quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Som ao Redor



Crônica de um Brasil de ontem e hoje

Tarefa um tanto ingrata a de falar sobre O Som ao Redor após tantos já terem falado e com tamanha presença do filme no boca a boca da internet. O Facebook da produção, por exemplo, é exemplar em fazer e manter o seu buzz), assim como o próprio perfil do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. Além de cineasta com farta e premiada carreira em curtas, Kleber foi crítico de cinema por mais de dez anos, tendo cobrido diversos festivais internacionais, sobretudo Cannes, o que lhe rendeu seu primeiro longa, o documentário Crítico (2008), em que propõe uma série de reflexões em torno da interessante relação entre dois universos tão próximos e, não raramente, tão díspares: o dos cineastas e o da crítica de cinema.

Tendo se despedido da crítica (com raras exceções) para se dedicar às filmagens de seu primeiro longa ficção, Kleber é todo cineasta em O Som ao Redor. Desde o Festival de Rotterdam do ano passado, o longa acumula prêmios em mostras e festivais, além de elogios da crítica internacional. Chegou a figurar entre os melhores do ano pelo New York Times. Kleber pegou muito avião, sofreu muito jet lag.

No Brasil, foi lançado em Gramado e exibido em mostras e festivais nacionais. Estreou oficialmente no país este ano, em janeiro, circulando pelo enorme Brasil com modestas nove cópias 35mm e algumas projeções digitais, fazendo filas em cada uma das exibições. É distribuído pela Vitrine Filmes, pequena distribuidora que, com muito esmero e dedicação, tem feito um trabalho notável pelo cinema brasileiro. Será dela a distribuição de Doméstica, novo documentário do também pernambucano Gabriel Mascaro (ler crítica aqui).

Tive a oportunidade de assistir a O Som ao Redor numa de suas primeiras exibições em território brasileiro, no Festival de Brasília, onde se viu ali um filme tão inspirado e grande que a tela preparada no Teatro Nacional ficou pequena para ele - literalmente, pois o filme é filmado em scope, a imagem vazando dos lados naquela ocasião. Cerca de um mês depois, pude rever no Cinesesc de São Paulo, durante a Mostra, num digital perfeito, imagem enorme, e o som, tão importante e onipresente no filme, cristalino.

Para quem acompanhou a carreira de Kleber como crítico e curtametragista, ele encontra no diâmetro de um longa o espaço para sua visão de mundo, reforçando o seu apreço por um cinema autoral. É muito interessante observar a construção desse olhar nos curta-metragens, vistos agora como uma bela oficina para O Som ao Redor.

Com maior ou menor sutileza, elementos de cada um deles, e de seu autor, são elaborados no longa: a sensação de paranoia e aprisionamento (Enjaulado, 1997); o flerte com o fantástico (A Menina do Algodão, 2002; Vinil Verde, 2004), uma fonte de inspiração ainda incomum no Brasil e que aqui deve muito a nomes como John Carpenter; a experiência estrangeira e o distanciamento geográfico de relações amorosas (Noite de Sexta, Manhã de Sábado, 2006); a intimidade da classe média, seu cotidiano, seus comportamentos observados (Eletrodoméstica, 2005, que empresta sua cena final, agora num contexto maior); o lamento pelo fim de cinemas antigos, a nostalgia do que é projetar cinema em salas de rua, para tantos (Homem de Projeção, 1992); e, enfim, sua conflituosa relação com Recife, onde nasceu e vive (Recife Frio, 2009).

Talvez Kleber tenha feito, de fato, um filme inicialmente muito pessoal. É filmado em Setúbal, seu bairro. Mas isso é algo que, sabemos, foge ao controle. Torna-se irrelevante as maiores ou menores ambições de um longa já muito rodado em seu primeiro ano de vida, sugerindo ainda muito sangue pra rolar, muito a ser comentado e comparado. Em matéria recente na Folha, chegaram a trazer Glauber Rocha e Cinema Novo ao debate. Tudo bem. Só que, mais uma vez, tendo a concordar com o Inácio Araújo: pra que gritar o Glauber e o Cinema Novo em tudo que se destaca à margem do comercial no cinema brasileiro, assim, tão forçosamente? Se até a noção de Retomada já foi superada (ou não?), talvez seja a hora de fazer o mesmo se desprender (veja bem: não falo em ignorar, jamais) desse fantasma do Cinema Novo. Particularmente, não vejo nada de Glauber aqui. A bem da verdade, enxergo muito antes Chabrol, com sua verve criminal que se revela por trás das cortinas nos fins dos filmes e, em parte, também no estilo de filmar (nouvelle vague em geral), no seu tato para a crônica burguesa, do que qualquer coisa do Glauber.

Nesse tom de crônica, aliás, Kleber versa com perfeição. Há uma série de personagens no bairro de Setúbal, coleção de pequenas tramas que se amarram, um multiplot bem seu (um pouco como Robert Altman, ok, mas talvez isso também seja um pensamento meio forçado). Alguns problemas e incômodos brotam em seus núcleos: o irritante latido do cachorro de um vizinho; o som do vendedor de CDs piratas; o roubo do som de um carro, enfim... acontecimentos que logo evidenciam uma realidade repleta de som e ruído, de grades e muros, de prédios e vistas, de ruas e coberturas, de altos e baixos e, importantíssimo, de demarcações de espaços e lugares. O filme se fecha brilhantemente nesse aspecto.

