sábado, 20 de fevereiro de 2016

Altos e baixos da 9ª Mostra O Amor, a Morte e as Paixões



Desde que retornou em 2012, a Mostra O Amor, a Morte e as Paixões garante duas semanas de fevereiro para trazer a Goiânia dezenas de filmes do circuito mais alternativo. Em parte, é uma repescagem da Mostra de SP e do Festival do Rio do ano imediatamente anterior, mas um ou outro lançamento acaba antecipando estreias. Para além de alguns grandes filmes, talvez a melhor coisa nessa lógica de várias sessões reunidas num único lugar seja fazer com que o público de shopping mais típico, ou com visão mais conservadora sobre cinema (aquelas pessoas que procuram um filme apenas atrás de "uma mensagem", ou "de uma história que merece ser contada"), se arrisque ou entre meio que por acidente em sessões de filmes que podem lhe causar algum choque térmico, tirá-los do conforto de um cinema seguro que geralmente impera nos multiplexes e até fora deles. Eu mesmo indiquei Cavalo de Turim e Carol para duas senhorinhas aparentemente conservadoras, por exemplo.

A Mostra sempre aconteceu nos Cinemas Lumière do shopping Bougainville, localizado em bairro nobre de Goiânia, o Setor Marista. Como se trata de um multiplex empresarial (embora seja um dos que se arrisque com programações mais alternativas, mescladas ao que há de mais comercial), é compreensível que a Amor Morte Paixões misture o exigente cinema do húngaro Béla Tarr com um blockbuster como Deadpool e indicados ao Oscar, como A Garota Dinamarquesa, e também salas cheias garantidas, por mais bizarras que sejam, como é o caso de Os Dez Mandamentos (que aparecia no catálogo da Mostra ao lado de um Boccaccio dos Taviani, por exemplo). Eu falo que é compreensível porque de algum modo é essa mistura que talvez garanta a continuidade e o trabalho de se trazer obras realmente importantes para Goiânia e para um público de shopping que muitas vezes não está acostumado a isso. Nenhuma Mostra de shopping sobreviveria passando apenas As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes e filmes de Lav Diaz, afinal. E pra quem sabe o que procurar e como se organizar, é facílimo fugir de aberrações como Amor em Sampa e Os Dez Mandamentos (um novo modelo de evangelização e, a meu ver, lavagem cerebral, mas isso é outra discussão...).

Mas, bom, vamos aos altos e baixos mais pontuais.


BAIXOS

- Passaram a cobrar pela grade de programação impressa (não catálogo, que não existe, e sim a grade com salas e horários). R$ 2. Inquestionável o valor da Mostra pelos filmes que traz, mas cobrar por grade de programação, contudo, é um tanto ridículo e feio.

- As sessões de curtas goianos. Não pelos curtas em si, mas por se fecharem em duas sessões de curtas que inevitavelmente ficariam em horário ingrato (às 10h45 de uma sexta e de uma terça). São curtas, e creio que seriam mais vistos, sem muito esforço por parte do público, se distribuídos cada um antes de um longa em horário mais favorável. Além disso, recentemente soube que nenhum dos realizadores dos curtas goianos ganhou direito a tirar ingresso como convidado, sequer cinco ou três ingressos por realizador. Penso que, trazendo tantos filmes importantes, a Mostra AMP também age como um elemento de formação do olhar (fez parte do meu, desde sua primeira edição em 2001), e cinco cortesias para realizadores, alguns deles estudantes, seriam um incentivo valioso e elegante, acredito. Ficam como sugestões para o ano que vem: o lugar dos curtas na grade e um certo número de ingressos reservados a seus diretores e diretoras (dois pra cada, que seja...).

- Amor em Sampa como filme de abertura me parece um show de horrores. Como é uma sessão gratuita, penso que acaba sendo uma oportunidade perdida de encher uma sala para assistir a algum filme brasileiro que tenha lá sua distinção, que desequilibre o lugar comum do espectador. Ano passado foi assim, com a exibição de Casa Grande, de Felippe Barbosa (que por mais que tivesse Marcelo Novaes, havia ali uma inversão de expectativa; não é um cinemão comercial esterilizado como Amor em Sampa ou de globochanchadas mil). Este ano poderia ter sido Boi Neon, de Gabriel Mascaro, ou Campo Grande, de Sandra Kogut. Mas são as negociações mercadológicas de sempre, incontornáveis e até necessárias em alguma medida.

