sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Margin Call




Para quem, como eu, acha Trabalho Interno um documentário insuportável em seu economês técnico, Margin Call, uma ficção, é filme interessante de se acompanhar. Elenco é bom (Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons, Stanley Tucci...) e ajuda a envolver o espectador que pode ter medo de enormes equações envolvendo dinheiro. A história se passa um dia antes da crise financeira de 2008, daí o nosso subtítulo apocalíptico-pateta “O Dia Antes do Fim”.

Irons é a melhor coisa desse filme situado em andares altos de capitalismo. É dele que sai um pedido de explicação simples para o que está acontecendo (na empresa, no mercado, na América, na vida...). Funcionário que descobriu a crise (Zachary Quinto sem teletransporte) – já em andamento – lhe explica e cabe a Irons uma tréplica em forma de alusão com secreções, excreções e desatinos. Os momentos mais didáticos são curiosamente bons.

Grande chefe, com direito a nome mencionado mais de uma vez antes de aparecer, Irons representa o último estágio e o último andar de prédios espaçosos e frios. Janta solitário, com vinho e indiferença, sendo em muitos aspectos um clichê, mas um clichê dominado por Irons. Cresce no longa mais que Spacey, que, por melhor que seja e esteja, tem em duas cenas com um cachorro a incômoda sensação de forçar uma poesia meio redundante, para filme e personagem.

J.C. Chandor, diretor estreante, faz o que chamaríamos de trabalho muito competente, se tratássemos isso aqui como um serviço, mas seu Margin Call tem algo que me agrada além da bem calculada impressão de que é tudo números em ternos. A cidade acontecendo do lado de fora das janelonas, longe e abaixo, chama a atenção na mesma medida que o suspense de escritório; talvez até mais, num segundo olhar. E há muitas janelas, muito altas. O filme parece se passar numa redoma de vidro.

domingo, 25 de dezembro de 2011




Os De Palmas que fizeram o meu Natal

Em breve papo de internet com meu amigo André, comentamos sobre alguns De Palmas e a necessidade de rever a maioria de seus filmes. A estreia de Missão: Impossível 4 me levou a revisitar o primeiro, de De Palma, o melhor da série, antes um De Palma sólido do que um “filme de franquia”, e já fui impulsionado.

Irmãs Diabólicas

Há dois dias comecei por um que nunca tinha visto: Irmãs Diabólicas (Sisters, 1973), um dos primeiros, sobre irmãs siamesas mental e medonhamente inseparáveis. Há aquela impressão de um cineasta aquecendo olhares e marcas (tela dividida), mas já é muito presente o estilo surtado de violência e suspense, afetação que ele saberia elevar ou disfarçar como se fosse um estranho instrumento numa valsa de requinte. Eu gosto.

Entretanto, Irmãs Diabólicas parece ter de se virar com problemas de ritmo. Cenas “normais” não acompanham o interesse dos momentos que se dedicam inteiramente ao suspense, que num primeiro momento tem algo de Festim Diabólico em uma ou outra cena (o sofá). Hitchcock, inspirando e assombrando De Palma desde a adolescência, quase um caso de siameses, pois a relação de De Palma com o hômi do suspense é muito como o jogo de corpos e personalidades das irmãs Danielle/Dominique.

De Palma aprecia uma enlouquecida, um filme que bate a cabeça na parede repetidamente. Abalos psicológicos revestidos de suspense e horror alimentam Irmãs Diabólicas e outros de seus filmes, sobretudo aqueles da primeira metade da filmografia. Irmãs abre com imagens dos fetos em clima de terrorzão. A trilha de Bernard Herrmann assina um pesadelo.

Daria uma sessão tripla linda ao lado de dois Cronenbergs: Enraivecida na Fúria do Sexo e Gêmeos – Mórbida Semelhança.

A Fúria

Tinha visto uma única vez e achado ruim, mas nunca consegui me posicionar muito bem a respeito. Continua ruim, só que a violência, que antes me batia como uma criança, agora deu uma crescida.

É o filme seguinte a Carrie, obra semelhante e muito superior, focada desde o começo e praticamente mítica no todo. Em A Fúria (The Fury, 1978) há telepatas, escola com bullying, uma moça sofrida com seu dom. Mas há também uma subtrama de agente secreto, Kirk Douglas de idade já avançada dando saltos de gato em busca do filho raptado. As tramas levam a uma escola especial, o que me fez pensar numa espécie de X-Men feio (o reencontro com o filho deve ser das piores cenas de De Palma).

Douglas desconfortável, trilha de John Williams erradíssima no tom (intro da escola, fuga em câmera lenta...), Carrie bailando a dois anos de distância... Não fosse a última cena, dava pra esquecer tudo.

Vestida para Matar

Angie Dickinson. Foram os primeiros mamilos rosados que me lembro de ter visto em um filme. Cena de abertura, ducha, nudez completa, vidro embaçando, carcadas e fantasias.

Essa abertura é uma das quatro cenas de Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980) que mantenho intactas na memória. As outras são o jogo de gata e rato no museu, em que um estranho bate e assopra durante escapadas de visão; a posuda mistura de Argento e Hitchcock no elevador; e a última, retorno ao banheiro, à ducha e às fantasias, em vários sentidos.

Não lembrava de quase nada além disso, no entanto. Não gosto de nenhuma das cenas com o garoto, personagem importante e que nem lembrava de existir. Me tira do transe, faz uma lacuna, exige um esforço pra situá-lo nesse filme. O detetive também, mas em menor escala, pois há nele algo de charlatanesco que acaba casando.

De todo modo, é um dos De Palmas mais engraçados. Há uma assassina psicótica a solta; no filme, sua primeira vítima é uma paciente do psicólogo interpretado por Michael Caine, sujeito que encara espelhos entre um “sim” e um “não”. É um filme de curiosa e afetada tensão sexual, alimentada adiante pela inclusão de uma personagem prostituta (Nancy Allen, também mamilando) e por elaborações da trama. Como nos bons De Palmas, caras e bocas estão muito bem pensadas acima do tom; tudo o que envolve Dickinson fica a um passo do hilário, inclusive bilhetes afetuosos seguidos de doenças venéreas.

É também um desses De Palmas em que a mise-en-scène mais se revela em todo seu cuidado, muitas vezes mais que Hitchcock (Obsessão dormia com Vertigo, Vestida para Matar seduz Psicose a navalhadas de giallo). É escancarada, na verdade, saboreando o prazer de ser notada por esse nosso voyeurismo. A maravilhosa cena do elevador é um belo exemplo de cinema exibicionista, de fetiche em vários níveis, e parece construída em modo pause por um cinéfilo danado em posse de controle remoto. Tesão total.