Imerso em sonoridade, temos aqui uma obra quase musical. O cuidado com o som impressiona, todo calculado em sua enervante presença. Kleber adota uma espécie de "não atuação" com os atores, um distanciamento de maiores dramatizações e, nos piores casos do nosso cinema, teatralizações. O elenco fala baixo, em tom natural, uma calma que transparece na mise-en-scène e permite que a atmosfera do filme se transforme em algo sólido e robusto, os momentos mais fantásticos e fantasmagóricos (a cena da cachoeira, por ex.) fortalecidos por esse clima onipresente. Aqui, o som ao redor importa tão ou mais que o som das pessoas, esmagadas por ruídos e medos latentes, enjauladas por portões e barras de ferro domésticas, oprimidas por uma arrogante arquitetura metropolitana (o cinema pernambucano vem se mostrando realmente mordido com isso, vide Um Lugar ao Sol, de Mascaro, e Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão).

Kleber é um raro caso de cineasta brasileiro que vê no som um elemento tão importante para o cinema quanto a imagem. Numa cena incrível, o som vira a matéria-prima de um pesadelo urbano: o receio do invasor, um tipo de personagem "oculto" que ganha o corpo de um garoto negro, visto com suspeita por seguranças independentes e com estranheza pela própria câmera, no topo de árvores ou dentro das casas. Partindo de farelos, e com bastante discrição, O Som ao Redor cresce dentro de si, desferindo olhares para um passado ainda tão presente no Brasil. Há ecos de escravidão (esse garoto mal tem rosto, é uma presença, e, numa cena específica, praticamente um espírito) e, sobretudo, de relações e disputas de poder. Não por acaso, a introdução do filme acena para Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho.

 Essas relações de poder não fogem nem mesmo do que seria o mais próximo de um protagonista: João (Gustavo Jahn), rapaz que passou sete anos na Alemanha e trabalha no Recife como vendedor de imóveis. No ritmo da trama, descobrimos ser sobrinho de um senhor de engenho, tanto do campo como da cidade, senhor respeitado no bairro, o Seu Francisco (W.J. Solha). Sensato e aparentemente consciente de seu lugar privilegiado na sociedade, João seria um pouco como a voz sóbria do longa. Mas João tem empregados, e, por mais gentil que seja com eles, sabe, mais uma vez, de seu lugar nessa relação. Em algumas cenas, O Som ao Redor se comporta como primo distante do documentário Doméstica, sendo capaz de comentar sobre o espectador que o assiste.

Na cena em que João encontra o filho de uma empregada (e também seu empregado? Não lembro ao certo) cochilando em seu sofá, como o público reage ao "flagra"? E na reunião de condomínio, cenário tipicamente brasileiro, movida com humor impecável e uma afiadíssima piada com a VEJA, em que os leitores classe-média-sofre da revista parecem ter ganhado seu retrato oficial? Muito bom, embora já se perceba uma tendência a encarar o filme como um discurso "de esquerda", no sentido de comprar/vender uma política, quando um de seus brilhos é justamente tentar se localizar em solo bem mais complexo que bipartidarismo. Está além, muito além.

Fora o scope, executando o longa numa proporção larga, o estilo de Kleber guia todo o nosso estranhamento. As manifestações pontuais de um "TUM!" sonoro, a precisão de um ou outro zoom, a atenção a detalhes do bairro... tudo isso sugere que algo a mais acontece. Que a sensação de insegurança é um estágio da violência, que existe um outro filme por trás disso tudo, de uma habilidade invejável ao lapidar noções de causa e consequência, e de como isso, na história de um país, nos coloca em nossos "devidos" lugares.

Que filme.

Colegas


Tudo bem, eles tem Down

Assisti a Colegas durante a Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, há pouco mais de duas semanas. O vencedor do Kikito de Ouro do Festival de Gramado deste ano teve uma sessão especial com muitos convidados e as presenças do diretor Marcelo Galvão, do produtor e de parte do elenco, incluindo Juliana Didone. As maiores estrelas, porém, foram Rita Pook e Ariel Goldenberg, portadores de Síndrome de Down e casal protagonista do longa.

Essas exibições são sempre antecipadas por cerimônia e apresentações. Ainda que não tenha nem dois minutos de cena, Didone se referiu à sua personagem, uma repórter, como "meio ambígua"; Goldenberg pediu a todos que gritassem "Vem, Sean Penn!" em auxílio à sua campanha para trazer o ator hollywoodiano, de quem é fã, à estreia do filme; Nill Marcondes, ator nascido em Goiânia, fez declaração das mais emocionadas, a sala do Lumière Bougainville cheia de familiares, um momento bonito. Existe essa boa vontade do e com o filme que é sentida desde Gramado.

O diretor Galvão também falou. Disse ser um filme igual a qualquer outro e que apenas por acaso é protagonizado por portadores de Síndrome de Down, pois o longa supostamente não os veria como deficientes. Muito simpático, deu a entender que, para ele, este seria um dos grandes trunfos. Legal, a intenção.

Sessão terminada, saio atropelado por dúvidas. Estaria ali um filme tão desonesto, de modo que sua razão de ser reside na exploração da relação dos espectadores com a Síndrome de Down? Penso até que Colegas deva ser visto para levantar a bola e qualquer um se arrisque a cortar. Não deve ser difícil, pois há interesse pela produção, que tem lá sua força popular, sobretudo no carisma de Ariel e Rita, que, ao lado de Breno Viola, interpretam um trio de Downs fugitivos do instituto em que vivem.

Com uma paixão pelo cinema e pela videoteca do lugar, são inspirados por Thelma & Louise (1991), o filme de Ridley Scott em que Geena Davis e Susan Sarandon fogem de carro pela e para a vida. O personagem de Ariel se chama Stalone e conhece falas clássicas de seus títulos preferidos, entre eles Cidade de Deus.

