domingo, 30 de dezembro de 2012

Febre do Rato



It's a trap!

Cláudio Assis continua estômago e sexo, filosofia que pregava em Amarelo Manga (2002), seu longa de estreia. Dois longas depois, me pergunto se já não estaria na hora dele saber que cinema pode ser mais que isso.

Em certa medida, este Febre do Rato é seu melhor filme, mesmo acomodado numa mediocridade autoral: Assis dirige cada vez melhor, seu olho para movimentos de câmera, montagem e enquadramentos superiores (há um travelling no teto que me lembrou até mesmo algo de De Palma, veja só) sendo invariavelmente inspirado, aqui casando com a melhor fotografia que Walter Carvalho já fez pra ele, eclodindo num filme preto-e-branco que, como um bom amigo notou, teria muito de cinema marginal, a começar por Sganzerla. O papo também beira por esse lado, ainda que Assis não me pareça profundamente interessado em levar suas questões (políticas, sexuais, humanas...) muito adiante, como o próprio Sganzerla conseguia em seu tempo (com um diálogo cinematográfico mais rico que Glauber, gosto de dizer), até quando flertava com o caótico.

Febre do Rato tem hedonismo e poesia aos montes. O protagonista é Irandhir Santos, ator interessantíssimo (vejam-no em O Som ao Redor) interpretando um poeta marginal. É um personagem guiado pelo prazer e pelo que parece ser um confronto ideológico contra algo sobre o qual Assis não nos localiza muito bem. "Pelo direito de errar"? Talvez seja só isso mesmo, com o poeta sendo emocionalmente atingido por uma garota chamada Eneida (Nanda Costa), relação de urinas intimistas e siriricas poéticas, o tipo de coisa que Assis parece fazer apenas para tentar causar algum desconforto; apenas porque ele pode, porque ele tem esse poder, e de alguma forma parece se divertir com isso. Soa presunçoso e trafega irritante na tela.

Não consigo levar o cinema de Cláudio Assis a sério. Acho tudo muito forçado, carregado, juvenil. Talvez o maior problema desse seu cinema "de entranhas" (earmm...) seja deixar aquela sensação de que foi feito para que qualquer um que não goste seja acusado de carolice. Armadilha de criança.

O Hobbit - Uma Viagem Inesperada




Cinema pouco inesperado

Revisitar um mesmo universo não é algo incomum nesse cinema que, desde os anos 80, soube se apoderar do gosto do público pelas sequências, pela continuação de uma experiência consagrada, com o invariável talento de Hollywood para multiplicar tudo isso em cifras. No seu melhor e no seu pior, George Lucas e seu Star Wars estão aí até hoje, infindáveis.

O Hobbit chega aos cinemas nesta última quinzena de dezembro com a promessa de “estreia do ano” e também de investimento técnico da vez, filmado a 48 frames por segundo, o dobro das filmagens tradicionais do cinema, deixando o filme com cara de, dizem, um telão de LED. Vi em 2D-24 fps, hoje uma sensação quase de “à moda antiga”, então falta conferir esse suposto salto tecnológico que ainda corre o perigo de ser um fracasso. De todo modo, é curioso que em meio a cada vez menor sobrevivência da película diante do digital, um blockbuster dessa magnitude pense como avanço uma imagem que, ao que parece, aproxima-se de uma plasticidade televisiva.

Toda essa responsabilidade de marketing se relaciona com expectativas lucrativas e, não podemos subestimar, emocionais, uma vez que reenvolve quantidade significativa de fãs não apenas literários, mas também cinematográficos. Entre 2001 e 2004, O Senhor dos Anéis, projeto arriscado de três longas em conjunto, bateu recordes de bilheteria e se consolidou um marco no épico de fantasia. Dirigido pelo mesmo Peter Jackson, O Hobbit confia tanto num passado de 10 anos que aposta em outra trilogia, ainda que baseado em livro três vezes menor: sem conclusão definitiva até o final de 2014, é claramente encarado como um novo O Senhor dos Anéis, embora não seja.