Na Natureza Selvagem



O garoto civilizado

Vi Na Natureza Selvagem com cinco anos de atraso, mesmo com muitos amigos insistindo que o visse o quanto antes. Talvez essa urgência encontre lugar no aspecto lição de vida que o filme parece arremessar com diversos pesos.

De alguma forma, vejo Na Natureza Selvagem situado no outro lado da calçada de O Garoto Selvagem, em que Truffaut se responsabilizava por cuidar e, principalmente, educar um menino criado no mato, sem contato com a civilização até então. O Chris/Alexander do filme de Sean Penn é o garoto civilizado, rapaz que abandona essa raiz para viver pelo acaso de rios, morros, terras, animais e até pessoas.

A impressão é de que há todo um discurso contra a sociedade e talvez até mesmo a civilização. “Sociedade é má/equivocada” versus “natureza é boa” acaba por formar um beco dos mais bobos para esse filme que coloca seu personagem “marginal” para aprender e ensinar no seu caminho rumo ao Alaska e ao que ele acredita ser liberdade. Emile Hirsch e seu personagem me irritam na medida em que esse punho em riste (contra posses, coisas, o urbano) me soa juvenil e acompanhado de uma estranha arrogância, muito embora eu desconfie que direção de Sean Penn estivesse mais interessada na história de um cara e tirar daí um filme do bem, inocentemente preocupado com prazeres desprezados. Hirsch toma banho natural em câmera lenta, come a maçã mais natural de todos os tempos (“melhor que qualquer outra maçã”)... toda uma lista de valores num filme de muita bandeira e pouco vento.

* postado ao som de "Jeremy" - Pearl Jam

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Titanic



Corpos e gravidade

Rever Titanic depois de muitos anos é algo assim: paciência – wow, legal – música ruim – do caralho – paciência – paciência – bom casal – bom casal? – música ruim – pobres são mais legais – wow, do caralho – paciência – Billy Zane griladão – Billy Zane muito griladão – música ruim – som foda – wow, fantástico – ¬¬

Como narrativa clássica, esse cinemão de James Cameron atinge níveis significativos de inteligência, seja na tela ou (alguém duvida?) no mercado de amores rebeldes e eternos. Um recorde de estatuetas douradas ajuda, mas Jack e Rose parecem sobreviver sozinhos, embora muita coisa tenha caído no brega ou simplesmente já nascido assim (Dion?). Mais que isso, solidificou DiCaprio e Winslet, hoje duas carreiras Hollywood bem interessantes. Em 97/98, Titanic poderia ser grande demais para eles, mas não foi; isso é bom.

Cameron tem as manhas da grandeza. Sempre teve. Não faz cinema-britadeira como Michael Bay ou é um operário como Gore Verbiski. Os 60 minutos de navio afundando talvez sejam seu tour de force, façanha que poucos conseguiriam com algum ritmo e elegância. A fisgada que me faz gostar do filme está ali, acima do romance abobrinha, certamente acima do simplório olhar sobre as classes. Na última hora de duração, um imenso navio é inundado, afunda, racha ao meio, e Cameron detalha por suas entranhas (pratos imaculados se espatifando) e por “externas”, pessoas deslizando e caindo como se fossem sacos de batatas. Efeitos e alta maquinaria hollywoodiana que não engolem a tela.

Gosto de pensar em Titanic como um filme sobre Física. Corpos e gravidade. Foi assim que me impressionou em janeiro de 1998, e de certa forma ainda impressiona.

*será relançado nos cinemas em abril de 2012 num 3D caça-níqueis.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Vanishing Point (1971)



O último herói da América

A primeira vez que vi Vanishing Point (1971) foi na TV a cabo (no Brasil, recebeu o título de Corrida Contra o Destino). Já tinha assistido a Easy Rider (1969), filme de Dennis Hopper tido como um dos marcos iniciais da New Hollywood, um acontecimento certeiro, efeito do momento, lugar certo, hora certa, loucura certa. Os dois são siameses, mas o filme de Richard Sarafian me pegou mais, me disse mais. Continua assim.

O filme acompanha o imparável Kowalski na sua corrida para chegar a São Franscisco em até três dias. Sua motivação parece ser a simples velocidade, sua droga simbólica e literal (speed), levando um Dodge Challenger 70’ branco a uma América em início de nova década, sendo cruzado e atropelado por remodelações da cultura americana numa espécie de driveabout. Perdida com a aparente irracionalidade (e uma habilidosa imprevisibilidade), a polícia não sabe o que fazer, limitando-se ao papel de Coyote desse Papa-Léguas motorizado.

Kowalski tem passado, partes que Sarafian cola no filme como se criasse um painel: ex-militar, ex-policial, ex-piloto, historietas. Sua corrida solitária é guiada por um radialista negro e cego que o vê como “o último herói americano” dirigindo seu “Soulmobile” (Almamóvel), uma celebração que Sarafian arquiteta com melancolia e o cuidado de nunca distanciar o piloto-herói de seu carango, às vezes numa viagem quase mística. Homem e carro coexistem, muito embora Sarafian não esteja interessado em dar personalidade à máquina, como John Carpenter (Christine) e Steven Spielberg (Encurralado) viriam a fazer nesse tipo de relação.

É um baita filme para introduzir os anos 70. Vanishing Point entra de pedal, de speed, de hippismo, de muita poeira e, de quebra, motociclistas peladas. Recebeu bela homenagem de Quentin Tarantino em À Prova de Morte, há quatro anos.

* postado ao som de "Kowalski" - Primal Scream

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Conan, o Bárbaro (2011)



Há quase 30 anos, Arnold Schwarzenegger não imortalizou Conan nos cinemas apenas pela corpulência, mas por John Milius saber explorar aquela figura física bastante única e bronca (nesse sentido, John McTiernan e James Cameron também souberam como filmar Arnoldinho). No Conan, o Bárbaro de 1982, a sensação é de que Schwarzenegger não interpreta Conan, mas uma estátua de Conan ou algo assim, próximo a um desenhado perfeito.

Jason Momoa, o novo Conan, parece um guerreiro modelo qualquer. Mas pega peso no supino, isso percebemos.

Foi só ontem que me submeti ao Conan 2011, de Marcus Nispel, diretor que tem a mania horrorosa de passar sabão e xampu em filmes supostamente hardcore (remakes de O Massacre da Serra Elétrica e Sexta-feira 13). É tudo muito limpo, uma forte impressão de que Conan pode arrancar uma ou duas cabeças numa cena e vestir roupas da GAP em outra.

