quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Grande Beleza


Roma, publicidade aberta

Uns tantos gostam, outros tantos não gostam. Com este não parece haver meio termo. Na verdade, reformulo: o time dos que são felizes com o filme parece ser maior.

Eu não gostei nada, confesso. Bom, pra não dizer que nada ali me agrada, simpatizo bastante com o Toni Servillo no papel do escritor-de-um-livro só Jep Gambardella. Mas paro por aí.

O que pega pra mim é Sorrentino ser tão clichê em suas escolhas nas 2h20 - que mais parecem 8h - que usa para refletir sobre o vazio da burguesia elitista da Itália contemporânea. Itália de hoje, sim, com seus Macs, iPhones e festas de toque eletrônico, mas que acaba dando aquela olhada sobre o ombro, seguida de piscadela, para A Doce Vida (1960), de Fellini, reflexo mais evidente neste filme que tenta muito, mas muito mesmo, honrar um "cinema italiano anterior".

O Marcello Rubini interpretado por Marcello Mastroianni tomaria uns drinks com Jep numa boa, aliás. Falariam de mulheres, literatura, italianices, ócio. Daria outro filme, provavelmente mais curto e melhor.

Enquanto Jep, já com mais de 60 anos, resiste em voltar a escrever, insistindo no bonvivantismo que fez de sua vida em Roma, participando de festas, visitando manifestações artísticas diversas (da mais atual e questionável performance moderna aos clássicos lapidados) e discutindo a vida com e dos amigos, Sorrentino filma suas idas e vindas sociais como se tivesse de cumprir algumas exigências para que seu filme venha a atingir o nível de "excentricidade" (felliniana? Quisera ele; porque um dos brilhos de Fellini era transformar o "excêntrico" em algo seu, portanto felliniano) esperado. Elementos como a editora anã e duas cenas envolvendo animais - uma girafa e um conjunto de flamingos - parecem surgir por obrigação. "Tá muito normal ainda, põe ele pra encarar uma girafa", talvez esteja anotado à caneta no roteiro original.

Esses animais, por sinal, trazem na garupa uma ou duas lições de moral que tratam de deixar a segunda metade desse longo filme ainda pior. O mágico que diz que, se soubesse fazer pessoas desaparecer, já não estaria mais entre nós, e, constrangimento dos constrangimentos, a santa desdentada explicando o porquê de comer apenas raízes e, em seguida, soprar as aves para longe. E a câmera do Sorrentino ali, viciada em sua elasticidade, repetitiva, quase um estilingue ao aproximar-se ou distanciar-se de pessoas ou objetos.

Também damos de cara com o imenso desejo de fazer de A Grande Beleza uma crônica de Roma e de tudo o que uma capital dessas poderia oferecer (oferece Fanny Ardant, por exemplo, que, embora francesa, já teve seus affairs com o cinema italiano, sobretudo com Ettore Scola). Nada contra filmar uma cidade como Roma. Até um pouco inspirado Woody Allen conseguiu. Impressão aqui, no entanto, é que a grande Roma, por mais bela e histórica que seja, é usada por Sorrentino como estratégia de compensação. "A SACADA DE SEU PRÉDIO É DE FRENTE PARA O COLISEU", o movimento de câmera parece gritar, como se precisasse nos esfregar na cara que, embora tenha vista VIP para uma das maravilhas do mundo, Jep não está imune à decadência (humana, intelectual, corporal, enfim...). Não por acaso, depois do "the end" só dá imagens pelo rio Tevere, muito mais vivas que o desfecho recado-aos-mais-jovens, versinho juvenil que se esforça para, no último gole, sublinhar A Grande Beleza como um possível filme de amor e arrependimento.

O filme ainda me parece extremamente mal montado. Um excesso de cortes, às vezes beirando a montagem desses blockbusters de ação. E a luz, tentando encontrar uma perfeição absoluta em tudo, me fez pensar em algo encomendado por agência de publicidade, uma Roma de calendário que se manifesta na tela.

Se jogado no WinRAR, talvez A Grande Beleza reaparecesse como uma versão estendida de comercial da Campari. Porque, voltando a Fellini, que tanto respira na nuca do longa de Sorrentino, por sua vez um Fellini edição Martin Claret, acredito que seja como o José Miguel Wisnik conclui na sua coluna do O Globo: "Fellini elevou o kitsch sentimental ao sublime. A Grande Beleza reduz o sublime ao kitsch."

sábado, 12 de abril de 2014

Eles Voltam


Era uma vez eu, Cris

Pronto desde 2012, quando venceu o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (ao lado de Era uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes), Eles Voltam, mais um da grande safra pernambucana, finalmente ganhou tem rodado pelo país. É distribuído pela Vitrine Filmes, responsável por circular alguns dos títulos nacionais mais importantes dos últimos dois anos, no mínimo, além de estrangeiros que todo mundo deveria ver, como o argentino Las Acacias e o uruguaio La Vida Útil.