A primeira diferença fundamental está no seu tom, boa parte dele devota do livro, escrito para crianças. Às vezes de maneira até ousada, agregando certo número de cantorias e um timing cômico abrangente, aqui Peter Jackson, um belo condutor de histórias grandiosas (seu King Kong é incrível), parece exercer muito mais a função de relator do que a de criador de outro épico imenso. Relata até demais, amplia até demais o mundo que tem em mãos, adicionando personagens por mera curiosidade (Radagast, bobo, infantil, aparições completamente Disney World), mas, mesmo obedecendo a expectativas blockbusterianas de sequências de ação, o que se tem aqui é obra menor.

Desde o princípio, O Hobbit briha mais quando se distancia do que lhe seria mais épico. No papel do hobbit Bilbo Bolseiro, interpretado por Ian Holm em O Senhor dos Anéis, que se passa 60 anos depois, Martin Freeman é um acerto absoluto em seus olhares, hesitações e domínio de um texto tão sólido quanto divertido. Numa trilogia que se vê na necessidade de repetir o gigantesco, o seu melhor está na atuação do pequeno herói frágil. Uma cena de disputa de charadas, célebre momento para os leitores, é ponto forte do cinema travesso de Jackson e deve ser um enigma para crianças, do riso ao temor em segundos. Muito bom.

Em resumo, Bilbo é convocado por Gandalf (Ian McKellen, repetindo o papel) a auxiliar 13 anões a recuperar suas riquezas, tomadas anos antes por um dragão despeitado chamado Smaug. Para isso, devem cruzar parte da Terra-Média, o fascinante continente fantasioso criado pela literatura de Tolkien, a fim de chegarem à montanha onde reside o bicho.

Jackson introduz essa história com a energia do prelúdio de sua trilogia anterior. Não revela, mas apenas sugere uma imagem que se possa ter do dragão, animal icônico das fantasias e imaginações, portanto digno do suspense visual. Jackson tem um momento inspirado nesse início, quando faz com que uma sugestiva pipa invada a tela pela direita, fora de campo, precedendo os ataques de Smaug.

Essa habilidade do diretor de contar histórias permanece admirável. Com quase três horas e se estruturando em outros dois longas de mesma duração, admito ter me surpreendido com um ritmo que me deixou a impressão de estar diante de uma produção redonda de duas horas. Por outro lado, é estranhamente inconclusivo, sobretudo na (inicialmente coerente) necessidade de se criar um vilão-de-primeira-parte que... ganha sobrevida para o próximo episódio.

Não muito atrás, é quase impossível distinguir os anões, sendo mais prático pensá-los apenas como um grupo, um bloco de personagens, exceto pelo líder, que talvez seja presença tão inexpressiva quanto sua importância narrativa (o ator parece sempre ter acabado de acordar), o que, por tabela, compromete outras questões (sua relação com Bilbo, por exemplo).

Dez anos depois, O Senhor dos Anéis ainda me impressiona como épico hercúleo que é, um desses feitos memoráveis. O Hobbit, porém, me parece não exatamente um teste de paciência, mas de curiosidade. De tão familiarizado com este universo, Jackson o traz de volta com uma espécie de selo de garantia, um “padrão de qualidade” que, ao contrário do que era arriscado há uma década, agora soa como defensivo. As mesmas câmeras, a mesma fotografia, muito pouco do “novo” que outro diretor, como o anteriormente cotado (contratado?) Guillermo del Toro, poderia inserir de maneira interessante num projeto desses. Aqui, por enquanto, há pouco com o que se surpreender.

p.s.: impressão depois de ver em 48 fps: parece um museusão de cera em movimento. É estranho. Tô velho pra 3D, esse entojo nos olhos. Tô velho pra 48 fps? Ainda não sei dizer. Fico pensando até que ponto não é reflexo de uma intimidade com plasmas, LCDs e LEDs já adquirida pelo "novo" público (Terra-Média tá com a maior cara de National Geographic). É uma espécie de cine aquário.