Na maior parte do tempo, Galvão dirige essa história com a leveza de um parquinho. Seria uma "comédia emocional", muito embora existam momentos mais pesados que, de tão contrastantes e bruscos, surgem destrambelhados. Duas cenas alguns níveis acima na violência me pareceram muito mal executadas e montadas, extremamente desintegradas do todo. Ok, acontece.

O maior incômodo, contudo, talvez seja de ordem moral, principalmente se considerarmos a apresentação de Galvão antes de a projeção exibir o que acredito ser uma série de contradições em relação ao seu depoimento.

Após a fuga, o trio de Colegas se dedica a aventuras que envolvem roubos e assaltos, para não dizer ameaças. De lugar a lugar, munidos de armas e sonhos, chegam a construir certa carreira criminosa.

Numa dessas cenas, o papel do goianiense Marcondes se revela um atendente de lanchonete extremamente caricato em sua sexualidade, deixando aquela sensação de que é colocado na tela apenas com o intuito de fazer do outro uma piada. "Riam disso, de como ele é", assim sua primeira aparição tem logo a nos dizer.

Colegas passa a impressão de mirar uma brincadeira com filmes de assalto-e-fuga (na abertura, o trio usa máscaras) e acerta não sei exatamente onde. Temos aqui crimes contra lojas de conveniência, lanchonetes de estrada e até mesmo artistas de rua, situações vistas com alegria e diversão pelo filme, feitas para rir. Enquanto se metem em aventuras e "altas confusões", o diretor do Instituto, interpretado por Lima Duarte, acompanha pela TV e vibra ao lado dos outros residentes, torcendo pelos amigos.

As cenas um tanto agressivas, problemáticas por si só, não hesitam em mostrar sangue, mas não tardam em retornar a chavinha de energia para o cômico. A dupla de policiais é um clichê, dois parvos escritos para serem passados pra trás, o valor de seus questionamentos sendo, portanto, reduzido a quase nada. Por mais reprovável que isto ou aquilo possa ser, o tom geral é de que "eles tem Down, então tá tudo bem." Não teríamos, deste modo, uma ratoeira jogada ao espectador?

Tratada como um escudo mágico, a Síndrome de Down parece ser, por fim, usada para imunizar tudo o que é visto no filme, que tem de encarar aos tropeços essa sua escorregadia ideia de inocência. Complicado.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A Hora Mais Escura




Quando chega a escuridão

Kathryn Bigelow é diretora de interesse. É raçuda, muscular, com uma câmera enérgica de verdade. Em Caçadores de Emoção - é, aquele mesmo, com Keanu Reeves e Patrick Swayze -, ela botava a câmera pra correr, pular muro e se esgueirar entre casas e quintais durante uma perseguição sensacional.

Seus filmes são sólidos, e, agora, com A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty), ela faz uma dobradinha com seu anterior, Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008), um vencedor de Oscar muito bom de ver premiado. Primeiro porque venderam a briga como um embate entre ex-esposa e ex-marido (Avatar, de James Cameron, com quem fora casada, era a produção mais indicada naquele ano), e, sobretudo, também porque era um filme imerso neste universo particular e, de alguma forma, cinematograficamente fascinante, que é o universo da guerra. Tinha ali um personagem muito forte, uma ambiguidade sobre o vício e as funções de quem age no meio da guerra. Obra rica, sem patriotadas, apenas um olhar muito interessado.

A Hora Mais Escura também é assim, só que em torno da caçada a Osama Bin Laden. No lugar do vício, algo semelhante: a obsessão. Maya (Jessica Chastain, atriz que está em todas nos últimos dois anos, estrelato veloz; ela é muito boa) é a agente da CIA responsável por investigar a localização de Bin Laden. Faz isso por mais de uma década, íntima de relatórios, imagens de satélite e de câmeras de segurança. Imagens de registro que, quando exibidas em salões da CIA, em telas grandes, maiores que a agente, lembram um mórbido cineminha particular.

Mais uma vez, Bigelow faz antes um filme sobre alguém do que sobre qualquer outra coisa. Pode-se dizer que Maya até seria uma personagem de James Cameron, mas não vejo isso muito bem. Ela é muito mais feminina, certamente obstinada, mas não durona-quase-macho (Sarah Connor, Ripley...). Transparece fragilidade. Uma figura muito humana, em circunstâncias desumanas, como cenas de tortura, momentos que acumulam sua leva de críticos, como se o filme validasse tais tratamentos. Bobagem. No máximo, faz um ótimo comentário irônico a respeito, com direito a depoimento do presidente Obama na TV.

Me parece um cinema pensado para a personagem, sua real preocupação: o horror em seu rosto, a necessidade de colocar uma máscara para ser capaz de bancar sua obsessão e aguentar aquilo tudo. No decorrer dos anos, ela até aparenta se acostumar. Mas o plano final desengana.

Na captura de Bin Laden, Bigelow, com muito talento e ritmo, busca um tom de realidade extrema: breu total, visões noturnas granuladas e esverdeadas, imagens de celular, silêncios, tiros secos, um distanciamento de clichês hollywoodianos. Quando Chega a Escuridão (Near Dark, 1987), também dirigido por Bigelow, poderia emprestar seu título a este seu último filme.