- A exibição de A Pele de Vênus. Bom, exibiram o longa do Polanski numa projeção cagadíssima, inferior a qualquer rmvb vagabundo de internet. Uma tela pequena, encolhida no meio da tela da sala, com um excesso de brilho acabando com a luz do filme (luz que tem participação fundamental em sua construção dramática e teatral). Trata-se de um ótimo Polanski, no fim das contas, e foi isso que me segurou até o fim, pois em certo aspecto é como se eu ainda não tivesse visto o filme, pois aquilo não foi uma exibição, foi outra coisa, inominável.

- A falta de debates no Cine Lumière. Porque todos foram no Cine Cultura, o que não há nada de errado nisso, mas até por suas localizações (Cultura na Praça Cívica, centralizado; Lumière nos altos do Marista), os públicos são diferentes. Quem conhece o Cine Cultura, em suas boas e más fases, sabe que seu público já é acostumado a debates, a festivais, a palestras (ano passado, durante o Fronteira Festival, nada menos que Andrea Tonacci e Toni D'Angela estiveram lá para uma conversa/palestra/tradução, juntos, conversando com os espectadores). Debate em sessões do cine Lumière Bougainville é outra coisa, é ter oportunidade de analisar um filme, criticá-lo, debatê-lo, propor, desenvolver e pensar questões para e com um público que, no caso, já não está tão habituado a isso. Debates sempre foram programados para sessões do Lumière. Não sei por que tiraram isso desta edição, mas acho uma perda.

- O minicurso com Inácio Araújo. Aqui, as decepções se deram de duas formas: a primeira no que diz respeito à organização, que, pelo que entendi, estava toda sob responsabilidade da Mostra, o Cine Cultura apenas cedendo sua sala para a realização do curso. Mas informações chegaram de última hora (a necessidade de uma losa, salvo engano - e que não foi conseguida), improvisos para conseguir caixa de som e microfone tiveram de ser levados adiante, tudo, pelo que pude observar, a partir de esforços de Marcelo Ribeiro, programador da sala e que não teria tido uma trabalheira danada caso a Mostra estivesse mais preparada e mais precisa na comunicação com o próprio Cine Cultura. A outra frustração foi com o próprio minicurso: por mais que Inácio seja um dos grandes da crítica de cinema no Brasil, referência inquestionável e um dos que mais li em toda minha vida, ou seja, faz por onde ser respeitado, este seu minicurso de "análise fílmica" teve pouco de análise fílmica e de crítica; em parte, claro, porque os participantes ali eram, em geral, evidentemente iniciantes, o que levou o papo para um lado mais introdutório (o que é compreensível, mas aí o problema passa a ser, então, no anúncio do curso como sendo de "análise fílmica"). Já vi Inácio falar em outras ocasiões - sobre Godard, sobre Hawks, sobre Ford etc etc; acho que a primeira vez que o vi e o ouvi foi em 2002, na Amor Morte Paixões mesmo -, algo prazeroso e proveitoso mesmo para quem já entende de cinema, pois é interessante ver a maneira como o outro diz e enxerga coisas que você sabe e concorda, só que o outro diz ao seu próprio modo, o que sempre vou considerar muito rico. Desta vez, no entanto, pouco tempo de análise de fato (a exceção seria seu comentário colocando em paralelo Janela Indiscreta, Blow-Up e Blow Out). Inácio também decidiu exibir Only Angels Have Wings, de Howard Hawks, inteiro em suas 2h de duração, exibição que comeu 1/3 das 6h do minicurso. Não gosto nada de longas inteiros em cursos curtos (e mesmo nos maiores, com dias e dias de curso, acho questionável, embora a real necessidade possa se colocar na agenda), ainda mais hoje, com praticamente qualquer filme estando acessível para ser visto em casa; acho improdutivo, mesmo numa aula do Inácio - ou sobretudo, já que são 2h a menos que ele poderia estar falando e analisando.


ALTOS

- Por outro lado, a ideia de oferecer minicursos deve ser incentivada. Além de Inácio, trouxeram Fátima Toledo para um minicurso sobre preparação de elenco (este eu não pude acompanhar, não sei como foi). A Mostra AMP é visada, entra na mídia, é bem vendida e procurada, então quanto mais puder fazer pela formação do olhar (e de profissionais) daqui, melhor.

