segunda-feira, 26 de abril de 2010

Cão Sem Dono




Depois de três filmes mais centrados em violência, Beto Brant tem estado mais introspectivo. Brant sempre foi um ótimo intruso de locações, com um belo tato pra trabalhar personagens em lugares de verdade. Seu O Invasor é um dos melhores exemplos desse cinema entrão.

Agora Brant não só filma lugares reais, mas gente que parece ter nascido, bebido, comido e trepado neles. Cão Sem Dono atinge um máximo de naturalismo em sua obra, com personagens baseados em livro e pessoas, que por sua vez podem ser baseadas nesses papéis, pois parecem ser uma coisa só. Eu (re)conheço esse povo, um por um, fala por fala, INT. por INT., EXT. por EXT., FADE por FADE.

Ciro é formado em Literatura e consegue alguma pouca grana como tradutor de russo. Mora de aluguel num pequeno apartamento sem muita coisa além das paredes. Sua mesa é uma dessas branquinhas de metal, de boteco. Seu telefone é um orelhão pichado. Bebe, fuma, não toma café da manhã e meio que adota um cachorro “amigo”. Enfim, um brasileiro.

Mantém contato com os pais, que o ajudam como pode. Seu laço de maior amizade parece ser com o porteiro do prédio, mas cria química mesmo é com uma guria modelo gente boa (Tainá Müller, muito boa, muito boa), a literalmente começar pelo sexo e a se desenvolver aos miligramas, podendo ou não se revelar importante. Enfim, uma relação.

São todas pessoas desse mundo, o conjunto câmera-roteiro-fotografia-atuações nos garante. A impressão é de que Brant filmou um RG de cidadania brasileira e residente em Porto Alegre. Embora seja um tipo intelectual de considerável sensibilidade artística (livros, música, pinturas em jornais), Ciro parece ter emoções embaralhadas, dividindo certa semelhança com o personagem de Marco Ricca em Crime Delicado. Julio Andrade constrói nele uma figura lenta e pacata, sensação de constante estado de sonambulismo espaçada por uma série de fades que parece dar esse mesmo ritmo ao filme, e digo isso no melhor sentido. Entre tantos fades, Ciro não tem o que fazer além de aceitar, mas o último fade out é escolha só dele.

O cachorro também é muito de verdade.

*post escrito ao som de Florence and the Machine - "Dog Days Are Over".

domingo, 25 de abril de 2010

50 anos de Psicose


Imagem: Marion Cotillard no Especial Hitchcock da Vanity Fair.


Psicose completa 50 anos em 2010. É tido como clássico absoluto de Alfred Hitchcock, um desses que alcançaram imortalidade via cinema com mais um bom número de clássicos, alguns não menos absolutos. Sem qualquer intenção de homenagear o cinquentenário, pude revê-lo há algumas semanas, depois de algum tempo distante.

Essa distância ajuda a observar como muitas vezes um clássico “obrigatório” se comporta como tal simplesmente por sua existência. A força e presença de Psicose no Cinema são tamanhas que muitos já assistiram ao filme sem de fato sentarem e vê-lo numa tela, seja de Cinema, TV ou PC. Pessoas assistem a Psicose em película, digital, em comentários, em textos, em clipes da famosa cena do chuveiro... É um filme visto, de alguma maneira.

Hitchcock já filmara Festim Diabólico, Pacto Sinistro, Janela Indiscreta e tinha acabado de fazer Intriga Internacional e Vertigo, dois de seus tops. Sempre tive a impressão de que, caso Alfredão já não fosse famoso, Psicose seria mais cult do que hit. Um desses "a serem descobertos" e indicados por certas cenas específicas com a empolgação de quem encontra ouro puro nos cantos das videolocadoras. Que atmosfera a desse filme, hein, seu Hitch.

Cenas finais, com revelação do rosto da mãe de Norman Bates, são acompanhadas de um humor deveras estranho. Poucos filmes conseguem ser tão surtantes em seu desfecho e ainda ser levados completamente a sério. Não menos brilhante, Psicose estaria confortável em alguma midnight session, perfeitamente sólido como Cinema.


*post escrito ao som de "Psycho Killer" - Talking Heads

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Como Treinar Seu Dragão




Dragão dócil, filme meio rebelde.