Sequer há um close em Bin Laden. O filme se recusa a vacilar nesses aspectos. Não americaniza a coisa toda, ainda que possa dizer algo a respeito do povo norte-americano. Ou não? Um anticlímax, para Bin Laden, que, no final das contas, acaba sendo só mais um corpo? Talvez seja a maneira de Bigelow resumir guerras: graúdos ou não, são apenas corpos. O verdadeiro "clímax" é uma lágrima completamente insegura e desoladora.

A Hora Mais Escura tem um irmão gêmeo: O Homem Mais Procurado do Mundo, de John Stockwell, que sabe-se lá quem vai assistir.

Lincoln




O homem Lincoln

Gosto do Spielberg lúcido. Lúcido, não necessariamente sério. Amistad era sério e trôpego. A Cor Púrpura era sério, porém alucinado com o dramalhão (tem coisas constrangedoras ali). Lincoln é bastante lúcido. Talvez porque Spielberg nunca estivesse tão próximo de John Ford, que tem o seu próprio filme sobre o presidente, A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1939).

Um dos emblemas do cinema norte-americano, da cultura de imagem dos Estados Unidos, Ford filmou parte da história do país, filmou westerns, fez o rosto de John Wayne. Spielberg às vezes tem um pouco dessa pegada, do ser essencialmente norte-americano, característica muito mais visível em Clint Eastwood, outro que poderia ter feito este filme, e até melhor.

Engraçado que muitos observaram positivamente o flerte com Ford, mas não o fizeram para enriquecer Cavalo de Guerra, um Spielberg rejeitado, mas que já tinha ali muito do diretor de Rastros de Ódio, emulando uma era antiga, aquela sensação de cinema-escola. E ele filma como poucos.

Aqui, a escola é dialoguista. O roteirista Tony Kushner é mais conhecido por Angels in America, minissérie de 2004 dirigida por Mike Nichols, mas na mesma época ele trabalhava no roteiro de Munique (2005), o último grande Spielberg e, infelizmente, um tanto esquecido.

O ritmo de Lincoln é ditado por diálogos incessantes. Filme de conversação, um longa de fôlego e copo d'água, o que pode cansar espectadores muito mais do que qualquer precisão da história dos Estados Unidos.

Situado em 1865, no pulsar da Guerra Civil, não é exatamente uma cinebiografia. Como se portasse uma pinça, a história é delimitada pelos dias em torno da votação responsável por decretar o fim da escravidão nos EUA, política liderada pelo então presidente Abraham Lincoln, aqui interpretado com aquela exatidão esperada de Daniel Day-Lewis, ator fenomenal. Ele é, mais uma vez, favorito ao Oscar. Se vencer, será seu terceiro.

No gogó, Spielberg parece visualizar um filme sombrio (no sentido de "sombras" mesmo) durante horas de negociações, acertos e politicagens. Tem um olho incrível para a beleza dos planos, mesmo quando lhe parecem exigir simplicidade. Lincoln entre cortinas, à beira de uma janela, é bela imagem. É um sujeito alto, presidente varapau, estatura ricamente explorada por Spielberg, ao ponto de nutrir curioso estranhamento em determinadas cenas. Numa discussão com a esposa (Sally Field), momento que melhor repercute o tema paterno, tão caro ao cineasta, um autor, espaço para discorrer melodrama dos bons, montagem e posicionamento de câmera fazem da larga diferença de altura entre o casal um elemento de tensão e ameaça, ainda que Lincoln seja figura de extrema gentileza. Perto dele, a mulher lembra uma boneca de pano.

Essa relação com o físico do personagem é dos pontos mais interessantes do filme. A TV e um certo excesso de cinema de planos fechado nos habituaram a pensar atuação como rosto, a cinematografia do close, das feições, esquecendo a importância do corpo como um todo e sua reação ao espaço. A serenidade de Lincoln e suas raras explosões, mas que são quase inteiramente controladas e pensadas (o levantar da mão antes de bater numa mesa), estão no tempo que Day-Lewis leva para se mover, na precisão do caminhar, nas costas levemente curvadas.

Sem falar nada, Lincoln é um senhor de respeito, com claros anos já vividos e abatidos, cansados. Emana importância sem que haja a necessidade de qualquer uma das várias aproximações que Spielberg faz de seu rosto quando começa a dizer ou pensar algo relevante (neste filme, essa assinatura é quase um cacoete). Munido de cartola, isso permite a Lincoln uma assinatura visual que precede tanto homem quanto presidente, uma marca capturada pelo filme, sua silhueta e sua sombra no chão anunciando sua chegada ou sua partida. Tão emblemático que o filme se recusa a mostrá-lo atingido, caído. Prefere imortalizá-lo na chama de uma vela.

Por fim, é uma obra bastante capaz de superar a sensação "de americanos para americanos". A burocracia política do país fica atrás da noção de bipartidarismo. A bem da verdade, Spielberg é até bem didático naquilo que interessa. Republicanos e, principalmente, democratas (à época, eles representavam a visão conservadora, contrários a abolição da escravatura) quase possuem alvos na testa, e a cena dos votos é filmada e montada como uma disputa de pênaltis.

Lincoln, o filme, é mais tradicional que Django Livre, mas ambos se arquitetam sobre um mesmo grande tema humanista. Na dúvida, o personagem de Tommy Lee Jones praticamente desenha essa filosofia em sua última cena, até meio boba, mas, ok, passa o recado.