Em breve comentário sobre Eles Voltam, o Inácio Araújo comentou em seu blog na Folha que havia uns tantos de Kiarostami, Hitchcock, Bresson, Rossellini e, puxando o Alcino Leite pra conversa, também Antonioni no filme de Marcelo Lordello, todos nomes que tendo a concordar, com maior ou menor intensidade. Pensando bem, o Hitchcock eu não chego a ver ali, mas é um trabalho capaz de dialogar com toda essa gente grande, sem dúvida.

Mas faz mais de uma semana desde que assisti a Eles Voltam no Cine Cultura e a lembrança de Truffaut ofusca todos esses. A menina sozinha, depois encontrada e desencontrada; as companhias inesperadas; o sono solitário e independente, quase atrevido; o flagrante na piscina e, pouco depois, já na água, as curtas conversas aparentemente desimportantes sobre a vida; a visita à praia, entre família e uma recém conhecida; os estranhos retornos, reencontros, a menina já um tanto diferente, e incapaz de não contestar frente a frente outra geração (porque, tão jovem, sente que a breve experiência vale tudo, e talvez não esteja de todo errada), à mesa do café da manhã, farta e talvez excessivamente acolhedora.

O que se tem aqui, a princípio, é um filme de abandono. Um casal de irmãos largado pelos pais à beira da estrada. Uma lição aplicada por conta de uma briga, supõe-se. Lá são deixados, e lá devem se virar. Ele, mandão e pouco paciente, mais velho, se vira primeiro. Ela, de nome Cris (Maria Luiza Tavares), então sozinha, toma seu rumo. Encontra pessoas, faz amizades tão fáceis de evaporar, conhece gente e lugares que provavelmente não conheceria não fosse o acaso do abandono inicial. Porque, de certa forma, Eles Voltam é também sobre o protecionismo sufocante, as preocupações de estar "solto por aí" em "lugares que nem se imagina", e não num carro, num condomínio ou atrás do portão gradeado duma garagem.

Acho que a primeira meia-hora, ou quase isso, é toda na estrada, quase sem falas. Lordello toca esse começo tão bem, dando tempo às cenas, ao rosto pensativo e intrigante - ela nunca se desespera - de Maria Luiza, que embora me lembre Truffaut em sua trajetória, talvez tenha olhos de Godard (do nada, e no nada, ela resolve fazer uma panorâmica da estrada à sua frente), que por um instante não nos perguntamos se tudo se passaria ali, ao lado da rodovia. O filme, que aos poucos se torna menos sutil, precisa desses bons minutos, e é preciso coragem para mantê-los, fazer cinema daquilo, do "nada" aparente, e, enfim, soltá-lo no mundo.

Essa não discrição de Lordello, por sinal, encontra lugar no fato de termos em Eles Voltam a perspectiva de uma garota de doze - ou onze? - anos. Não há nenhum receio na distinção de classes que o cineasta quer apresentar, entre aqueles que Cris esbarra no caminho e a preocupadíssima recepção dos entes queridos. Ironicamente, o único perigo real presente no longa não se destina a Cris ou ao seu irmão; sequer aparece na tela, ainda que seja revelado no momento certo.

O rápido confronto com o avô, por sua vez, deixa claro o poder da experiência passada pela garota. No entanto, mais importante que o enfrentamento em si, direto e simples, talvez seja a vontade de enfrentar, e, no caso de Lordello, o que me parece ser uma vontade de fazer com que Cris passe a existir. Pois o primeiro plano de Eles Voltam, hoje penso, não poderia ser diferente: alto, muito aberto, as estrada e os carros distantes, e aqueles dois mal são pessoas, e sim apenas dois pontos arremessados num filme. Depois são filmados cada vez mais próximos, os rostos muito fortes, e Peu (Georgio Kokkosi), o irmão, também deixa a impressão de que daria outro bom filme, mas ele segue pro lado que a câmera prefere não ir. A riqueza de Eles Voltam parece estar nesse processo de transformação da menina Cris (não de uma garota qualquer; dela, aquela experiência é dela), captado por Lordello com tamanha naturalidade.

Truffaut foi o grande cineasta das faces infantis. Filmava como poucos a primeira juventude, curiosa e, ironicamente, em certo conflito com a educação e o aprendizado. O melhor elogio que tenho a Lordello é que seu Eles Voltam leva a uma vontade de rever, mais uma vez, Os Incompreendidos (1959). E, assim como Truffaut e Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, seria um prazer visitar Lordello e Maria Luíza Tavares/Cris mais três ou quatro vezes em filmes futuros.