- As projeções. Impressão minha ou as projeções das salas Lumière Bougainville melhoraram consideravelmente? Salas 1 e 2 continuam as melhores, telas largas, ideais para exibirem um scope. Depois viria a sala 4, também com boa projeção (o digital estava particularmente cristalino nessa tela), mas às vezes pecavam no som, deixando-o muito baixo. Sala 5 normal, nada de mais. A sala 3 era a única realmente ruim, a mais sensível ao som das salas vizinhas e, pior, com a tela escura (estava irritante assistir a Macbeth por lá). Mas em comparação às edições anteriores e ao próprio histórico do multiplex, que vira e mexe chegava a projetar filmes na janela errada (nunca esqueço de quando exibiram Che do Soderbergh quadrado na tela, num 4:3, sendo que o filme é 2.35:1), este ano estava quase tudo em ordem.

- As sessões de clássicos brasileiros. Na verdade, é mais pelo retorno de alguns clássicos, pois as exibições de Macunaíma, Terra em Transe e Xica da Silva foram todas em DVD (alguns conseguidos de última hora, pelo que me disseram), o que é um tanto frustrante. Entendo as dificuldades de logística e, em alguns casos, de custo, mas se há uma lacuna dessas cinco últimas edições em relação às quatro primeiras, é a falta de um ou outro clássico na programação, preferencialmente em boa cópia. Em 2003 a AMP teve o privilégio de exibir O Desprezo do Godard em película (e com Ismail Xavier para comentar o filme pós-sessão), vejam só.

- Os debates. Sempre fizeram parte da Mostra. Acho que apenas umas duas edições não tiveram. São importantes, e desta vez foram voltados para os clássicos brasileiros. E pela primeira vez, até onde eu saiba, os debatedores - todos de Goiânia, inclusive eu - receberão cachês, o que também é importante e justo, uma valorização que é rara por aqui e, na verdade, em quase todo o país.

- A parceria com o Cine Cultura. Parceria ainda com seus problemas, como no que relatei sobre o minicurso com o Inácio, mas é uma colaboração que vem num momento importante para o Cine Cultura, que volta agora a ter um programador, alguém que sabe o que procurar e o que colocar na agenda de exibição do cinema e alguém que consiga pensar em maneiras de trazer o público de volta à sala, apesar do tão conhecido descaso da Seduce-GO com aquele lugar (estive lá recentemente, para além da sala em si, e é lamentável). O nome do Cine Cultura entrar como parte da programação, tendo sua sala e, acreditem, existência divulgadas é algo que espero que se repita nas edições futuras da Mostra.

- E, enfim, talvez o ponto mais importante de todos: os filmes. Esqueçamos as produções incomíveis: o que vale, apesar de pesares, é permitir que algum público daqui possa ver um Béla Tarr engrandecido pela sala de cinema, ou três raras exibições do Godard 3D, um irmãos Taviani, um Panahi, um Lav Diaz, entre muitos outros que, com ainda mais sorte, entram na programação normal do cinema algumas semanas depois.


Por fim, deixo abaixo o que vi (ou revi) na Mostra, com avaliações de 1 a 5, tanto para constar como registro como também porque alguns amigos me pediram (mesmo que eu ache cotações um resumo grosseiro e, no fim das contas, pateticamente consumista nos dias de hoje, como se o cinema pudesse ser espremido numa lista de supermercado a ser usada para guiar o espectador - espero conseguir escrever críticas sobre alguns lá na revista Janela):