Após introdução meio confusa (aquelas breves narrativas sobre a história de povos e terras dizimados), o filme nos apresenta a um Conan criança, garoto-Capricho que aprende a esmagar cabeças e fazer cortes que espirram baldes de sangue, mas sempre nessa estética de comercial de TV. Bonitinho, limpinho, bárbaro. Meia-hora de duração, vira Momoa (bem mais conânico como Khal Drogo na série Game of Thrones): bonitão, limpão, bárbaro, pronto para enfrentar gente feia, deformada, dentes podres e mulher sem sobrancelhas.

Ano passado, o cinema blockbuster hollywoodiano nos trouxe aventurinha semelhante em outra espécie de refilmagem, Fúria de Titãs, também ruim, mas que tinha, além de certo elenco, alguma lucidez nas suas grandes bobices – ou simplesmente noção do seu ridículo. Conan 2011 faz bocejar nas mais simples cenas de ação, filmadas como um seriado B. Na rede cinéfila MUBI, um rapaz diz ter se lembrado de Xena. Faz todo sentido.

sábado, 29 de outubro de 2011

Blokada




Corpo na neve e bala de canhão

Do filmes que vi nos últimos meses, um que certamente me impressionou alguns níveis além do habitual foi My Joy (2010), do russo Sergei Loznitsa, em competição no penúltimo Festival de Cannes. Primeiro longa de ficção do cineasta, é um filme que, condizente com sua abertura, se comunica como espatuladas de cimento, secando e endurecendo por duas horas. Antes de My Joy, porém, o cinema de Loznitsa se concentrava no documentário, com particular atenção para Blokada (Bloqueio), sobre a Leningrado cercada pelo exército nazista.

Sem falas e sem narração, Blokada é puro som e imagem, se revelando muito capaz de independer da lembrança do emblemático Noite e Neblina, de Alain Resnais, obra de princípio semelhante. As imagens são registros, resultado de pesquisa e montagem de Loznitsa em arquivos da Segunda Guerra. Os sons, incluídos, desenhados como se visassem um impacto para além da mera produção de ruído ou barulho, configuram incrível sensação de imergir em um testemunho. Talvez numa espécie de dosagem de luto, há pequenos intervalos de tela preta, que podem preceder tanto um bonde quanto um prédio em chamas. Temos aqui os 900 dias do cerco a Leningrado em poderosos 50 minutos jogados na tela como bala de canhão, com tiros e súbitos estrondos destrutivos dividindo espaço sonoro com passos e carros. Isso num cinema...

Há, também, aquele rico momento presente nesses pedações de registro bruto (e brutal, no caso de Loznitsa) como Blokada, em que uma pessoa ou uma família debandada, uma criança que seja, olha curiosa para a câmera. Sempre interessante pensar nesses filmes vistos hoje, setenta anos depois, e no futuro. História de corpos na neve e cordas no pescoço.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

digital

Gosto um tanto bom de Control, retratão p&b de Ian Curtis feito pelo Anton Corbijn, mas o que me vem à cabeça quando penso em Joy Division + cinema é esse pedacinho do filme do Michael Winterbottom, 24 Hour Party People.


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Crítico



As primeiras imagens de Crítico trazem um paralelo entre rolos de película e “rolos” de impressão de jornal. É uma montagem que parece ecoar François Truffaut e sua declaração de que assistir cinema e escrever sobre cinema também é fazer cinema. Em todo caso, a estrutura que envolve o cinema talvez tenha no crítico sua figura mais incompreendida. Assim como os cineastas, costuma ter algo de distante, encarado como aquele que supostamente pretende dizer o que o filme é de fato. Em uma de suas grandes falas, André Bazin já dizia, contudo, que “a função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte.” Discípulo de Bazin, Truffaut nos lembra a impossibilidade de cinema ser ciência, logo não havendo razão para que a crítica seja.

Dirigido pelo crítico e cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho, Crítico oferece em seus 76 minutos uma noção desses múltiplos olhares e pensares da crítica e, de certa forma, do espectador como um todo. Munido de uma série de entrevistas com cineastas e críticos de cinema coletadas durante oito anos, Kléber anda de mãos dadas com o documentário Bem Me Quer...Mal Me Quer (2004), de Maria de Medeiros, também com material capturado em edições do Festival de Cannes, onde muitos filmes nascem para o mundo. Realiza aqui o que parece ser uma rica reflexão sobre o cinema, quem o faz e quem o escreve, tendo na palavra de dezenas de profissionais a elaboração de um olhar sobre a relação entre os papéis do crítico e do cineasta no cinema, relação por vezes conflituosa, por vezes complementar, mas sempre diante de um escopo mais amplo. Tempo de escrita em festivais (em Cannes, são corridas 2 horas para um texto), autoria, intenções dos cineastas, proximidade entre profissionais e pessoalidade são alguns dos muitos interesses de alguém que cumpre a dupla função, um cineasta crítico (ou crítico cineasta) entrevistando críticos e cineastas.

Em Crítico, Kléber pode ter imergido numa espécie de auto-investigação a procura de uma maior compreensão do cinema não pelas obras, mas pelas pessoas que as compõem. Entrevistados aparecem com envolvente franqueza e interesse, abertos, até mesmo vulneráveis, expostos a um tema caro e delicado, mas que não parecem se incomodar porque Kléber guia tudo como uma grande conversa sobre cinema, paixão comum a todos. Embora reserve espaço para atritos e rusgas que inevitavelmente surgem nesse tipo de relação (segundo o cineasta Sérgio Bianchi, há "uma montanha de ressentimento" em parte da crítica brasileira), são mínimos os traços de “arrogância”, imagem que, sabemos, é associada tanto a críticos quanto a diretores, colocados aqui num ping-pongão que tem no cinema a sua rede.

Uma pergunta-resposta entre o jornalista Michel Polac e Jean-Luc Godard abre o documentário nos lembrando que os filmes não mudam, e sim quem os assiste. Não parece haver melhor relato para introduzir um filme que demonstrará o quanto isso pode ser complexo, e Crítico parece sugerir que, se é o olhar de quem assiste que muda, então os filmes mudam com ele. No depoimento de uma crítica, o cineasta Abbas Kiarostami é citado ao ilustrar que o juízo de valor, o gostar ou não gostar de filmes, é muito mais uma questão de momento; na vez de Carlos Reichenbach, o diretor relata como um crítico o fez perceber uma constante na sua filmografia que jamais tinha notado até então, apontando aí a ideia da crítica como um possível veículo do inconsciente. Uma a uma, cada entrevista revela curiosas personas do ofício.

Kléber, que sempre me pareceu possuir um dos olhares mais sensatos e atentos para o Cinema, nunca hesitou em deixar claro o valor de uma perspectiva pessoal na arte. Estreia no longa-metragem, Crítico acaba por refletir com preciosidade uma das falas de seu autor: "filmes são o que são mais o que nós somos."

