aquele lado do enquadramento, pois, tecnicamente, isso pode acontecer a qualquer momento.

De fato, acontece menos do que se espera, pois é esta espera, muitas vezes frustrada (no lugar do assassino, o que surge no canto do quadro pode ser apenas uma árvore ou um arbusto decorativo do jardim), que nos coloca ali dentro, sobretudo porque John Carpenter abre seu filme com aquele plano-sequência subjetivo do então garoto Myers, a câmera no lugar de seu olhar, prestes a cometer seu primeiro assassinato dentro de sua própria casa e ser enviado ao manicômio da cidade.

Visto hoje, no entanto, Halloween também gera outras reações. É um filme com seus momentos de humor (não seria Carpenter se assim não fosse), embora não seja um filme engraçado. Foi exibido no Cine Cultura na última sexta-feira (26/7) pela Mostra John Carpenter, sessão em que risadas podiam ser detectadas quase na mesma medida que sacolejos de corpos assustados em suas poltronas.

Parte desses risos vem do olhar treinado de um público que se habituou a décadas de slashers, uma coqueluche de jovens fugindo de assassinos diversos, todos lançados pelo padrão estabelecido em Halloween. Vieram Jason e Freddy Krueger, que, ao lado de Myers, moveram séries intermináveis. Wes Craven e seu A Hora do Pesadelo (1984) tinham sua inventividade, é verdade, mas o culto ao tosco Sexta-Feira 13, surgido dois anos depois do longa de Carpenter (cuja sequência sairia em 1981), sempre me pareceu um abraço desesperado de uma audiência sedenta por outra história de monstro humano psicótico.

A cartilha desse tipo de produção foi desnudada por Craven em Pânico (1996), inspirada zoação com o slasher movie e ao mesmo tempo um bom exemplar do gênero, tendo ele mesmo suas três continuações e o direito a ser parodiado por outra série, Todo Mundo em Pânico (2000), que logo se tornou o Zorra Total dos filmes de terror.

Num estágio em que paródias já parodiam paródias, certas técnicas e elementos presentes em Halloween já viraram uma espécie de cacoete há anos. Jamie Lee Curtis olha pela janela, vê Myers, desvia o olhar, depois olha de novo e percebe que ele desapareceu. No cinema de hoje tal recurso é mera tabuada, mas o mais importante talvez seja a compreensão daquele personagem como um personagem cinematográfico, e, portanto, perfeitamente capaz de, embora humano, ser sobre-humano.

Convém lembrar que o contexto da desumanização sempre foi muito recorrente em Carpenter. Aqui, o psiquiatra interpretado por Donald Pleasence entrega tudo logo de cara, nas primeira cenas: "Ele não é um homem", e, portanto, certas regras não se aplicam a ele.

No colégio, a olhada de Jamie Lee Curtis pela janela e o sumiço de Myers são eventos separados por cortes, montados a partir do momento em que ela desvia o olhar para outra direção. Cenas à frente, ela perceberá a presença do assassino através da janela de seu quarto: um plano mostra Curtis, corta para Myers do lado de fora da casa, corta novamente para Curtis, que desta vez não desvia o olhar, e volta para a imagem fora da casa, agora sem a presença de Myers, que sumira diante dos olhos da garota.

Carpenter não precisa mais que a vítima olhe para outro lado para fazer com que a ameaça desapareça no plano seguinte: é irreal, é absurdo, é o que o cinema pode fazer, e Halloween começa a mesclar de maneira brilhante o medo mais íntimo, daquilo que espreita nos jardins, percorre calçadas, invade casas, ataca com faca de cozinha (e é confrontado com um cabide de roupas!), com o que é fantástico, "a coisa" (o The Thing original de 1951 é exibido na TV durante uma cena) inexplicável, o "bicho-papão" em sua versão adulta.

Sessões atuais de Halloween, como a da Mostra, podem revelar 30 anos de nossa experiência com um gênero, e se o filme parece atingir um novo grau de divertimento, é porque as regras do jogo estavam lá desde o princípio, e, o que é melhor, muito expostas. É pela janela, tanto a dos cômodos quanto a da tela de cinema, que a existência de Michael Myers tem seu lugar.