terça-feira, 12 de novembro de 2013

Festival do Rio 2013 - Parte 2: orcas, punk, abandono e sonolências



Devido aos compromissos com a Goiânia Mostra Curtas, tive de me virar com o que seria possível assistir apenas na primeira metade do Festival. Alguns filmes, como Sozinha, documentário do chinês Wang Bing, me lembraram a fala de Eduardo Valente no doc Crítico, de Kleber Mendonça Filho, de que, na internet e nos blogs, você pode simplesmente não escrever sobre o filme, pois às vezes você não tem nada pra falar sobre aquele filme. Sobre Sozinha, eu não tenho, mas dá pra fazer um apanhado em duas ou três partes entre os quase trinta vistos.

Meu festival também ficou mais curto por conta das mudanças na programação do Cine Odeon em razão das manifestações dos professores na região da Cinelândia. Em meio a protestos legítimos, porém um tanto esquizofrênicos (manifestante a favor da educação gritando que deveriam era bombardear o Odeon, ou seja, um espaço cultural, é algo que me parece contraditório e pouco lúcido, mas eram casos isolados), sessões de The Canyons, novo do Paul Schrader, e boa parte da Première Brasil ficaram sem suas exibições nesta que é uma das mais belas salas de cinema do país. Nessa leva, perdi o elogiado Tatuagem, de Hilton Lacerda.

Enfim, um pouco do que deu pra ver.

Blackfish - Fúria Animal (EUA, 2013), de Gabriela Cowperthwaite

Uma dessas sessões em que você cai meio de pára-quedas, pra preencher tempo, torcendo para que seja uma descoberta ou ao menos te mantenha acordado no ritmo de cinco a seis longas por dia.

A escolha por Blackfish também se deve ao fascínio em torno das baleias orcas, criatura que, de tão espetacular em sua beleza, é levada a liderar o grotesco espetáculo de mercado de SeaWorlds e afins.

O documentário parte da premissa de investigar a trajetória de Tilikum, orca macho responsável por matar três pessoas, incluindo uma experiente treinadora do SeaWorld, o que reforçaria o mito de "baleia assassina". O contorno geral, porém, faz de Blackfish um interessante filme de bullying animal, expondo métodos torturantes de treinamento e condicionamento comportamental de parques aquáticos interessados em vender pelúcias de orcas e golfinhos.

Cowperthwaite cumpre o bê-a-bá de um doc investigativo, procurando depoimentos de ambos os lados, embora seu caráter denunciatório seja evidente e, no caso, necessário, situando-nos numa espécie de irmão de The Cove, documentário vencedor do Oscar 2010 e um grande filme. Em dado momento, uma montagem paralela coloca as falas de um pesquisador de baleias orcas negando todas as mentiras contadas (num mix de ignorância e respostas padrão de treinamento) por guias SeaWorlds ao público visitante.

Em parte, Blackfish também se aproxima de filme de terror. Alguns depoimentos são centrados em ataques de orcas a treinadores. Há imagens medonhas, uma tensão elevada pela incerteza de que aqueles acidentes seriam falhas de treino ou agressões conscientes (hipótese mais defendida), resultadas de todo um histórico de maus tratos em cativeiro. Uma baleia enorme saltando suas toneladas em cima de um homem ou puxando pessoas para o fundo do tanque não é Free Willy, aquele filme que, embora pregasse a liberdade dramalhona, talvez tenha levado toda uma geração a esses parques.


Nós Somos os Melhores! (Vi är bäst!, Suécia, 2013), de Lukas Moodysson

O novo de Lukas Moodysson é praticamente um feel good movie ao estilo de Ken Loach, e, por isso, muito bom.

Nós Somos os Melhores! se passa em 1982 e gira em torno de três garotas na casa dos 12 ou 13 anos. Duas delas, amigas, são zoadas por seu estilo de cabelo curto, meninas não muito interessadas em seguirem o protocolo do que seria "se comportar como mulher", embora jamais deixem de ser femininas em seu sentido mais clássico (são delicadas, falam de garotos etc).

A válvula de escape para o grito de adolescência da dupla será a oportunidade de ensaiar instrumentos musicais e tentar, enfim, montar uma banda de punk rock. A cena é quase absurda e muito engraçada, envolvendo esperteza vingativa contra os grandes rockeiros do colégio e uma falha burocrática na reserva da sala de música. Sem nunca terem pego em baterias, baixos ou guitarras, resta o barulho e a atitude de tentar experimentar alguma atitude punk, um jogo de camadas que é justamente a força do filme.

Começo dos anos 80, a energia dos Sex Pistols ainda batendo na porta, toda uma garotada querendo fazer parte daquilo. E Moodysson nunca ilude suas meninas ou a nós. Elas são ruins ou têm muito a treinar para chegar ao nível da nova amiga, uma cristã exímia no violão clássico que topa entrar de cabeça (quase que literalmente) na banda. A elaboração do plano para convencê-la a se juntar às duas é dos pontos mais inspirados do filme, o tipo de bom humor inocente envolvendo religião.

