segunda-feira, 31 de março de 2014

RoboCop (2014)



O novo RoboCop e o Inmetro

Num território tão desvantajoso quanto o dos remakes de obras cults, vigiados por apreciadores dos originais a cada notícia e imagem que apareça na mídia, é preciso, em primeiro lugar, dar o devido crédito de termos aqui no mínimo uma refilmagem (ou atualização, me parece mais apropriado) diferente de sua fonte (quem quiser algo igual ao original, que reveja o original, não?) e aparentemente interessado em seus próprios objetivos, que não são poucos. Em certa medida, o RoboCop de José Padilha flerta mais abertamente com o sci-fi, agregando pequenas e curiosas discussões que, embora dignas de contos de Philip K. Dick, nunca são de fato aprofundadas, limitando-se a passar de raspão por elas.

Em suas ambições, esse novo filme amplifica seu universo e tenta fazer o mesmo em relação ao "mal necessário" que seria uma polícia robotizada num futuro próximo. Na melhor cena do filme, a câmera acompanha uma tentativa de fuga de Robocop logo após acordar num laboratório, passando por centenas de trabalhadores e revelando, enfim, que parte do história não ocorre nos Estados Unidos e que existe ali uma logística de produção nada menos que atual (o ambiente clean e branco parece sinalizar para a Apple, aliás).

Há também uma ânsia por percorrer vários canais de debate, às vezes tateando sem muita certeza do que dizer e onde chegar, feito a parábola dos cegos e o elefante. Sensacionalismo televisivo, corrupção policial, melodrama familiar, ética científica, rivalidade entre homem e máquina, vingança, tudo isso entra no roteiro, de alguma forma espelhando as conexões que o diretor brasileiro já propunha em seus dois Tropa de Elite. Aqui, no entanto, montagem e direção parecem suar para deixar os lados todos perfeitinhos, como se brigassem com um cubo mágico por duas horas.

Entretanto, por mais que sejam diferentes e tenham de ser diferentes, o princípio de ambos os filmes é a violência. É ela o elemento que dá liga, e é ela, também, o grande tema de Padilha desde o documentário Ônibus 174 (2002), até hoje seu melhor trabalho. No caso de RoboCop, de algumas maneiras a versão atual parece pedir por mais violência gráfica do que o original - e brilhante - dirigido por Paul Verhoeven em 1987. Mas não há uma gota de sangue. Não há nada para horrorizar o público e deixá-lo intrigado e incomodado com sensações mistas, porque uma violência G.I. Joe sempre será OK ao olho nu.

Temos aqui, então, um filme que se coloca diante de questões em torno da violência (urbana, mundial, simbólica, pessoal), mas se esconde dela. Cheia de receio em mostrar homens explodindo ou mesmo tiros em pessoas, a câmera ora filma de longe, ora aproveita a perspectiva do personagem cameraman para tremer e se virar pra um lado seguro, ou então uma fumaça de explosão oculta todo o campo de visão, ou simplesmente os inimigos caem como sacos de areia, secos e neutralizados.

A armadilha que vitimiza o policial e homem de família Alex Murphy (Joel Kinnaman, em atuação andróide antes e depois da armadura), posteriormente levando-o à sua única opção de vida, que seria aceitar sua transformação em um experimento criado por um empresário milionário oportunista (Michael Keaton) e desenvolvido por um cientista (Gary Oldman), tampouco escapa do acanhamento em relação a mostrar ou não mostrar uma violência mais explícita. Porque, afinal, a cena é premeditada, é anunciada antes de acontecer, deixando o espectador apenas no aguardo de sua confirmação, que já vira em cena anterior a preparação da tentativa de assassinato do personagem. Um pouco mais de cuidado e preocupação com a integridade do nosso olhar e teríamos cintos de segurança e airbags nas fileiras do cinema.

No delicioso carro desgovernado que é o RoboCop de 1987, obra que jamais seria realizado hoje, o Alex Murphy de Peter Weller se via num covil de criminosos insanos, cercado por uma série de possibilidades brutais que só se revelavam no exato momento em que eram executadas. Naquele filme, mas não apenas nele, Verhoeven era um mestre do incômodo e do estado de alerta, da tensão criada pela desconfiança de que qualquer coisa pode acontecer ali, naquele momento. Sem avisos, sem tempo de fechar os olhos ou virar o rosto.