*o filme estreia hoje em Goiânia no Cine Cultura como parte da Sessão Vitrine. Kléber escreve para o Jornal do Commercio de Pernambuco e no seu blog, Cinemascópio. Atualmente, finaliza seu primeiro longa de ficção, O Som ao Redor.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Pacific



Passageiros da alegria

Há algo de muito triste neste registro de alegrias que é Pacific, documentário de Marcelo Pedroso que estreia em Goiânia na próxima sexta-feira, 23 de setembro, na sofrida reabertura do Cine Cultura. O filme inicia a programação da Sessão Vitrine na cidade, onde serão exibidos sete longas brasileiros, cada um em cartaz por uma semana. Todo longa é antecedido por um curta-metragem.

Um dos fundadores da Símio Filmes, fértil veia pernambucana do nosso cinema, Pedroso parece ter realizado aqui uma espécie de documentário surpresa, montagem do que se imagina ter sido uma grande coleta de filmagens feitas por passageiros de um cruzeiro nacional, o Pacific, com destino à Fernando de Noronha. Logo no começo, há informação de que a equipe de produção só entrou em contato com as pessoas após o fim do trajeto, com um cinema que se consolida desde o princípio na escolha e ordem das imagens, deixando aquela impressão de que é mesmo com cortes e recortes que se faz, enfim, um filme, e não apenas uma gravação de férias.

Na sua primeira imagem, o Pacific – grande demais, talvez espetacular demais, tudo demais – parece não caber nos sonhos enquadrados pelo cinegrafista amador. O nome inglês do navio é pronunciado com sotaque pernambucano pelo auto-falante da van/ônibus, momento que acaba se assemelhando, em essência, a muitas das atrações oferecidas por esse barcão recreativo. Entre outras coisas, o pacote inclui versões scanneadas de Broadway (O Fantasma da Ópera), Hollywood (Frank Sinatra) e do próprio Brasil (Garota de Ipanema, com direito a uma noção geral e imaginada de praia), cenário de fotocopiação cultural capaz de lembrar o parque de réplicas de O Mundo, do chinês Jia Zhang-ke . Vez ou outra os passageiros também emulam algo do tipo, como o casal que vê no Pacific a sua chance de Titanic, ou no pianista sem notas, “personagem” que Pedroso seleciona com algum traço de melancolia.

De mesma importância, o material das filmadoras revela aquele nosso interesse pela nossa própria imagem. A câmera em si mesmo ou dirigida ao espelho traz os rostos e corpos desses passageiros, pois “se não aparece, não adianta”. É provável que o espectador saia de Pacific sem lembrar o nome das pessoas, mas é difícil esquecer suas imagens, o que fazem delas e o que são feitas por elas, suas próprias filmagens. Aos poucos, essas câmeras soltas pelo cruzeiro acabam por apresentar um mix de hotel, clube e casa de shows rodeado de água por todos os lados, sugerindo aqui um estranho reality show (uma semana “sem contato algum com o mundo lá fora”, fala que surge numa cena com três controles remotos). Após anunciada a máquina de chopp, o zoom da câmera mira a marca da empresa, talvez por instinto.

A passagem por Fernando de Noronha, ilha de fato, é breve. A festa de Réveillon aguarda com as conhecidas promessas cantadas. Promessas festivamente solidificadas em fogos de artifício, que então podem se desmanchar no ar.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cowboys & Aliens



Sci-fantwestern coxinha

Hoje estreia Cowboys & Aliens, adaptação de graphic novel homônima e um blockbuster tão anêmico que será surpreendente se me render mais que três parágrafos. Vejamos.

Deram Homem de Ferro a Jon Favreau, Homem de Ferro deu algum poder a Jon Favreau e ninguém fez nada para impedir. Agora o diretor é apresentado como “o diretor de [UM SUCESSO]”, mesmo que seu talento pra uma cena de ação tenha a energia de um cargo burocrático, ou seja, desperdiçar todo um potencial da junção entre filmes de cowboy e filmes de invasão alienígena.

Temos então uma espécie de sci-fantwestern coxinha. O elenco, no entanto, é de interesse (Daniel Craig, Harrison Ford, Paul Dano, Sam Rockwell, Keith Carradine), mas logo submetido a diversas enfadonhices. O filme é exatamente isso, homens do faroeste versus invasores extraterrestres, com Craig sendo logo introduzido como um pequeno pedaço do classicismo do western, o homem de passado negro e/ou sem passado ou nome, aqui em posse de estranha engenhoca presa ao pulso. Craig encarna e fotografa bem esse mal-encaramento típico do gênero, deixando a vaga ideia de como seria vê-lo em um longa dentro das regras filmado por quem entende a partitura, algo como o último dos Coen, Bravura Indômita, mas aqui ele só tem umas correrias e uns flashbacks luminosos.

Craig desmemoriado se apaixona por uma Olivia Wilde que lembra uma dessas modelos produzidas pra eliminação de Big Brother, tipo feminino aparentemente exigido em todo faroeste adultescente atual. Ela é misteriosa, ela sabe de algo, ela tem respostas, ela vai se tornar um cheat code a ser xamanisticamente ativado, mudando o level do filme para VERY EASY. É assim, e Favreau parece ser o único a acreditar que tudo isso merece um ou outro rumo mais sério, a ponto da premissa divertida dar lugar a beija-flores observados como sinais importantes.

Cowboys & Aliens é ruim até a entrada dos aliens e pior com eles. Em uma entrevista, Harrison Ford disse que eram grandes as chances de sair uma bobagem. Estatística.

*postado ao som de "Yoshimi Battles the Pink Robot Pt. 1" - The Flaming Lips

Filme visto nos Cinemas Lumière Bougainville (cabine)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Um Novo Despertar (The Beaver)


Assistir a Um Novo Despertar uma semana depois de Melancolia pode ter algo de hilário. São, basicamente, filmes que procuram refletir sobre a muito bem adotada tendência a felicidades fingidas. Mas enquanto Lars Von Trier joga um mundo em nossas cabeças num espirituoso (e carinhoso?) apocalipse, Jodie Foster parece movida por alguma estranha carência de colo. Há a impressão de que algo muito importante precisa ser aprendido, uma dessas pra levar pra vida depois de carimbo de estrelinha no caderno.

Foster, sempre atriz de interesse, dirige este seu terceiro filme como quem espera um selo de aprovação do CVV. O protagonista dessa palestra motivacional é Mel Gibson em papel duplo: Walter Black, um homem depressivo por pacote completo de motivos, e o fantoche de castor que ele assume como personagem, iniciando todo um psicologismo sedex que ainda envolve esposa (Foster) e filho (Anton Yelchin), ambos descontentes. Castor em punho, Black parece melhorar, progresso acelerado por quatro ou cinco montagens em dois terços de filme.