Essa inocência, por sinal, faz parte do brilho de Nós Somos os Melhores!, e dela talvez venha a exclamação do título. Há um encanto nesse entusiasmo, nessa empolgação que beira o infantil, e que às vezes deixa o longa parecendo apenas uma brincadeira. Mas na verdade é fantasia, no melhor sentido. Fantasia de infância, de moleque, movida por vontade, e, no caso, uma vontade que leva a um filme autenticamente punk, cuja semente estaria menos na música e mais no desejo de se entupir de porcaria.


Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho (Episoda u zivotu beraca zeljeza, Bósnia-Herzegovina, 2013), de Danis Tanovic

Tanovic fez seu nome logo no primeiro longa, Terra de Ninguém (2001), vencedor de roteiro em Cannes e filme estrangeiro no Oscar, o que, na minha idade daquela época, me deixou um tanto decepcionado quando vi. Não sei como seria revê-lo hoje (revi partes na TV, mas nunca achei grande coisa), mas de lá pra cá, os outros trabalhos do diretor nunca me chamaram muita atenção.

Aqui, no entanto, Tanovic solta um belo filme, a ponto de lembrar o que o atual cinema romeno tem oferecido de melhor para o mundo (vide Além das Montanhas, de Cristian Mungiu). A história é das mais simples: esposa de um catador de ferro-velho precisa passar por cirurgia de emergência, mas a família, ciganos residentes da periferia da Bósnia e Herzegovina, não possui dinheiro e tampouco seguro para que a operação seja realizada.

Por trás dessa simplicidade há uma jornada de esforço e exaustiva procura por soluções, agonia que Tanovic captura como um relógio em tic-tac. O tempo não espera, os médicos e hospitais dizem seus "não, não é possível", e a sensação de que uma pessoa pode morrer simplesmente assim, mesmo na porta de um hospital, é tão gélida quanto a temperatura daquele país.

Ainda assim, num cenário em que tudo pode e parece dar errado, em que o sentimento de humilhação chega a fazer com que Senada, a mulher, esposa e mãe de dois filhos, se recuse a procurar outros hospitais e ajudas alternativas (seu rosto, de uma tristeza ímpar, é inesquecível), Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho pode surpreender, sem, porém, abandonar o gosto amargo.

Em meio ao universo de recusas burocráticas, cabem as vias desesperadas do que seria "ilegal", mas nada condenável. Na câmera na mão documental de Tanovic fica o registro do abandono humano, impulsionado pelo fato de a família reviver na tela um episódio de sua própria vida.

A lenha de fogueira que abre e encerra o filme parece vir de uma necessidade simbólica de aquecer a frieza dessa existência. No final, a câmera fica de fora da casa, talvez por sensibilidade e respeito. Muito bonito.


Sonar (Echolot, Alemanha, 2013), de Athanasios Karanikolas

Completa perda de tempo. Este Sonar tem 77 minutos, mas morre em 20. Sobre amigos que se reúnem numa casa de campo para uma espécie de cerimônia de funeral e memória de um amigo suicida, é como se pegasse a dinâmica de um Para o Resto de Nossas Vidas (1992), lindo filme de Kenneth Branagh, e injetasse venenos de tédio.

Num pretenso "filme de arte", Karanikolas junta cenas ruins de jovens dormindo ou se pegando e... é basicamente isso. A deixa para abandonar a sessão é um plano com a câmera girando em torno de seu próprio eixo enquanto acompanha um rapaz tocando irritantemente um tipo de flauta.


Michael Kohlhaas (França/Alemanha, 2013), de Arnaud des Pallières

O elenco é bom: Mads Mikkelsen, Bruno Ganz, Denis Lavant (o grande ator do cineasta Leos Carax, razão de ser de seu último filme, Holy Motors), Sergi López... todos atores sólidos do cinema europeu moderno e contemporâneo.

No resumo do catálogo do Festival, a informação de que o diretor fora influenciado por três grandes obras na realização deste longa: Aguirre - A Cólera dos Deuses, de Werner Herzog; Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa; e Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky.

Terminada a sessão, fica o ponto de interrogação na cabeça e o constrangimento por tamanha pretensão, uma vez que sequer passa perto de qualquer um dos feitos convocados. Michael Kohlhaas, o filme, está mais para uma narrativa clássica sonolenta do que alegoria da humanidade ou uma obra a respeito dos princípios de honra, o que Pallières até tenta com algum esforço, sobretudo porque tem Mikkelsen em papel que já interpretou inúmeras vezes, a começar pelo recentíssimo e bem melhor O Amante da Rainha (2012), que cumpria seus objetivos se assumindo como melodrama e sem se julgar tão a sério.