Quase como um homem-bomba infiltrado em Hollywood, Verhoeven fazia de seu RoboCop um reflexo alucinado de uma sociedade norte-americana (Detroit, para ser mais específico) que se engasgava em altos índices de violência. O longa de 87 se permite embriagar-se dessa agressividade, fazendo-se irresistível mas também difícil de olhar.

A questão, logo, tampouco poderia ser mais atual, sobretudo no Brasil (o que sugere uma oportunidade desperdiçada por um cineasta brasileiro em sua produção de maior visibilidade): uma violência policial, patrocinada por empresários e apoiada por Estado e interesses políticos, seria mais "aceitável", não importando seu equivalente potencial de desgraça e feiura?

Na trama do novo filme, o rosto de um homem num robô é uma clara tentativa de humanização seguida de aprovação da opinião pública, uma nova investida estratégica de uma força policial que literalmente se desumanizou com o tempo. Em cena um tanto cronenberguiana, Murphy se descobre ainda Murphy, mas com o desafio de lidar com uma nova ideia de corpo e, não muito atrás, origem. O conceito de um robocop não completamente autômato surge da noção de que ele é uma cria consequencial de um sistema descontrolado e, portanto, parte desse sistema e, enfim, de sua violência. Porque é ela que guiará determinados tipos (ou níveis) de aceitação, para não dizer aprovação, desse espelho de um futuro proposto.

O problema é que, neste caso, se não há sangue, não há questionamento, e apenas o original de Verhoeven demonstra compreender este ponto. No que talvez seja medo de chocar o que tem tudo pra ser seu maior público (às vezes arriscando desviar o interesse para outras questões, mais próximas da ficção-científica, como já dito), o filme de Padilha evita escancarar a violência na tela e acaba por transformar seu Robocop em um herói fácil, algo que o longa de 87, com toda aquela demência visual e satírica, tão apreciada por Verhoeven, nunca deixava acontecer. Pelo contrário, na verdade: aquele RoboCop é de uma rara esquisitice, pois enquanto cabe a ele o papel de mocinho upgrade num universo onde há bandidos a serem combatidos, ao mesmo tempo o natural sentimento de prazer que o espectador teria em acompanhar os feitos desse herói produzido é intimidado pela possibilidade de uma mão e um braço explodirem ou um carro atropelar e estourar um homem derretido por líquidos tóxicos. No longa de Verhoeven existe o combate ao crime, existe a vingança, os vilões derrotados, mas antes disso, bem antes, a primeira coisa a ser lembrada são essas imagens grotescas e despudoradas.

Este Robocop geração 2014 nasce pronto para o boneco action figure, pois é fácil abraçar suas ações num filme tão tímido visualmente. Quando a população vibra com sua presença, não há ambiguidade. É mocinho inegável e aprovado pelo Inmetro, o que talvez explique um sujeito na minha sessão que se empolgava e batia palmas a cada guinada do Robocop a uma missão. Ele comprou o heroísmo adolescente, por mais que ao final o filme tente deixar mastigada sua ironia.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mud, Trapaça e O Lobo de Wall Street



Sobre meninos, trapaceiros e lobos

Às vezes convém falar de dois ou três filmes de uma só vez, pois de alguma forma eles se comunicam ou dividem o ar que respiram. No caso de Amor Bandido, Trapaça e O Lobo de Wall Street, são filmes que parecem pisar em terreno de bandidagens tipicamente norte-americanas, exercendo algum efeito de familiaridade, de já ter visto aquilo antes, de reconhecer essa cultura.

Amor Bandido

Amor Bandido ("Mud" no original, 2012), talvez o melhor de Jeff Nichols, que vem sendo observado mais de perto desde O Abrigo (2011), se comporta como um conto sulista dos EUA: em linhas gerais, dois garotos de Arkansas encontram um barco abandonado numa ilha e, mais importante, um sujeito que ali vive, chamado Mud (Matthew McConaughey), e que parece fugir de algo.

A estrutura não é novidade: envolto de certo mistério e carisma (o papel faz parte dessa fase absolutamente incrível de McConaughey), Mud está sempre no mato ou na prainha medíocre da tal ilha, com suas únicas vestimentas, que se resumem a botas, jeans e camisa branca; e uma pistola fincada nas costas, "para proteção".

O homem fala como um sabichão, papos que lhe dão um ar de misticismo. Aparece meio que do nada para os garotos, e Nichols filma essa sua introdução como se visualizasse nele um personagem dos contos de Flannery O'Connor, escritora que retratava um sul norte-americano muito específico, das profundezas, e o fazia brilhantemente. Na areia, os jovenzinhos notam pegadas estranhas, andam um pouco e, como se tivesse brotado da terra, Mud está ali, atrás deles, como se fosse onipresente.