A figura do dragão é uma dessas que parecem atrair pessoas de qualquer canto do globo. Existe em ampla mitologia, do bíblico ao oriental, tendo encontrado forte reforço em tatuagens e jogos de RPG. Um tipo réptil alado, dragão virou sinônimo de poder e intimidação, com algo estranhamente sexual no meio. Como muitos outros seres (mitológicos ou não), o dragão é visto pelo Cinema como bonzinho ou vilanesco. O de Como Treinar Seu Dragão, animação da DreamWorks, revela-se do bem.

Em primeira mão, o filme oferece exatamente o que se espera: relação amistosa entre um dragão e um humano, também recorrente no Cinema. Melhor exemplo talvez seja o primeiro A História Sem Fim, em que um garoto voava sobre um dragão-cachorro felpudo e amigão. Entre os piores temos Coração de Dragão (aquele com dublagem de Sean Connery lá e Miguel Falabella aqui) e o recente Eragon, um desastre. A lógica mostra que jovens no meio geram possível amizade entre as duas espécies.

A amizade em Como Treinar Seu Dragão é bem construída, com boas introduções e uma paciência relacionada a estudo e aprendizagem na relação entre o menino carismático Soluço e o pequeno dragão poderoso Banguela. Contra todas as expectativas (incluindo as do pai, dublado por Gerard “Só Faço Papel de Guerreiro Truculento ou de Apaixonado Retardado” Butler), o garoto aprende na unha e na escama a como tratar dragões em vez de matá-los (a princípio, são ameaça), um costume da ilha viking do filme, que treina caçadores ainda crianças. Existe até um viking gordinho nerd, armado com informações numéricas. O humor aqui é dos bons.

Esse exercício de ternura trabalha a domesticação de maneira bem aceitável. As criaturas são bizarro-fofuras que tendem levemente ao dócil. Tanto em design quanto em trejeitos, Banguela é xerox do alienígena Stitch de Lilo e Stitch, só que em versão alada. São os mesmos diretores, Dean DeBlois e Chris Sanders, então a associação é certeira e não há crime. DeBlois também dirigiu Heima, longa sobre a banda Sigur Rós, praticamente um desses filmes-pra-DVD, mas maravilhoso de um jeito quase espiritual não-maculelê. Surreal pensar nisso, mas, de certa forma, até que Sigur Rós daria o tom para a animação (vide créditos finais).

Visual geral de Como Treinar Seu Dragão é digno de atenção especial. A consultoria do diretor de fotografia Roger Deakins (colaborador dos irmãos Coen) parece dar mais textura do que a própria máquina de venda atual que é o 3-D. As imagens destacam a terceira dimensão, mas a luz dessa animação é uma coisa. Sequência de ação final é um espetáculo a parte nesse sentido. Contudo, é engenhosa não apenas na grandiosidade e beleza, mas também como clímax de um peso dramático trabalhado e carregado até o fim, quando já abraçamos voluntariamente o ideal de amizade representado por dragão e menino protagonistas. Dessa sequência vem conseqüência, uma porção de ousadia para distinguir a animação com uma lição acompanhada de duro aperto. Pode haver choro.

* post escrito ao som de "Pedaço de Mim" - Chico Buarque.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Treme




All that jazz

Para aqueles que dividem a cinefilia com a sériefilia, fica a dica de priorizar Treme, mais recente criação de David Simon transmitida pela HBO. É situada em New Orleans, três meses após o furacão Katrina atingir e resumir boa parte da cidade em desperdício, deixando expressões derretidas em moradias e rostos.

A princípio, Treme deve chamar a atenção do público que conhece The Wire, obra-prima de David Simon e série nº 1 da lista de obrigações do que foi feito para a TV nesse formato. Se The Wire é um senhor mapeamento de Baltimore com o crime como eixo, primeiro episódio de Treme parece indicar um belo traçado de New Orleans, mas com eixo cultural. Ninho de sonoridade jazzista, a cidade abriga músicos diversos que formam o centro de personagens. Treme é o bairro do qual ficaremos íntimos.

Brilhos hipnotizantes, abertura e encerramento do episódio definem bem o clima de alegria e melancolia que deve dominar um TV-show de intimidade entre pessoas, música e uma cidade de joelhos. Pelo olhar sempre interessante e interessado de Simon, prevejo construção de uma preciosidade.

*A trilha é uma jóia. Dá vontade de jogar Trumpet Hero.

**Wendell Pierce (o “Bunk” de The Wire), Clarke Peters (Lester em The Wire) e Steve Zahn integram o elenco. Há também participação especial de Elvis Costello no primeiro episódio.