O Lado Bom da Vida




Filme de autoajuda

Oito indicações ao Oscar. Por quê? Temos aqui algo muito próximo de uma comédia romântica convencional, para não dizer nula. E talvez seja. A incerteza é por conta de momentos um pouco mais pesados, violência doméstica, mas nada que tire o foco do romance banal. Que se revela banal, como qualquer outro romancezinho que poderia estrear no meio do ano e ninguém daria muita bola. Tem até beijo final com câmera girando em torno do casal. Russell (Três ReisI ♥ Huckabees) entrou de vez no medíocre.

Porém, há uma tentativa de distinguir o amor: Pat e Tiffany, o casal principal  (Bradley Cooper e Jennifer Lawrence, excelentes juntos), são bipolares, emotivamente aleatórios, ambos jovens e com casamentos já destruídos. Ele, internado após episódio de agressão, precisa lidar com o fato de que sua esposa não o quer mais. Ela, depois da vida acontecer com muita dureza, resolve se entregar a um período de lascividade como válvula de escape, transando com vários e várias. Isso é contado, não mostrado, e são alguns dos melhores momentos de Lawrence.

Não vejo nada de mais em Jacki Weaver e De Niro aqui, mas Lawrence e Cooper são o acerto. Hollywood a descobriu cedo, e a mesma Hollywood o descobriu com um pouco de atraso. Bons e bonitos, e cada vez mais caros.

Aliás, me incomoda como o filme não consegue tirar muito proveito do fato de que tem mãos um dos casais mais bonitos da indústria atual. São atraentes, e, não menos importante, vendidos e fotografados desta maneira. As cenas dos ensaios de dança, por exemplo, valorizam o corpo de Lawrence, filmada com sensualidade. Os dois personagens, na sensibilidade de suas emoções, tem de lidar com famílias, amigos e situações delicadas, mas nenhuma outra pessoa surge seduzida pela beleza de algum deles, o que me pareceria interessante, pela forma como são construídos na tela: belos e socialmente desastrosos. Os homens que procuram Tiffany não a procuram porque ela é linda, e sim porque ela era "fácil".

A tarefa dos dois é driblar o passado. Até aí, ok. Mas O Lado Bom da Vida, tão interessante a princípio, ruma para lugares comuns e parece se resumir a algumas lições de autoajuda. Essas mensagens de superação ganham a embalagem da cultura norte-americana das apostas (concentrada em jogos de Futebol Americano, um pano de fundo que Robert De Niro se esforça para não deixar cair) e a de uma competição de dança, elemento inusitado do roteiro.

Talvez o segredo seja assistir sem expectativas. Mas com oito indicações ao Oscar e um diretor até então minimamente interessante, como evitar?

Argo





Narrativa clássica e feitiçarias

Terceiro longa de Affleck, este Argo já é encarado como a consagração definitiva do ator-diretor, a ser selada com o provável Oscar de Melhor Filme. Particularmente, prefiro seus dois anteriores, Medo da Verdade (Gone Baby Gone, 2007) e Atração Perigosa (The Town, 2010). São todos, porém, filmes de alguma forma modestos, que exprimem um gosto pelo filmar.

Filme bem comportado, Argo é um bom thriller político, passado em 1979. É baseado no caso real em que uma crise política no Irã (explicadinha numa introdução que, literalmente, desenha para o espectador) faz com que seis norte-americanos tenham de se manter escondidos no país.

Uma operação entre a CIA e o governo canadense é montada para o resgate. Liderado por Tony Mendez (Ben Affleck), o plano parece tirado da cartola de um mágico circense: com a ajuda de Hollywood - muito mais de seu imaginário, na verdade -, fingir a produção do filme sci-fi B "Argo", que teria locações no Irã. Os norte-americanos sairiam de lá disfarçados de profissionais da indústria cinematográfica.

Brincadeiras com superficialidades hollywoodianas, todas elas asseguradas por John Goodman e Alan Arkin, tem espaço interessante, mas Argo é um filme esperto. Ben Affleck o constrói como se tomasse tabuada da narrativa hollywoodiana clássica. É extremamente tradicional e muito bem executado nesse sentido. Penso não ser exagero enxergar em Affleck um grande herdeiro de Clint Eastwood, grande referência do classicismo norte-americano das últimas décadas.

Tudo está lá: os personagens secundários cuja resolução final pouco ou nada interessa; a esfera maior (política) e a esfera menor (relação entre Mendez e o filho); o jargão ("Argo-fuck-yourself", que logo vira uma piadinha chata); o deadline delimitadíssimo e repleto de obstáculos "ocasionais" no percurso; a montagem paralela; o final que reforça de vez a importância da família, e por aí vai. Ou seja, o esqueleto da narrativa clássica, colocado no papel por David Bordwell, é seguido à risca.

Quando vi o filme, me interessou a maneira como parecia, acima de tudo, respirar cinema. A elaboração do projeto "Argo" é o que há de melhor. Próximo ao fim, numa sala de interrogatório, o ponteiro do relógio correndo, um personagem salva toda a operação ao explicar, com sons, storyboards e alguma paixão de menino, o roteiro da produção espacial a um sisudo militar iraniano.

A cena parece criada para homenagear a magia do cinema, seu poder sobre a imaginação das pessoas e, talvez mais importante, a importância de se contar histórias (o cerne do longa de Affleck?). Por outro lado, pensada depois, é também uma espécie de feitiço, maracutaia do sábio pra cima do ingênuo, algo meio Tom & Jerry. O amigo Saymon sentiu o mesmo, mas infelizmente não escreveu nada no Esperando Godard, limitando-se a comentar no Facebook, o que também me levou a repensar a cena.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis (2012)



Cinema torcicolo

O que Hollywood viu nesse Tom Hooper, afinal, para investir tanto no cara? Está aquém até mesmo da ala mais mambembe da indústria, com seus Ron Howard, Taylor Hackford, Marc Forster e, tirando uma ou outra coisa, o atual Ridley Scott, só pra começar. Após ser laureado pela Academia por O Discurso do Rei (2010), mediocridade já cheia de vícios visuais, lhe entregaram esse Os Miseráveis, adaptação de um musical da Broadway, que por sua vez é baseado no romance de Victor Hugo (há uma edição linda da Cosac Naify no Brasil, inclusive). A produção concorre a oito Oscar, incluindo Melhor Filme.