  1. Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) - 4/5
  2. O Cavalo de Turim (Béla Tarr, 2011) - 4/5
  3. Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015) - 3/5
  4. Carol (Todd Haynes, 2015) - 4/5
  5. O Regresso (Alejandro González Iñárritu, 2015) - 1/5
  6. A Pele de Vênus (Roman Polanski, 2013) - 4/5
  7. Joy (David O. Russell, 2015) - 1/5
  8. Victoria (Sebastian Schipper, 2015) - 1/5
  9. Três Lembranças de Minha Juventude (Arnaud Desplechin, 2015) - 3/5
  10. O Filho de Saul (László Nemes, 2015) - 2/5
  11. Maravilhoso Boccaccio (irmãos Taviani, 2015) - 3/5
  12. Periscópio (Kiko Goiffman, 2015) - 1/5
  13. Deadpool (Tim Miller, 2016) - 3/5
  14. Anomalisa (Charlie Kaufman e Duke Johnson, 2015) - 3/5
  15. As Mil e Uma Noites - Volume 1: O Inquieto (Miguel Gomes, 2015) - 3/5
  16. As Mil e Uma Noites - Volume 2: O Desolado (Miguel Gomes, 2015) - 2/5
  17. Taxi Teerã (Jafar Panahi, 2015) - 4/5
  18. Body (Malgorzata Szumowska, 2015) - 2/5
  19. Spotlight (Tom McCarthy, 2015) - 3/5
  20. La Sapienza (Eugène Green, 2014) - 4/5
  21. A Ovelha Negra (Grímur Hákonarson, 2015) - 3/5
  22. Steve Jobs (Danny Boyle, 2015) - 2/5
  23. Mr. Holmes (Bill Condon, 2015) - 1/5
  24. Mia Madre (Nanni Moretti, 2015) - 2/5
  25. Dheepan (Jacques Audiard, 2015) - 2/5
  26. Party Girl (Marie Amachoukeli, Claire Burger, Samuel Theis, 2014) - 2/5
  27. A Garota Dinamarquesa (Tom Hooper, 2015) - 1/5
  28. Nostalgia da Luz (Patricio Guzmán, 2010) - 3/5
  29. O Abraço da Serpente (Ciro Guerra, 2015) - 3/5

Filmes que estavam na Mostra e que eu já havia visto:




  • Pasolini (Abel Ferrara, 2014) - 3/5
  • Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015) - 5/5
  • Norte, o Fim da História (Lav Diaz, 2013) - 4/5
  • Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard, 2014) - 3/5
  • Mistress America (Noah Baumbach, 2015) - 2/5
  • Garota Sombria Caminha pela Noite (Ana Lily Amirpour, 2014) - 3/5
  • Órfãos do Eldorado (Guilherme Coelho, 2015) - 2/5
  • Os Oito Odiados (Quentin Tarantino, 2015) - 3/5
  • Sicario (Denis Villeneuve, 2015) - 2/5
  • terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

    19ª Mostra de Cinema de Tiradentes

    Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela

    Usando o gás da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes pra tirar a poeira disso aqui depois de sei lá quanto tempo. Ajuda a organizar o pensamento e, bom, a liberdade de escrever mais molecamente e sem muito compromisso também faz bem.

    No geral, foi uma Tiradentes bem mais interessante que a do ano passado. As paralelas ajudaram, esquivando-se de nulidades como A Despedida de Marcelo Galvão ou Órfãos do Eldorado do Guilherme Coelho, presentes na edição anterior. Aparentemente, ninguém gostou do novo do Ruy Guerra (não vi, cheguei depois), que dizem ser desastroso, mas por ser do Guerra valeria a curiosidade de amassar a cara na parede; ou não?

    Debates melhores também. Teve até breve barraco no de Filme de Aborto. Ademais, o Hernani Heffner fez, com toda aquela fala calma e esclarecida, uma das melhores apresentações de toda a Mostra durante a mesa "Espaços em Conflito", tema desta edição. Heffner fez todo um histórico do "filmar o inimigo", resumiu caminhos do neo-liberalismo e ainda lembrou do "Poeira de Estrelas" do Moacyr Fenelon, vejam só. Deve ter sido ponto alto dessas mesas, ao lado da fala do Tonacci no segundo dia (e que também perdi).

    Sobre a Aurora, também um conjunto forte, mesmo tendo aqueles com os quais chego a ter quase uma aversão. O primeiro a ser exibido, Índios Zoró - Antes, Agora e Depois?, do Luiz Paulino dos Santos (roteirista de Barravento, do qual passou perto de dirigir), tem seus momentos, mas a cada dia ele se esvai na minha memória, o que é uma pena. Já escrevi sobre ele na revista ] Janela [, crítica em que talvez eu tenha sido generoso demais.

    O segundo, Aracati, de Aline Portugal e Julia De Simone (e tem coprodução da Alumbramento, esse nome forte lá da cena cearense), me encantou e ainda me encanta. Filma o tempo e parece vir dele, encontrando um ritmo de passagem que não sai da minha cabeça. Dividiu opiniões e pode acabar sendo criticado por sua plasticidade, mas tô longe de seguir esse caminho. Também escrevi na ] Janela [.