O título original é “O Castor” e Gibson passa quase todo o filme falando pelo brinquedo, como se estivesse em um teste de casting dos Muppet Babies. Fica a dúvida entre olhar para o fantoche ou olhar para a cara de Gibson, exerciciozinho desconfortável, mas que parece almejado por enquadramentos e giros de câmera durante a ventriloquia de seu monólogo interior. “Eu não sou um fantoche”, diz o Gibson sotaquento, mas o close é no castor. Essas mastigações ganharão trinta minutos finais de um tipo de constrangimento alheio muito particular, com destaque para uma cena que, na memória mais recente, só fica atrás de Nicolas Cage vestido de urso batendo em mulher naquele inacreditável remake de The Wicker Man.

Por fim, temos aqui uma amostra de cinema-quem-mexeu-no-meu-queijo capaz de reproduzir o mesmo discurso motivacional via três personagens, uma narração em off e o próprio filme em si, totalizando cinco ladainhas. Cruel.

sábado, 25 de junho de 2011

Meia-Noite em Paris



Paris, uma festa móvel em tempo e espaço

Difícil não amar esse tour que Woody Allen tem feito pelo mundo, dando continuidade ao enorme tour que sempre fez pela vida. Desde Match Point que Allen vem se lançando no mapa, deslocando suas doces reflexões para várias cidades-chave da Europa: Londres, Barcelona, Paris... Seu próximo trabalho deve se situar entre o Rio de Janeiro e Roma. Cineasta que sempre teve sua Nova York como lar de seus filmes, essa recente mudança geográfica tem sido menos brusca do que se imaginava, revelando um Woody Allen apaixonado por onde quer que esteja.

Essa paixão está presente já no começo dos filmes. No caso de Meia-Noite em Paris, mais de trinta planos de lugares e não-lugares nos colocam na (assim considerada) cidade romântica por excelência, do dia à noite. Temos a impressão de que Allen não quer parar de observá-la, de enamorá-la antes de qualquer outro em sua primeira vez. Só depois irá nos apresentar ao escritor Gil, papel de Owen Wilson, surpreendentemente muito bom como o Woody-não-Allen da vez.

Gil está noivo e de viagem na França, acompanhado pela família da noiva Inez (Rachel McAdams, perfeita na irritação). Às vezes turista, às vezes viajante, Gil altera ocos passeios diurnos ao lado dos novos parentes e inspiradas andarilhagens noturnas que se revelam pura inspiração e dão razão a Hemingway: Paris é uma festa (móvel), e para Allen, que preenche os enquadramentos das aventuras de Gil com elementos bem mais interessantes e informativos, é também uma questão de perspectiva. Essas andanças solitárias parecem surgir como um pretexto de fuga, com Gil tentando escapar de um sujeito deveras pedante, Paul, antigo amigo de Inez. Paul é um desses clássicos sabe-tudo (vinhos, museus, história...) que chega a contrariar uma guia de Museu, o que, na ocasião, também é quase contrariar a primeira-dama francesa. Certos momentos são dignos de pena, mas com um risinho lateral.

Mais do que nunca, Woody Allen demonstra que existem aqueles que, num pedantismo distante, tratam artistas como nomes, e há aqueles que tratam artistas como pessoas, que foram ou que são. O próprio Paul, filmado como se fosse um elemento comicamente intrusivo (quase sempre começa fora de quadro, depois o invade), cairá num sumiço após algumas cenas, se tornando apenas um nome. E nomes, quando apenas nomes, são chatos. Em Allen, as pessoas são um objeto artístico, e daí surge a tamanha riqueza da metade noturna desse filme cuja magia anda de braços dados com A Rosa Púrpura do Cairo. Nostalgia é um elemento forte aqui, mas fica claro que também depende de como é vivida, de como pode ser superestimada, e um querido diálogo entre Wilson e Marion Cotillard sublinha bem: as “Eras de Ouro” e “Belas Épocas” se movimentam no tempo.

Meia-noite em Paris é um grande encanto em que Allen despedantiza a arte enquanto parece defender os pares certos para uma vida. Alguns pares as pessoas não escolhem e tem de lidar com isso, como o tempo em que se vive; outros pares podem ser escolhidos, como a cidade em que se vive; e outros, um pouco mais complicados, são escolhas do acaso, como as pessoas. Em outro inspirado momento da carreira de Allen, a última cena não nos deixa enganar: há romance em todos eles.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Domicílio Conjugal



Doinel e a desmocidade

Lembro que, quando os vi pela primeira vez, tinha gostado mais de Beijos Proibidos (1968) do que de Domicílio Conjugal (1970), duas das aventuras de Antoine Doinel, essa meia persona de François Truffaut. Hoje é o contrário, com Domicílio sendo algo muito próximo de um encanto, e alguns poderiam dizer até que seria o encanto de uma certa rotina e suas convenções. Mas é um Truffaut, e também um pedaço da saga de Doinel, então é um pouco mais.

O casal - sobretudo Doinel - é submetido a algumas fases do jogo matrimonial. Em uma abertura que é dos pontos altos de uma carreira alta, Truffaut filma as pernas de uma Claude Jade andarilha, moça apaixonante ao esclarecer que deixou de ser mademoiselle para ser madame. Minutos depois, ela faz questão de reprisar o beijo roubado na adega, aquele beijo (roubado? proibido?) de quando ainda era apenas mademoiselle.

Claude Jade é de uma doçura tão grande que do incômodo perfeitamente justificado ela passa para o cuidado, mas sem abrir mão de sua sinceridade. "Eu também queria ter sido sua esposa", uma fala que faz belo par com suas primeiras falas, e uma fala que conduz muito bem todo o peso que Truffaut lapida em torno de Doinel, mesmo em um filme que se comporta muito como uma pequena comédia romântica. Para um cineasta que sempre se mostrou interessado nos significados da aprendizagem e do amadurecimento, o eterno "incompreendido" Doinel se revelou seu projeto mais dedicado.

Já o que eu não lembrava em Domicílio Conjugal era da rápida aparição do Sr. Hulot, a grande persona de Jacques Tati. Durante cerca de apenas um minuto, Hulot, um desengonçado típico e gentil, tenta pegar o metrô. A princípio, pensei ser apenas uma curiosidade inserida pelo Truffaut cinéfilo, mas Hulot é uma das figuras mais ternas do cinema, caminhando pelo mundo enquanto espera ser surpreendido, ou realmente para ser surpreendido. Um muito como Doinel.