Justiça seja feita, temos aqui um musical consideravelmente ousado. As canções não se dedicam apenas a sequências especiais de música e dança, sendo quase todas as falas movidas pelo canto. Embora o gênero, assim como o western, tenha encontrado novos batimentos cardíacos em Hollywood (Moulin Rouge, Chicago, Nine, Sweeney Todd...), um musical integral talvez pareça um passo maior que a perna para alguns espectadores.

Na França pós-Revolução, as pessoas soltam a voz para contar a história de Jean Valjean (Hugh Jackman), condenado à prisão por ter roubado um pedaço de pão. Quebra sua liberdade condicional para, arrependido, construir nova vida, mais digna e próspera. Será, porém, perseguido anos a fio por Javert (Russell Crowe, cantando gripado, aparentemente), inspetor da polícia, personificação da Lei. Como palco dessa caça, todo um cenário de pobreza e desespero que cercava a população do país, que terá em Fantine (Anne Hathaway) sua maior representante e, para Valjean, uma mártir pessoal. Muita sofridão, com as músicas procurando uma espécie de catarse constante.

Uma dica dada por amigos é a de abandonar a sessão assim que Hathaway sai de cena. Considerando que o melhor momento de Jackman acontece antes dela aparecer, faz certo sentido. Favorita ao Oscar de Atriz Coadjuvante, ela está mesmo uma coisa espetacular. É seu pequeno tour de force.

Mal dirigido ou não, essa musicalidade infinita é o que há de mais interessante e, enquanto projeto, ninguém poderia acusá-lo, hoje, de mesmice. Tendo passado uma semana em cartaz, o que se percebe no público em geral é uma certa preguiça do conceito levado ao extremo, por quase três horas. "Insuportável", ouvi dizer de três pessoas diferentes. Também achei, sobretudo da metade em diante. Não por esse acúmulo de cantoria, mas por ser um filme horroroso, feio de olhar. Inacreditável dizer isso, mas até dá pra pensar que Rob Marshall, coreógrafo de montagem (Chicago), faria algo bem menos cansativo. Tom Hooper me parece ser simplesmente catastrófico.

Três longas, dois deles cheios de indicações e holofotes, tem-se a impressão de Hooper já virar uma piada. Profissional empanturrado de manias estéticas irritantes, sugere uma aleatoriedade nas escolhas de suas imagens. Entre seus cacoetes, closes imensos nos rostos, a lente distorcida enfeiando tudo, desfocando até o corpo (ver principal número de Hathaway, por exemplo, um embaço que chega a fragilizar o fato de ser um plano-sequência), deixando os atores com a estranha impressão de usarem máscaras de si mesmos. Ou então filmando-os como bustos de bronze parados em algum lado da tela, contra um fundo vazio e sem foco, aquela sensação de terem borrifado litros de colírio na nossa cara. Deve ser frustrante para uma equipe de direção de arte, seu trabalho escondido por rostos inflados e planos nublados.

Hopper também gosta de inclinar o enquadramento, outro tique abominável (ver imagem acima). E como gosta. Não existe uma cena em que não exista um... dois... três planos tortos. Com câmera corcunda e manca, o filme lembra um quadro mal pregado na parede. Hooper, cineasta torcicolo.

Este senhor tem um Oscar de melhor direção.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Depois de Lúcia



Entre os muros da escola

Um dos filmes que mais me impressionaram nesta edição da Mostra O Amor, a Morte e as Paixões foi esse Depois de Lúcia, co-produção entre México e França. Numa Mostra em que a grande atração é a última Palma de Ouro (Amor, de Haneke), vale também dar atenção a este que foi o vencedor do último Un Certain Regard (Um Certo Olhar), uma paralela à principal competitiva de Cannes. Dali saem o que podem se tornar grandes revelações, enquanto a Palma é dominada por gente que já tem nome e, não raramente, prestígio.

Bem interessante notar, aliás, que o cineasta Michel Franco, mexicano, pareça ser influenciado justamente pelo cinema de Michael Haneke: planos longos e estáticos, enquadramentos pensados numa mesa de arquitetura, quase matemáticos, e um frio amargor que sugere diálogo com alguns momentos do autor austríaco. Ambos cultivam uma objetividade e paciência intrigantes, bem diferentes de um longa como Movimento Browniano (2010), de Nanouk Leopold, também com sessões na Mostra, este sim, insuportável em seus tempos mortos e enterrados, de um esvaziamento presunçoso que, na verdade, não leva a nada.

O "depois de Lúcia" situa o tempo da história, que acompanha pai e filha adolescente após a morte da esposa. Eles mudam de cidade; ele, chef de cozinha, encontra novo restaurante e ela, nova escola. Nova equipe de trabalho, novos colegas de sala. Aos poucos, tentam superar a perda recente. Aos poucos, e gradativamente, ela começa a ser abusada no colégio. Daí em diante, Franco monta, peça por peça, uma descida ao inferno.