    A terceira sessão da Aurora foi reservada ao longa goiano Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela, salvo engano a estreia de Goiás na Mostra. Talvez tenha sido meu preferido da competitiva. É atrevido sem deixar de ser delicado; atrevido não por adotar um enfrentamento sangue no olho, mas por evitar o lamento fácil e olhar pra frente, meio que propondo cruzar uma fronteira ainda mais complicada que a demarcação territorial: fronteira do tempo, geracional. É preciso ter coragem para se ter esse tipo de esperança e encerrar um filme tão pesado com um plano final de crianças indígenas brincando ao horizonte. Crítica completa aqui.

    Banco Imobiliário, de Miguel Antunes Ramos, inicialmente me atrai por lidar cara a cara com essa cultura do prédio e essas imagens de propaganda de investimento imobiliário. Miguel é da turma que realizou os curtas E. e O Castelo (também exibido em nesta Tiradentes) tem essa visão um tanto interessante de olhar pro concreto hoje como se fosse de um futurismo broxante e cafona. Até aí tudo bem. Mas os curtas são melhores e mais safos; neste longa, Miguel entrevista vendedores e tanto algumas abordagens quanto a montagem parece se colocar alguns degraus acima desses personagens, ridicularizando-os e dando-lhes rasteiras. Miguel e equipe disseram se surpreender com as risadas durante a sessão, demonstrando não terem percebido algo que, ao menos para o espectador, aparecia como ironia e humor evidentes (e, em parte, questionáveis). Inevitável lembrar das questões éticas na realização de Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro; só que Mascaro era mais esperto naquele seu documentário, dava pra perceber que assumia aquela postura desde o princípio, disposto a apanhar por ela.

    No mesmo dia de Banco, teve Filme Aborto, o "filme que causou" nesta edição. Dizem que todo ano tem um desses em Tiradentes; o de 2015 teria sido Medo do Escuro, do Ivo Lopes Araújo, um cine-show que, mesmo cambaleando, se revelava uma puta experiência. Filme de Aborto, de Lincoln Péricles (de quem aprecio Homem na Estrada e só), me parece desses filmes esquivos (como bem apontou e questionou o Krefer durante o debate, questionamento legítimo porém não muito bem recebido; ironicamente, a própria resposta de Lincoln - "não entendo o que quer dizer com esquivo" - parecia uma esquiva), a serem defendidos pelo seu tema - importante, urgente, necessário etc, mas e o cinema? - e sem muito para ir além. Ruptura da linguagem dominante e "cinema pedreiro"? Ermmm, ok. Mas acho que desconfio desse discurso ideólogo da imagem como uma espécie de novo caminho de "linguagem revolucionária" ou algo do tipo sempre que lembro do Hurlements en faveur de Sade (1952, mais de meio século atrás), o filme anti-imagem do Guy Debord, em que por cerca de 1h só há tela branca e narração over. Em certo sentido, é um saco, e em outro sentido, uma obra-prima da ruptura máxima (daria pra incluir o Critique de la séparation e o In Girum... no mesmo bolo, aliás). Filme de Aborto me pareceu ser só um porre, mesmo eu sendo pró-escolha - porque, quando se faz filme, identificá-lo como legítimo e concordar com ele é o de menos. Daí a produtora, coroteirista e atriz Talita Araújo, na sua primeira fala do debate no dia seguinte, diz algo como: "Eu adoraria que nós discutíssemos aborto aqui e não o filme". Nada mais esquivo que isso durante um festival de cinema. Mas, enfim, há quem goste e defenda, e isso também interessa.

    No último dia teve Jovens infelizes ou um homem que grita não é um urso que dança, de Thiago B. Mendonça. Gosto de Piove, il film di Pio, curtinha singelo de Thiago. Neste longa, ele faz um liquidificador de emblemas e ícones (figuras, temas, símbolos, discursos) da esquerda numa narrativa de trás pra frente movida por um grupo artístico revolucionário autointitulado "Os Terroristas". Não se sabe até onde vai a ironia e o lamento (o Cabaré Vermelho prestes a fechar, por ex), a utopia (palavra-chave) de discursos e a realidade na porta de casa e no colo de cada um (militância X paternidade é um conflito colocado no filme em dado momento). Por certo tempo, isso funciona, dá um ritmo interessante conforme tenta-se decifrar esse grupo e esse filme que sabe olhar pra Carlos Reichenbach, escutar Tonacci e zombar de polícias e de um político cópia de Alckmin. Flerta com o cinema marginal mas também sofre de sua exaustão (as repetitivas cenas de orgias...), a ponto de perder o passo. Confesso achar estranho o final, em que um travelling na parede do bar Cabaré Vermelho parece igualar a trupe a fotografias/quadros de Che e imagens do comunismo; na escorregadia ironia, me parece um tanto narcisístico, sob o risco de sabotar seu êxtase final e praticamente incondicional, o que seria lamentável dado que não se trata de um filme qualquer. Esse desfecho a cantar "É preciso destruir pra começar de novo" é fácil de abraçar, e como o exercício crítico se dá em todo lugar, foi conversando e dançando com João Toledo e Laila Pas na sessão-dança Being Boring que esse tipo de questionamento surgiu. O debate do filme tomou caminhos de incontestável aprovação, o que é um tanto frustrante para o acúmulo de discurso político que o filme traz.