*postado ao som de "Someone Like You" - Adele

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Burrice (também) tem limite

O blog é, a princípio, sobre Cinema, mas senta aqui, escuta aqui, vamos conversar. Nesta tarde de quinta-feira, o jornalista esportivo RicaPerrone publicou o seguinte post em seu blog:


Como o próprio previu, o resultado foi uma onda de protestos contra o post. Posteriormente, pessoas passaram a defender o post, concordando. Twitter. Discussão vai desde twitts mais lúcidos aos mais agressivos, de ambos os lados. Acredito ser necessário dizer, contudo, que o post de RicaPerrone é muito mais burro, ignorante e desinformado do que homofóbico. Vejamos:

“O Cruzeiro ser punido no Voley porque sua torcida chamou o carinha do outro time de “viado” é a piada do século. Pra mim, é claro. Pra muitos é a “lição de moral” do ano.
Qualé a novidade em uma torcida chamar um adversário de viado? Qual foi o jogo, dentre os últimos 9 milhões aqui no Brasil, onde a torcida local não chamou o destaque rival de “viado”?”

Surpreendentemente, para quem leu o texto todo, Perrone começa até bem. A punição talvez seja um pouco demais, se pensarmos no universo esportivo (o que não descaracteriza como ofensa, principalmente se dependermos de contexto). Friso o talvez inclusive literalmente, por uma questão de dar o benefício da dúvida.

“Onde é que está o processo contra as torcidas que chamaram o Ronaldo de gordo?
Cadê a liga da justiça pra encher o saco quando xingam a mãe do juiz no futebol?
Não tem ONG “Mamães legais” ainda? Cria uma aí, pô! Se dá grana não sei, mas ibope dá.
Vamos separar as coisas e excluir o oportunismo ignorante, que é o pior que tem.”

Aqui, Perrone desanda. Muito. Não que gordos não sejam vítimas de bullying, mas queria saber se uma série de pessoas obesas é morta apenas por ser assim, por causa dessas características. Queria saber se essas pessoas têm direitos negados.

“O sujeito que nasce negro ou branco não pode ser discriminado pela cor que tem. Racismo é CRIME, é absurdo e não faz sentido.
O que não tem NADA a ver com o fato de eu virar pros meus amigos negros e chama-los, carinhosamente, de “Negão”. Pois assim o Pelé, rei do futebol, se chama, por exemplo.
Como nunca dei ataque por ser chamado de “gordinho” ou “alemão”.
São termos que, goste você ou não, perderam o tom ofensivo. É absolutamente popular, comum, inofensivo.
Assim como brincar com seu amigo e chama-lo de “viado”, ou hostilizar um rival com o termo. É normal, não quer dizer que “odiamos você por você gostar de meninos”.
Quer dizer: “Você é viado!”, sendo ou não. É uma forma de mexer com o jogo, só.”

Não existe uma onda de ataques, a ponto de matar, contra “gordinhos” e “alemães”. Essas pessoas não têm direitos negados por serem assim. É, simplesmente, uma comparação absurda, ignorante do ponto de vista sociológico, histórico, cultural e contando.

Ao mesmo tempo, no fantástico mundo de Rica, chamar alguém de “viado” é sempre tranquilo, nunca ofensivo, agressivo ou preconceituoso, aparentemente. E acompanhem comigo no replay:

Ser gay, que no meu conceito é 100% diferente de ser viado, é uma OPÇÃO SEXUAL. Viado é uma “opção pra aparecer”. Assim sendo, é opcional ser gótico, Emo, pagodeiro, roqueiro, palmeirense, flamenguista, etc. Você escolhe o que quer ser e como quer viver. E isso gera grupos que se afastam ou se aproximam de você.
Adoro samba, logo, tenho enorme facilidade em ter amigos sambistas. Não tenho, porém, grandes amigos roqueiros daqueles que andam de preto balançando a cabeça. Sou guitarrofobico?
Porra! São escolhas, e não ofendendo, não menosprezando, é tão direito seu andar de rosa quanto meu andar do outro lado da rua. Qualé?



“Opção sexual”. Fascinante: porque eu não me lembro quando escolhi ser heterossexual. Talvez Rica se lembre quando, ainda jovem, talvez criança, talvez ainda nas mamadas, parou e decidiu que queria mesmo é pegar a mulherada. Eu não lembro. Lembro quando escolhi escutar heavy metal, lembro quando decidi não ser mais metaleiro, lembro quando decidi ser corinthiano, lembro quando decidi parar de acompanhar futebol, lembro quando escolhi voltar a acompanhar apenas alguns jogos da Champions League, lembro quando decidi ser ateu, e lembro, sobretudo, quando decidi não apenas não ser preconceituoso, mas quando optei por combater certos preconceitos. Dessas coisas eu lembro. Essas foram as minhas escolhas. Eu queria poder escolher por quem me sinto atraído (porque, afinal, não é essa a questão?); facilitaria muitas coisas.

E o que fazer quanto à palavra “viado”? Pelo visto, Rica não vê mal algum. Serve até pra separar os gays (contidos, discretos, apenas “gays”) dos gays plus edição especial em 2 discos e muitos extras (os “viados”, afetados, afeminados, espalhafatosos). Então como é isso? Por analogia, tá liberado chamar de “macaco” os negros “mais escuros”, Rica? Como funciona? Eu acredito – assim, é só uma impressão, andei lendo umas coisas – que não tá liberado, porque racismo já é crime. Na Constituição, “viado” ainda tá permitido. O que isso significa?

Mas vamos, por um instante, acompanhar o raciocínio e os conceitos de Rica e encararmos “viado” como “uma opção pra aparecer” (o que não deixa, é verdade, de ser uma distinção adotada por parte da sociedade). Deixo, com vocês, algumas palavras da Mahayana (@mahagod):

“Esse argumento de "seja gay, mas não espalhe por aí! Nada de ser afeminado! Dê o cu no seu quarto, mas nada de dar a mão na rua!" Deixa eu contar uma novidade: tem gay que GOSTA de ser afeminado, assim como tem gay que não gosta.... É o equivalente ao Bolsonaro chegar para um negro e falar "olha, você pode ser preto que vou fingir que você é gente, mas nada de querer ser macumbeiro, de batucar, de usar blackpower ou rasta... Seja negro, mas se comporte como branco. De preferência, passa um pó de arroz nessa cara". Cultura afro tá aí para ser usada, abusada e respeitada. Cultura gay também.”

Pra finalizar, Rica sabe por quantos gays já andou lado a lado em uma calçada e não sabia que eram gays? “Andar do outro lado da rua”? Ok, direito seu. Mas por que não proibi-los de andar nas calçadas, facilitando as coisas? (dica: alguém, na História, já tentou coisa parecida)

(EDIT: ah, será que ele se referia apenas aos "viados"? Ok, direito, talvez até com um pouco de propriedade, assim como eu prefiro evitar aqueles machões-pagadores-de-comedor-em-micaretas. É uma escolha ser esse tipo machão, e é escolha ser o "viado" ao qual Rica se refere. Mas, da mesma forma que tais juízos não podem se sujeitar a generalizações, tampouco podem ignorar que "machões" não correm o risco de serem agredidos até a morte por terem escolhido a persona da "macheza".)