Depois de Lúcia ainda apresenta uma relação com imagens que o aproxima de Haneke por mais um lado. Aqui, as desumanidades (ou humano, demasiado humano) têm início num descuido envolvendo um vídeo de celular. A filosofia de parte da filmografia de Haneke gira em torno do registro visual, daquilo que é gravado e, uma vez aprisionado em tela, ganha vida própria e poder de alterar a "realidade". Em alguns aspectos, inclusive o tom, temos aqui algo que talvez esteja bem próximo de O Vídeo de Benny (1992).

O "certo olhar" de Franco é um olhar distanciado que prima pelo incômodo, tal qual o de uma testemunha impotente. O nível de bullying é muito grande, sobretudo por ser muito específico em sua agressão (contra mulher, contra uma garota). No papel da menina, Tessa Ia oferece atuação das mais corajosas, submetida a um ciclo de humilhação que chega a correr o risco de perder a credibilidade: tanto acontece, maldade por todos os lados, e não há um que não pareça concordar em ser, no mínimo, cúmplice. O filme quase se perde nos seus excessos sem qualquer gota de alívio, mas isso vira só um ponto de interrogação pairando ali no meio, pois os rumos finais definidos pelo cineasta são muito bons, mesmo. A última cena, o último plano, é sensacional.

P.S.: o filme me parece ser muito mais que uma discussão sobre machismo, mas como é um tema que certamente será levantado (e que, sim, está lá), é bom dizer que, terminada a sessão, perguntar com indignação o porquê da garota "não ter contado pra ninguém" é algo que não faz sentido.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Infância Clandestina (2011)



A grama vai bem, obrigado

Este eu saí da sessão achando mais ou menos e fui dormir achando ruim mesmo. É uma das muitas produções argentinas da Mostra, mas nenhuma delas com o Ricardo Darín, que o brasileiro adora e é realmente muito bom.

Esse Infância Clandestina se passa no final da década de 70, anos pós-Perón e época importante da resistência revolucionária. O protagonista é Juan, agora chamado Ernesto, com nome, identidade e aniversário falsos, tentando viver às escondidas sob os cuidados dos pais e de um tio. Sua rotina é escola e casa.

Juan/Ernesto se apaixona pela irmã de um coleguinha. Ela dança, pratica ginástica com fita e é assim observada pelo olhar do menino em câmera lenta. O diretor Benjamín Ávila é chegado nessa novelinha, arrisca pouco, exceto quando insere sequências em quadrinhos, evidentemente usadas para encobrir a violência. Direção tiozona.

Achei o filme bobo, desinteressante e até brega. Aprendemos, vejam só, que chocolate com amendoim pode ser uma metáfora pra chegar em mulher, e Ávila dirige isso como se quisesse um abraço e não tivesse outros problemas com que se preocupar, como tentar não esbarrar em clichês de filmes sobre ditadura.

É quase um O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (que acho bem legal) hermano. Só que desta vez a grama do vizinho não é a mais verde.

A Parte dos Anjos




Feel good movie de whisky

Tratei logo de ver o último do Ken Loach, que perdi na Mostra de São Paulo. Era dos mais procurados por lá. Não apenas por já ter colecionado um balaio de elogios, mas porque A Parte dos Anjos é outro Loach leve, muito capaz de adicionar mais e mais público a cada exibição. Deve ser bem procurado no decorrer da Mostra O Amor, a Morte e as Paixões.

Aconteceu também de ser minha última sessão do dia, logo após ter assistido a Depois de Lúcia, produção mexicana um tanto impressionante (e bem boa!), pesada, tão ou mais amarga que o Amor de Haneke. A Parte dos Anjos agiu como um curativo.

Em mais uma colaboração entre o roteirista Paul Laverty e o cineasta (já são mais de dez?), temos aqui um feel good movie esperto e, o que é sempre um ponto a favor, de humor britânico. Loach, diretor inglês bem observado desde Kes (1969), seu segundo longa, nos traz a história de um grupo de escoceses que, cada um punido por seu delito, devem cumprir horas de serviço comunitário. São uma espécie de gangue de arrependidos e desafortunados, personagens engraçados sem muito esforço e construídos numa boa noção de amizade. São os "anjos" do título, de alguma forma, e o filme corre bem com eles.

Loach não hesita, porém, em mostrar o crime cometido pelo que vem a ser o protagonista, Robbie (Paul Brannigan, muito bom em seu primeiro trabalho), sujeito baixinho, franzino, esquentado e com histórico de violência. Seu erro, no caso, foi ter espancado outro rapaz, e por um motivo ridículo. Essa agressão é mostrada em flashback e filmada sem o menor carinho que é tão presente na maioria das outras cenas, uma mudança brusca de tom forte o bastante para nos acompanhar até o fim, funcionando muito bem no filme, e no momento certo, ainda no começo. Robbie também é pai de um recém-nascido, outro motivo para tentar se reajustar.

Mas o melhor de A Parte dos Anjos talvez esteja na habilidade de desenvolver sua verdadeira paixão através do whisky, surpreendente motor da narrativa a partir de certo ponto, com direito a virar um "filme de roubo" do bem. São visitas a destilarias, a Edimburgo, degustações, uma sensação de culto em torno de enormes barris e toda uma filosofia de pub que paira sobre algumas dessas histórias, e Loach parece atingir algo autenticamente escocês, dentro e fora do imaginário. Existe até uma estratégia envolvendo kilts, os típicos saiotes. Muito bom.

P.S.: sim, o título é explicado no filme, e tem a ver com o whisky.