Cinema não exige fidelidade a único formato (ainda bem), mas a tradicional película ainda é minha melhor amiga. Filmes parecem bichos vivos nela, quase como se quisessem escapar. Cinema sempre foi coisa viva pra mim.

A Vida Útil



Filme em perfeita sintonia com a reabertura do Cine Cultura

Após meses fechado para reformas, o Cine Cultura volta às suas atividades nesta sexta-feira, 07 de dezembro. Localizado na Praça Cívica, o cinema conhecido como "o mais charmoso de Goiânia" não poderia ter escolhido melhor reabertura: La Vida Útil (2010), de Federico Veiroj, cineasta uruguaio. Com 70 minutos de duração, o longa será exibido na sessão de 18h30 de segunda à sexta e na sessão de 17h aos sábados e domingos.

Como é sabido, salas de rua tornaram-se espécies em extinção, sobretudo a partir da virada dos anos 70 para os anos 80, quando Hollywood entendeu que shopping centers eram um excelente lugar para os negócios, e que Tubarão e Star Wars apontavam um modelo a ser seguido. A cinefilia teve de se adaptar, o público mudou. Aos poucos, as pessoas deixaram de ir ao cinema e adquiriram um hábito mais... sedutor(?): consumir o cinema, e em um local onde poderiam consumir muitas outras coisas.

Soma-se a isso o fato do cinema também desprender-se da sala de exibição, da tela grande, encontrando seu novo lugar nas fitas VHS, nos DVDs, nas TVs por assinatura e, hoje, nos arquivos virtuais, na imaterialidade da "nuvem". O olhar coletivo encontrou um amigo rival: o ver doméstico.

O filme de Veiroj fala justamente de um cinema pouco sobrevivente, de exibições alternativas e autorais,   como ciclo de filmes uruguaios e Mostra Manoel de Oliveira. É a Cinemateca de Montevidéu, mas poderia ser qualquer cinema de rua da América Latina.

Acompanhamos Jorge (Jorge Jellinek), funcionário da Cinemateca da capital uruguaia por mais de 20 anos. É sua rotina de trabalho que lembrará o espectador o quanto há de ofícios comuns e burocráticos por trás do prazer de assistir a um filme, além dos inúmeros esforços para que esse tipo de cinema seja mantido vivo. São salas atordoadas por problemas técnicos e flanqueadas por dependências administrativas, sendo o "economicamente não rentável" um motivo para cordas no pescoço.

Numa cena de discurso mais explítico, outro personagem explica a importância destas salas não apenas como exibidoras, mas como espaços de aprendizado e formação de espectadores. A política de público das cinematecas, tão importante nas décadas de 1950 e 1960, ficou para trás assim como o nostálgico preto-e-branco de La Vida Útil virou sinônimo de passado.

Os últimos suspiros do lugar parecem estar no som das cortinas se abrindo, no barulho do rolo de filme no projetor e no movimento das portas, tão sozinhas quanto Jorge, detalhes e instantes que Veiroj filma com afetuoso interesse, revelando paixão e lamento. Não por acaso, mesmo distante de sua Cinemateca, Jorge parece procurar pequenos momentos cinematográficos para sua vida, com uma cena nas escadas de uma universidade sendo das mais bonitas e encantadoras.

É um filme com um forte clima de solidão e abandono. Não exatamente de pessoas (de alguma forma, elas estão salvas, surpreendentemente!), mas a solidão de um tipo de cinema e, não muito atrás, de um tipo de prazer.

Assistir a La Vida Útil num cinema como o Cine Cultura é, em certa medida, ser o filme. Ou, na mais feliz das hipóteses, declarar que sua atmosfera cinefilamente fúnebre (mas doce e, por fim, esperançosa) ainda pode se enganar.