    Fechando a Aurora, o esperado Animal Político de Tião, que demorou cinco anos pra fazer, já que filmar uma vaca em locais públicos e dentro de shoppings não é exatamente um mel para a produção. É engraçado como isso que já chamam de "grife pernambucana" (evito o termo, acho meio bobo, mas entendo o uso) faz com que se crie uma expectativa em cima de um realizador com poucos curtas. Muro é um acontecimento, sem dúvida, e Sem Coração não é pouca coisa, mas você chega pra ver o primeiro longa do cara, pira um pouco com aquilo, identifica algo de "filme único" (como o Rubens Machado Jr. mesmo definiu o filme durante o debate) na cinematografia brasileira e ainda sente que falta alguma coisa. Animal Político é a prova de que espera-se demais do cinema pernambucano? Eu veria de novo sem pestanejar, aprecio a crítica mordaz (A Pequena Caucasiana, o filme grindhouse dentro do filme, é um achado) e a simplicidade da acidez, mesmo que um tanto óbvia, do casting bovino, mas talvez a expectativa estivesse um tanto acima. Abertura incrível, de todo modo. E, sim, gostei bem.

    ***

    Vi pouco da Mostra Transições. O baiano Tropykaos, de Daniel Lisboa, por exemplo, longa que me irritou durante quase todo o tempo em sua repetitividade, um cãozinho a girar em torno do próprio rabo. Começa curioso, tomando Salvador como uma cidade a ser atingida por um calor inigualável e partindo daí para o que seria uma crítica à baianidade clichês. Mas é tudo tão literal, tão insistente, de imagens a se desgastar minuto a minuto, que soa juvenil e sem muito o que dizer depois de 15 minutos. Saí da sessão e reli a crítica de Júlio só pra confirmar todas essas sensações.

    Porém, o também baiano A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas, foi ainda mais difícil, talvez o ponto mais baixo de todo o festival. Começa bem, imagens de arquivo do carnaval (baiano, imagino) e a voz de Dantas, bem pessoal, introduzindo sua relação não tão distante com a ditadura. Tem força, mas logo, em questão de pouquíssimos minutos, entra numa onda de encenar performaticamente torturas e "números de protesto" contra a ditadura, intercalando isso com depoimentos de uma certa elite sobrevivente (professores, artistas, jornalistas etc) e banhando seu documentário com uma estética algo publicitária capaz até mesmo de embelezar uma barata. É verniz demais pra falar de horror, chegando a ser abjeto. Pelo menos desde o Noite e Neblina (1955) do Resnais já se tem noção das complicações de "filmar" o horror de tal maneira, e saí da sessão de A Noite Escura da Alma com a impressão de terem passado esmalte no horror, por mais bem intencionado que o documentário seja.

    Também vi Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, novo longa do Petrus Cariry e que encerra sua "trilogia da morte", da qual gosto muito de O Grão e tenho meus problemas com o Mãe e Filha (mas pode ser porque não embarquei naquele papo de "o Sokurov brasileiro" que alguns tentaram vender). Clarisse... é potente e começa literalmente explosivo. É filme capetoso, como todos da trilogia de alguma forma são. Climão satânico maneiro, evidenciado pela chuva e ventania que encobriu o Cine-Tenda, o vento chegando a balançar a tela. Cariry definitivamente não economizando na tristeza marmorizada no rosto de Sabrina Greve e muito menos no sangues e nos urros de porco. Quero ver de novo.

    Depois falo de alguns curtas. E escrevo melhor na ] Janela [.