P.P.S.: desculpe a ocorrência de eventuais erros. Maior parte dos textos escrita entre uma sessão e outra ou ao fim de uma noite cansada.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Oslo, 31 de Agosto



Esforços e desistências

Das coisas boas de mostras e festivais: você entra meio às cegas em várias sessões, descobrindo o filme na hora, às vezes porque resolveu encaixar uma sessão na agenda apenas para aguardar outra, e em algum momento sente-se bem pela escolha. Oslo, 31 de Agosto (2011) foi dessas.

É uma história simples, até mesmo velha para esse mundo rápido: o ex-viciado em drogas que, há meses limpo, tenta se reencontrar na sociedade e em relação a si mesmo. Anders (Anders Danielsen Lie, em bela atuação) é esse cara, e o início do longa é ele tentando se suicidar de maneira pouco eficaz.

Neste 31 de agosto do título, Anders reencontra amigos, gente do passado, pessoas queridas e desafetos. Tenta um emprego de auxiliar de redação. Rapaz inteligente, com uma lacuna na vida, a atuação de Lie sugerindo um constrangimento honesto, mas que ao mesmo tempo valoriza o atual recomeço. A entrevista com o editor de uma revista é muito boa e ilustra o desafio de Agnes a não olhar pra baixo.

Joachim Trier, o diretor (e que não tem parentesco com Lars Von Trier, bom dizer), me pareceu um pouco viciado no enfoque e desfoque, mas ele tem seus brilhos de cineasta promissor. Um deles é a cena em que Anders, num café, escuta as conversas ao redor, gente jovem falando de suas rotinas normais e, mais especificamente, uma jovem listando seus desejos pra vida. O melhor da cena, na verdade, está no final, quando Anders sai do café e a câmera o acompanha com um súbito travelling, retinho, quase um choque dentro de um filme todo com câmera na mão. Nesse movimento, controlado som interno dando lugar ao som da cidade do lado de fora.

Também me chamou a atenção no modo como Trier filma Oslo. Nós temos mania de pensar Noruega, Dinamarca, Suécia, enfim, os países nórdicos, com uma carga mítica muito concentrada. O país distante, rico, sublime, avançado. Em Oslo, 31 de Agosto, a capital norueguesa aparece bastante normal, seja na rua ou na vista de uma janela. Um pesquisador acadêmico norueguês da área de humanas aparentemente tem as mesmas agonias individuais que um pesquisador brasileiro, vejam só - e também escrevendo teses e estudos que "ninguém lê".

Por fim, o longa encontra um desfecho nada enganador. Trier sequer tenta nos surpreender, o que é bom. Tive a sensação de buscar uma conexão com o início. Me pareceu um filme sobre esforço e desistência.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Gretchen - Filme Estrada



Pão, circo e quadris

ou

Viajo porque preciso, volto porque rebolo
(desculpa, não resisti; não resisti mesmo)

É muito fácil assistir a Gretchen Filme Estrada (2010) esperando ver uma coisa e sair com outra. Gretchen, a dançarina, a artista, a personagem, pertence um pouco ao imaginário do Brasil, como o próprio documentário reconhece. O que temos aqui, no entanto, é o registro de sua esforçada campanha de eleição para a prefeitura de Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, no ano de 2008, ponto de apoio que se revela suficientemente rico.

O filme, dirigido pela colunista Eliane Brum e pelo documentarista Paschoal Samora, segue Gretchen e seu comitê por ruas e comunidades. Sempre que pode, ainda se apresenta com o eco de seu passado, movida a playback e rebolado. De carro, viaja para habitações mais distantes, na tentativa de coletar votos em pedaços esquecidos de Brasil. É, em parte, o road movie que o título sugere, e Brum e Paschoal logo parecem identificar a direção que devem tomar com o aquilo que têm. Gretchen vira pano de fundo, e Gretchen Filme Estrada acaba por configurar uma espécie de retrato da política brasileira, ou de parte dela.

Embora o texto em off (escrito por Brum, imagino) às vezes pese como uma coluna de revista  que tenta a todo custo se encaixar no que lhe seria um corpo estranho - o cinema - e seja narrado de uma maneira quase estudantil, insegura, o documentário encontra força nos pequenos bastidores de campanha e em seus paralelos. A carreira rebolante de Gretchen é lembrada inúmeras vezes. Seus quadris circenses sob o olhar de eleitores, ao fundo do quadro, parecem constituir imagem síntese do filme. Aqui, ela rebola por votos, um teatro assumido ("Volta o CD!"), não muito distante da religião. Bunda e Deus com propósitos eleitorais semelhantes.

Interessante também é a figura de Gretchen como sombra de si mesma. Apresenta-se como mulher normal, mãe, ao mesmo tempo que procura tirar proveito de seus 30 anos de carreira. E nem poderia ser diferente. Em dado momento, cidadãos da Ilha não acreditam que é a própria Gretchen prestes a protagonizar sua performance. Há alguma noção de fascínio pela fama que parece irretocável e dialoga bem com o tom de decadência que constantemente bate na porta do filme. Como candidata política, porém, Gretchen é uma qualquer, genérica e rodeada de clichês. Chega a levar o documentário a um certo cansaço, a edição tendo problemas para identificar a redundância de seus discursos, ou apenas procurando aumentar a metragem com eles.

Lá pelas tantas, o doc decide expôr parte de sua estrutura, pouco depois de uma séria reunião entre a candidata e sua equipe. A reunião não foi filmada. Segundo os diretores (já na voz de Brum, salvo engano), Gretchen teria dito ser "realidade demais para ser registrado". É uma mulher de mídia.