Nichols não chega a ser pessimista (ou realista, como lembraria Cohle, o investigador de McConaughey na bela série True Detective) como algumas das mais famosas histórias de O'Connor, é verdade. O desfecho de seu filme beira o pieguismo, para não dizer covardia. Mas a composição do personagem exerce atração similar, assim como a dinâmica com os garotos. O resto, a trama da máfia, não tem tanto fôlego, ainda que, ironicamente, esteja lá justamente para movimentar a história para um rumo, uma solução, quando o que há de mais interessante é o fato deste ser, também, um conto sulista de amor, em que um garoto, alimentado pelo clássico desespero da infância que é a separação dos pais, se apega à ideia de amor mais próxima e mais isolada de sua realidade. Um bandido ilhado à procura de sua mulher idealizada é como um baú de tesouro para um menino despedaçado.

Trapaça

Não entendi o que David O. Russell (Três Reis, O Lado Bom da Vida) quis com este aqui. É uma homenagem a um tempo e a certo tipo de cinema, como sugerem as nostálgicas telas das produtoras antes de o filme começar? Seria uma tentativa de homenagear ou emular o cinema de Martin Scorsese, o que cairia num risco muito grande, pelo fato de, bem, Scorsese não apenas estar vivo e chutando muito bem, mas por também ter acabado de realizar um filme sobre trapaceiros, e um dos melhores de seus últimos anos? Talvez uma reflexão acerca do que é real e do que é mentira, a exemplo de um diálogo entre os personagens de Christian Bale e Bradley Cooper na cena do museu, mas que nunca parece ir muito adiante, subjugada pela própria trama em si?

Trapaça, que concorria a 10 Oscar (levou nada), lembra um jogo de cartas mal distribuídas, com várias possibilidades em mãos, todas elas destinadas ao seu próprio beco sem saída. A sensação inicial de homenagem é mecânica, relegada a figurinos e música; emular Scorsese seria se contentar a ser um "sub-", um maneirista a ser desmentido logo na sessão da sala ao lado; e, enfim, a discussão entre o que há de autêntico e falso sendo lembrada quando convém, às vezes de maneira muito óbvia ("Você tem cabelo liso, mas você o deixa encaracolado porque você precisa, todos nós precisamos", esse tipo de coisa).

O filme, claro, não é um completo desperdício. Nem chega a ser ruim, na verdade. Só me parece ser facilmente esquecível. Ainda assim, há cenas muito boas. Minha favorita é a primeira, com o trambiqueiro interpretado por Bale dedicando um bom tempo à arrumação de seu cabelo desastroso. A cena é só isso: Bale, trajes setentistas, personagem um tanto ridículo (estamos mais para uma comédia, afinal), ajeitando o cabelo em frente ao espelho, tentando acertar um penteado minimamente decente, com todo o cuidado e trabalho que isso exige. É simples, sem falas, e resume ali, em algo tão patético, a questão do fingimento, da enganação, do, enfim, hábito da trapaça, tão presente no filme e ao mesmo tempo tão engolido por uma história que talvez não precisasse de tantas voltas (por mais que a menção histórica a Meyer Lansky seja interessante, era realmente preciso Robert De Niro como um novo obstáculo, cansando ainda mais um filme já cansado nos seus 40 minutos finais?).

Russell é melhor quando se atém ao simples. No começo de O Vencedor (2010), colocava Bale, irmão do protagonista, para surgir pelo extracampo, seus braços magros desferindo socos no ar e revelando sua presença na cena. Uma cena que também parecia capaz de sintetizar quase todo o filme, ou o que tem de melhor, a relação entre os dois irmãos.

Em A Trapaça, o filme parece crescer somente longe da trama (o que daí já se tem uma diferença em relação a Scorsese, em que a trama geralmente está em perfeita harmonia com o que há de mais íntimo nos personagens), quando se percebe isolado: Amy Adams sem maquiagem depois de tantos minutos sendo filmada produzidíssima; a conversa ao telefone entre Adams e Cooper, ambos com bobes segurando os cabelos; são pequenos momentos que não se esforçam demais, e viram algo maior pelas mãos de um elenco muito bom, mais que pela direção de Russell, que parece pensar primeiro na trilha sonora, ou numa ideia de como um filme de trapaceiros deveria ser. Perde-se a conta de quantas vezes ele aproxima, em velocidade, a câmera dos atores olhando para frente, uma marca scorseseana que aqui parece um tique, de tão repetitivo.