O discurso da tolerância ("não concordo, mas tolero"), tão recorrente, é perigoso e costuma carregar um preconceito disfarçado. Por definição, tolerância presume uma relação de superioridade e inferioridade. "Você pode ser assim desde que eu tolere". É, em outras palavras, dar ou não uma permissão. E se alguém tolera e permite em um certo momento, pode simplesmente, na sua condição de "superior", deixar de tolerar e permitir. Quem deu o poder de permissão a esses tolerantes (sic)?

"Você quer ser gay ou amigão da galera? Quer ter direitos ou “mais direitos” que os outros?
Pelo que brigam, afinal?
Eu não sou gay, nunca destratei um gay, não sou homofobico, mas não quero ter um filho gay. Como não quero ter um filho gótico e nem Emo, o que não me torna um “emofobico” ou “Goticofobico” e nem gera centenas de moralistas me enchendo o saco.
Porque? Quem está tendo “tratamento diferenciado” agora?
Sejam gays. A gente aceita. Só não forcem pra ser “exemplo”.
Se querem igualdade, taí. O que querem, agora, é tratamento VIP.
Já nos obrigaram, com razão, a respeitar. Não tentem nos obrigar a gostar."


“Mais direitos”. Eis uma pessoa que não entende, não faz a menor idéia, do que homossexuais (e todas as minorias – politicamente falando – discriminadas) querem. Querem, pra começar, os direitos que lhes são negados (são, na verdade, 73 dessa lista, não 78). Querem direitos, ora vejam, humanos.

Também não sou gay, Rica. Se você é homofóbico, eu ainda estou aqui julgando. Não pretendo ter filhos, mas, se tiver, o que quero mesmo é que seja alguém sensato, esclarecido. Penso que burrice (ignorância nem tanto, depende de mais coisas), no sentido de tolice mesmo, seja uma questão de escolha, principalmente para quem tem acesso a informação. Como jornalistas, por exemplo. Como comunicadores.

Rica tem certa razão, mas de uma maneira torpe. Gays tem “tratamento diferenciado”. Na Av. Paulista ,eles têm recebido esse tratamento quase toda semana, por exemplo. Eu não apanho por causa da minha sexualidade, tampouco por causa da minha cor branca, muito menos por minha estatura mediana. Os gays, sim. Alguns tem até o privilégio de serem mortos por causa dessa característica.

E como perguntar não faz mal: o que deve ser “exemplo”? Ninguém está obrigando ninguém a gostar de nada. Faz-se necessário, porém, um pedido de bom senso e esclarecimento, principalmente de um nome com espaço na mídia. Eu sei que um post tão descuidado e desinformado não pode ser exemplo, e, no entanto, é tomado como exemplo por muitos. É só observar a hashtag #ricaperrone no Twitter, onde o discurso ignorante, por vezes homofóbico, encontrou (mais uma) força motora.

Preconceito existe. Preconceito latente existe. Um texto absolutamente sem fundamento, agarrado a um mais puro e inoportuno senso comum, pode fazer com que esses preconceitos apareçam, tomem força. No começo do texto, dá pra perceber que Rica quis ir para um lado, quis dizer alguma coisa. Não conseguiu. A comunicação ou não foi feita por perder seu sentido ou seu comunicador foi simplesmente irresponsável e incompetente.

RicaPerrone afirma não ser homofóbico. Muitos são ou colaboram para uma homofobia sem perceber que assim o fazem. Por ignorância, às vezes próxima a uma ingenuidade febril. O caso de Rica é mais grave, pois ignora os efeitos de um texto seu na mídia, e, na corrente, acumula e reforça pessoas que ignoram o que seu texto ignora.

Já nos obrigaram, e com razão, a estudar. Não tente nos obrigar a pensar que isso foi inútil. Burrice e ignorância também têm limites.

Fabrício Cordeiro - @fabridoss

p.s.: as críticas contidas neste post são destinadas ao texto "Hipocrisia tem limite" escrito por RicaPerrone e somente a esse texto. Não conheço o jornalista, não sei se ele costuma ter essa falta de cuidado, muito menos se ele é uma pessoa "burra" e ignorante no geral. O texto, entretanto, é.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Oscar 2011 - Apostas e torcidas


Só pra registrar palpites e torcidas em algumas categorias:

FILME
Palpite: O Discurso do Rei
Torcida: Cisne Negro, Toy Story 3 ou A Rede Social

DIRETOR
Palpite: David Fincher (A Rede Social)
Torcida: David Fincher (A Rede Social) ou Darren Aronofsky (Cisne Negro)

ATRIZ
Palpite: Natalie Portman (Cisne Negro)
Torcida: Natalie Portman (Cisne Negro)

ATOR
Palpite: Colin Firth (O Discurso do Rei) 
Torcida: Colin Firth (O Discurso do Rei) ou Jeff Bridges (Bravura Indômita)

ATRIZ COADJUVANTE
Palpite: Hailee Steinfeld (Bravura Indômita)
Torcida: Hailee Steinfeld (Bravura Indômita)

ATOR COADJUVANTE
Palpite: Christian Bale (O Vencedor)
Torcida: Christian Bale (O Vencedor)

ROTEIRO ORIGINAL
Palpite: O Discurso do Rei
Torcida: A Origem

ROTEIRO ADAPTADO
Palpite: A Rede Social
Torcida: A Rede Social

MONTAGEM
Palpite: A Rede Social
Torcida: A Rede Social

FOTOGRAFIA
Palpite: Bravura Indômita
Torcida: Bravura Indômita

DIREÇÃO DE ARTE
Palpite: O Discurso do Rei
Torcida: A Origem 

DOCUMENTÁRIO
Palpite: Inside Job
Torcida: Exit Through the Gift Shop

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Cisne Negro



Asas do desejo

Cisne Negro é a versão despida, visceral e real de O Lago dos Cisnes. É exatamente o que o coreógrafo Thomas de Vincent Cassel anuncia na sua primeira cena, num misto de austeridade, cretinice e sensualidade profissional. É Cassel, também em sua primeira fala, que (re)conta exatamente do que se trata O Lago dos Cisnes, peça batida e conhecida e, justamente por isso, não surpreendente. Com um certo brilhantismo e audácia, o filme de Darren Aronofsky está inteiro nessa fala.