Curvas da Vida



A última vez que Clint Eastwood atuou num filme em que também não fosse diretor foi há quase 20 anos: Na Linha de Fogo (1993), de Wolfgang Petersen. Neste Curvas da Vida, é dirigido por Robert Lorenz, seus assistente de direção em várias produções, aqui estreando como diretor.

É difícil visualizar como se dão as relações humanas e de proximidade num meio industrial como Hollywood, pensamento de produção sustentado, em parte, por firmes contratos de patrão-empregado, como qualquer atividade empresarial. Temos aqui, então, aquela sensação de tapinha nas costas, com Lorenz comandando não apenas aquele que foi seu "superior" em várias ocasiões artísticas, mas uma espécie de entidade superior do cinema norte-americano.

Curvas da Vida espirra Clint Eastwood por todos os lados. Ele não só atua, como também produz um destes pequenos batimentos cardíacos dos EUA: o tradicional filme de esporte tipicamente norte-americano, que tem tudo a ver com Eastwood e seu elo com o país (western, cinema clássico, melodrama, história...).

Aqui, ele interpreta Gus, um experiente olheiro de baseball. Homem de papéis, olhos e ouvidos, resiste ao uso de tecnologias. É visto por colega de trabalho como alguém ultrapassado, digno de aposentadoria forçada. Gus tem uma filha, Mickey (Amy Adams), advogada a contragosto, o esporte sendo sua autêntica paixão, e boa parte do filme mira na alimentação desse relacionamento.

Cinema clássico, 2 + 2, dirigido por Lorenz como se Eastwood lhe tomasse a tabuada. São formulinhas e esqueminhas que o próprio Eastwood soube dominar desde cedo com tanto cuidado e amadurecimento, pacientemente lapidando seus filmes para que o jogo de emoções seja, enfim, jogado com a inteligência de quem sabe que esse tipo de ilusão pode ter um valor verdadeiro (atualmente, Ben Affleck, em cartaz com Argo, nos sugere um provável herdeiro desse cinema). Obras como Menina de Ouro e As Pontes de Madison vieram desse profundo esmero eastwoodiano.

A sabedoria vendida em Curvas da Vida, porém, é rasa, limitada a distinguir o certo e o errado via melodrama dos mais infantis. O antagonista de Gus é um jovem olheiro (Matthew Lillard, interpretando o babaca padrão) munido de computador e estatísticas, representando o lado bocó da tecnologia de ponta, como se esta fosse rival dos "instintos" in loco. Para concluir a vilania, ele também se revela um machista.

Cada um ao seu modo, eles observam um rebatedor promissor, garoto caracterizado como um bully, vilãozinho Disney asqueroso que a pesada direção de Lorenz não deixa dúvidas: odeie o rapaz e seja recompensado no final.

Há, também, um romance paralelo entre filha de Gus e o personagem de Justin Timberlake. Ele é legal, ela só lida com idiotas robóticos de escritório, então é um filme com pacote completo de figurinhas amassadas de tão batidas. Na trama paralela de Mickey, ela se reaproximará da vida mais simples e dos trajes não executivos ao mesmo tempo em que será sacaneada por gente de terno e gravata. Essas dicotomias aparecem no filme como letras escritas pelo Chorão do Charlie Brown Jr.

O prazer fica por conta da presença de Eastwood em uma de suas especialidades: o rabugento. Cada resmungo soa como um verso dadaísta.

Irresistível não se deixar levar pelo clichê e dizer que, se dirigido por Eastwood, Curvas da Vida talvez encontrasse algo de sólido. O longa abre com um cavalo correndo em direção à câmera, um plano muito a cara do cineasta, que vez o outra podemos vislumbrar em certas cenas e questionar o que poderia ter feito diferente de Lorenz. Nos rumos finais do filme, uma cena chave, situada num quintal, há o arremesso em câmera lenta de uma bola e a importância de um som, e não deixo de pensar se Eastwood não teria filmado o momento num plano lateral e mantendo fora de quadro a chegada da bola à luva.

Na melhor das hipóteses, fica a impressão de termos visto um Clint Eastwood de segundo escalão.