Para um diretor que vinha se mostrando um autor, vir com O Lado Bom da Vida num ano e Trapaça no outro é bem decepcionante. Mas, vai entender, a crítica norte-americana gostou, e a Academia também.

O Lobo de Wall Street

Poxa, notaram que Martin Scorsese é exagerado depois de 40 anos? Porque é esta que tem sido a queixa mais comum em relação a seu novo filme, não? "Exagerado", "excessivo", como se o cinema (e sobretudo um cinema de autor, como o de Scorsese) tivesse algum compromisso com alguma ideia de realidade. O Lobo de Wall Street é histérico, e de uma histeria maravilhosa, sem dúvida, mas nada que seja surpreendente vindo do cineasta. Curiosamente, li por aí que, comparado ao livro de Jordan Belfort, Scorsese até pega leve, vejam só.

Desde Caminhos Perigosos (1973), quase todos os filmes de Scorsese se entregam ao excesso, ao estouro. Reclamaram disso em Vivendo no Limite (1998)? Não me recordo, mas sempre achei dos mais subestimados. E de O Rei da Comédia (1992)?

DiCaprio, aliás, talvez interprete aqui seu primeiro papel scorseseano com ecos de Robert De Niro. Não que o novo preferido do cineasta atue de modo semelhante, mas o papel de Belfort, o tal lobo, rico e drogado, cultiva cenas que espelham aquela grande fase entre os anos 1970 e 1990. No papel da segunda mulher, Margot Robbie tem muito de Sharon Stone em Cassino, e a briga entre o casal, culminando no bebê colocado em risco, reflete um desses momentos. Temos ali o Scorsese que todos aprendemos a admirar.

Mas temos também o Scorsese dessa "fase DiCaprio", se for permitido o atrevimento de dividir sua obra em função de sua parceria com os dois atores (observação e mea culpa: não é, haja visto os grandes filmes que Scorsese fez sem eles, como Alice Não Mora Mais Aqui, A Cor do Dinheiro e o já mencionado Vivendo no Limite, fora os documentários). Há em O Lobo de Wall Street esse descontrole, essa ansiedade e nervosismo que curiosamente lhe fazem tão bem, que criam cenas que jamais serão esquecidas quando olharmos a carreira de DiCaprio em retrospecto, quando, batamos na madeira, ele talvez envelhecer tão mal quanto De Niro, que hoje em dia pouco faz de relevante, mas tem seu legado. Deve ser o ponto alto deste ator que vem acertando mesmo quando os filmes não lhe são à altura, como o novo O Grande Gatsby (2013), de Baz Luhrmann.

Scorsese parece compreender que, no seu cinema, a única maneira de encarar o universo de Wall Street é abordá-lo como um espetáculo circense. O circo, admitido desde a cena inicial, em que um anão é arremessado ao alvo, abre espaço para um Scorsese que não se via tão enérgico desde Cassino (1995), com o qual parece fazer, juntamente com Os Bons Companheiros (1990), uma espécie de trilogia do dinheiro. O espetáculo não é novidade, o próprio cinema sendo um tanto responsável por isso (o Gordon Gekko de Michael Douglas, sempre o primeiro a ser lembrado).

Agora, pra fechar, lembremos por um instante de Trabalho Interno (2010), aquele documentário insuportável graças à sua inabilidade de desviar do economiquês. Um filme que, no fundo, não levava a nada, a não ser ao óbvio, que é circular em torno da alta criminalidade desse mercado. Na falta de evidências mais concretas, como se visse numa missão de incriminar aqueles empresários, o doc chegava mais próximo de acusá-los de usar drogas e sair com prostitutas, tentando capturá-los pelo viés da moralidade. Ou seja: um documentário que se propõe uma longa viagem, mas em dado momento prefere tomar um atalho.

O caminho de Scorsese em O Lobo de Wall Street é justamente o contrário: parte do que seriam detalhes imorais (sexo e drogas), adotando-os como brincadeiras, comédias de um homem prestes a desabar de tão alto, do cume da cultura do tudo-não-é-o-bastante.

Ao microfone, Belfort é um palestrante motivacional, o que ele acaba se tornando. O que há de hilariante é um truque, trapaça. Um personagem fadado à desgraça tanto quanto outros scorseseanos. É uma história bem triste, na verdade.