Essa encarnação de Tchaikovsky é literalmente refletida em pelo menos dois terços das cenas, um jogo de espelhos tão destemido visual e narrativamente que personagens se desprendem uns dos outros e pequenos planos-sequência surgem livres para se deixarem atrair pelos números de balé. Numa história que lida tanto com o duplo, o longa não apenas se torna uma adaptação ou encenação da peça, mas a própria peça. Não há segredo quanto a isso, e Aronofsky tira todas as vantagens aos transpor o anunciado visceral e real para a vida de Nina (Natalie Portman), bailarina não só esforçada, mas extremamente obcecada pela perfeição quando calçadas as apertadas sapatilhas. Tamanha pressão, até o companheiro violino cresce opressor no canto da tela; Tchaikovsky torna-se assustador nas combinações retorcidas que é a trilha de Clint Mansell, aberta aos leves e constantes delírios sonoros.

Aronofsky parece ter construído um filme tenso desde o princípio, com um nó de garganta seca constante por Natalie Portman, indicada ao Oscar como favorita e que aqui parece comer duas coisas no café da manhã: torradas Annette e panquecas Bening. É uma dessas performances de dar agonia até pelos momentos mais “felizes” dessa garota que ouve loose (soltar-se) e entende lose (surtar-se), pelo seu sofrimento certeiro, grande atuação que justifica a carreira de uma grande (ainda) jovem atriz que justifica a existência de um Luc Besson. Não é comum ver closes tão maravilhados por choros tão frustradamente contidos.

Papel da Rainha Cisne é tanto sonho quanto objetivo da bailarina; toca na caixinha de música e no celular, retoca na mãe castradora. Essa relação – meio doente, meio adoecida – com a mãe (Barbara Hershey, medonha, perfeita) pode ecoar algo de Carrie – A Estranha, mas a sexualidade áspera de Nina faz com que Cisne Negro ande de mãos dadas mesmo é com Repulsa ao Sexo, um grande Polanski. São todos filmes em que há abusos mentais em sincronia com o que passa a ter de muito físico, e o que Aronofsky faz de melhor é dosar com peso as várias artimanhas de um belo terror psicológico com os avanços explícitos de um terror-terror. Sequência final é puro diamante.

Talvez a primeira lembrança de um balé aterrorizado na tela seja Suspiria, de Dario Argento. No entanto, temos aqui uma série de bifurcações distanciando os dois filmes, a começar pela predominância – claro! – do preto e do branco, enquanto Argento é um entusiasta das cores. Aronofsky obedece a essa simples e essencial dualidade  descolorida da peça, em figurinos in e off stage, em Nina e seu negativo safado (Mila Kunis), em cortes descontínuos dos escuros corredores masmorrentos para as clarezas à céu aberto e vice-versa, muito disso com a câmera bem ali atrás de Portman, como esteve atrás de Mickey Rourke em O Lutador, às vezes lembrando um Dardenne mais nervoso (no melhor sentido).

Cisne Negro parece consolidar o amadurecimento de um cineasta de cinco longas, Aronofsky em auge muito alto. Fica também um interesse especial por seus dois últimos trabalhos, em observar que, com toda aquela musculatura monstruosa em palco de luta, O Lutador ainda parece ser o mais sensível, e Cisne Negro, com toda sua delicadeza metamórfica em palco de ballet, o mais brutal, deliciosamente obsessivo, de uma afetação agressiva encantadora . O filme é uma coisa.

* postado ao som de "Little by Little" - Radiohead

sábado, 22 de janeiro de 2011

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas



Cinema 6-D

É realmente complicado escrever sobre Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010). Há, inclusive, uma pequena sensação de risco, pois é um filme que, de certo modo, te desafia em sua imersão como cinema, e, não menos importante, de onde parte esse cinema e como nos relacionamos com ele. E o tailandês Apichatpong Weerasethakul (ou apenas Joe, como ele mesmo sugere) é muito bom nisso, talvez um dos melhores do que poderíamos chamar de cinema sensorial, mas com o cuidado para que tal termo não limite sua obra.

Entre outras coisas, o trabalho de Joe sugere o cinema de uma Tailândia dicotômica em comunicação com o mundo. Quando Joe pega seus Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século e os divide ao meio, ou trabalha com elementos de modernidade em filmes, digamos, essencialmente mais “rurais”, não há exatamente um efeito de choque, pois não há agressividade alguma, tampouco o privilégio de um a outro. Joe localiza uma Tailândia harmoniosa, tudo muito suave, assim como vários minutos de Tio Boonmee dedicados a um quarto que aparentemente não tem nada a ver com o restante do filme, mas, em toda a postura rotineira das cenas, não se opõem. “Personagem” tradicional da imagem asiática, a figura de um monge, por exemplo, com frio devido à sua cabeça raspada estar na direção do ar-condicionado pode parecer detalhe, mas é carregada de forte simbolismo no cinema deste artista.

O longa é a sequência de um projeto iniciado em um curta de 2009, intitulado Uma Carta Para Tio Boonmee, e, narrativamente, Joe pode ter realizado aqui o seu filme mais claro. Em suma, faz exatamente o que explicita no delicioso título: acompanhamos tio Boonmee, um adoecido fazendeiro que relembra algumas de suas vidas passadas. São recordações que surgem juntamente com o retorno de alguns de alguns entes queridos, momentos que Joe filma com simplicidade, mas carregado em tom de mistério e espiritualidade, um tom que se fortalece com o interesse de Joe em colocar personagens natureza adentro, com sons muito vivos. O verde é orgânico e poderoso, parte do longa filmada e sonorizada com uma câmera-mato que envolve e deslumbra. Cinema 6-D, sem óculos.

Também parece ser rico enxergar em Tio Boonmee um olhar asiático sobre a morte. A peregrinação do personagem título se torna um desbravamento quase mítico em seu existencialismo levemente fantasioso. Se Godard, com um close e um corte seco, colocou o universo numa xícara de café, Joe coloca todo um céu estrelado (o universo?) dentro de uma caverna, mais tarde comparada a um útero.

Temos em Joe um cineasta com perfeito domínio de uma atmosfera. O que mais chama a atenção é que o enigmático está mais no clima, criado e alimentado por enquadramentos estranhos durante um diálogo, por meros pares de olhos vermelhos ou pela súbita inserção de uma fábula sobre a relação entre uma princesa e seu servo. Além de enriquecer o filme em beleza com todo o encanto dos sons e do azul de uma cachoeira, essa fábula não apenas reforça o gosto de Joe por fábulas em si (Mal dos Trópicos), mas por animais, com pelo menos três dignos de um destaque quase onírico em Tio Boonmee. Uma imagem dos macacos-fantasmas foi bastante circulada durante a exibição no último Festival de Cannes, no qual recebeu a Palma de Ouro. De fato, é uma das imagens mais potentes de um filme que justifica o Cinema como arte.