terça-feira, 12 de novembro de 2013

Festival do Rio 2013 - Parte 2: orcas, punk, abandono e sonolências



Devido aos compromissos com a Goiânia Mostra Curtas, tive de me virar com o que seria possível assistir apenas na primeira metade do Festival. Alguns filmes, como Sozinha, documentário do chinês Wang Bing, me lembraram a fala de Eduardo Valente no doc Crítico, de Kleber Mendonça Filho, de que, na internet e nos blogs, você pode simplesmente não escrever sobre o filme, pois às vezes você não tem nada pra falar sobre aquele filme. Sobre Sozinha, eu não tenho, mas dá pra fazer um apanhado em duas ou três partes entre os quase trinta vistos.

Meu festival também ficou mais curto por conta das mudanças na programação do Cine Odeon em razão das manifestações dos professores na região da Cinelândia. Em meio a protestos legítimos, porém um tanto esquizofrênicos (manifestante a favor da educação gritando que deveriam era bombardear o Odeon, ou seja, um espaço cultural, é algo que me parece contraditório e pouco lúcido, mas eram casos isolados), sessões de The Canyons, novo do Paul Schrader, e boa parte da Première Brasil ficaram sem suas exibições nesta que é uma das mais belas salas de cinema do país. Nessa leva, perdi o elogiado Tatuagem, de Hilton Lacerda.

Enfim, um pouco do que deu pra ver.

Blackfish - Fúria Animal (EUA, 2013), de Gabriela Cowperthwaite

Uma dessas sessões em que você cai meio de pára-quedas, pra preencher tempo, torcendo para que seja uma descoberta ou ao menos te mantenha acordado no ritmo de cinco a seis longas por dia.

A escolha por Blackfish também se deve ao fascínio em torno das baleias orcas, criatura que, de tão espetacular em sua beleza, é levada a liderar o grotesco espetáculo de mercado de SeaWorlds e afins.

O documentário parte da premissa de investigar a trajetória de Tilikum, orca macho responsável por matar três pessoas, incluindo uma experiente treinadora do SeaWorld, o que reforçaria o mito de "baleia assassina". O contorno geral, porém, faz de Blackfish um interessante filme de bullying animal, expondo métodos torturantes de treinamento e condicionamento comportamental de parques aquáticos interessados em vender pelúcias de orcas e golfinhos.

Cowperthwaite cumpre o bê-a-bá de um doc investigativo, procurando depoimentos de ambos os lados, embora seu caráter denunciatório seja evidente e, no caso, necessário, situando-nos numa espécie de irmão de The Cove, documentário vencedor do Oscar 2010 e um grande filme. Em dado momento, uma montagem paralela coloca as falas de um pesquisador de baleias orcas negando todas as mentiras contadas (num mix de ignorância e respostas padrão de treinamento) por guias SeaWorlds ao público visitante.

Em parte, Blackfish também se aproxima de filme de terror. Alguns depoimentos são centrados em ataques de orcas a treinadores. Há imagens medonhas, uma tensão elevada pela incerteza de que aqueles acidentes seriam falhas de treino ou agressões conscientes (hipótese mais defendida), resultadas de todo um histórico de maus tratos em cativeiro. Uma baleia enorme saltando suas toneladas em cima de um homem ou puxando pessoas para o fundo do tanque não é Free Willy, aquele filme que, embora pregasse a liberdade dramalhona, talvez tenha levado toda uma geração a esses parques.


Nós Somos os Melhores! (Vi är bäst!, Suécia, 2013), de Lukas Moodysson

O novo de Lukas Moodysson é praticamente um feel good movie ao estilo de Ken Loach, e, por isso, muito bom.

Nós Somos os Melhores! se passa em 1982 e gira em torno de três garotas na casa dos 12 ou 13 anos. Duas delas, amigas, são zoadas por seu estilo de cabelo curto, meninas não muito interessadas em seguirem o protocolo do que seria "se comportar como mulher", embora jamais deixem de ser femininas em seu sentido mais clássico (são delicadas, falam de garotos etc).

A válvula de escape para o grito de adolescência da dupla será a oportunidade de ensaiar instrumentos musicais e tentar, enfim, montar uma banda de punk rock. A cena é quase absurda e muito engraçada, envolvendo esperteza vingativa contra os grandes rockeiros do colégio e uma falha burocrática na reserva da sala de música. Sem nunca terem pego em baterias, baixos ou guitarras, resta o barulho e a atitude de tentar experimentar alguma atitude punk, um jogo de camadas que é justamente a força do filme.

Começo dos anos 80, a energia dos Sex Pistols ainda batendo na porta, toda uma garotada querendo fazer parte daquilo. E Moodysson nunca ilude suas meninas ou a nós. Elas são ruins ou têm muito a treinar para chegar ao nível da nova amiga, uma cristã exímia no violão clássico que topa entrar de cabeça (quase que literalmente) na banda. A elaboração do plano para convencê-la a se juntar às duas é dos pontos mais inspirados do filme, o tipo de bom humor inocente envolvendo religião.

Essa inocência, por sinal, faz parte do brilho de Nós Somos os Melhores!, e dela talvez venha a exclamação do título. Há um encanto nesse entusiasmo, nessa empolgação que beira o infantil, e que às vezes deixa o longa parecendo apenas uma brincadeira. Mas na verdade é fantasia, no melhor sentido. Fantasia de infância, de moleque, movida por vontade, e, no caso, uma vontade que leva a um filme autenticamente punk, cuja semente estaria menos na música e mais no desejo de se entupir de porcaria.


Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho (Episoda u zivotu beraca zeljeza, Bósnia-Herzegovina, 2013), de Danis Tanovic

Tanovic fez seu nome logo no primeiro longa, Terra de Ninguém (2001), vencedor de roteiro em Cannes e filme estrangeiro no Oscar, o que, na minha idade daquela época, me deixou um tanto decepcionado quando vi. Não sei como seria revê-lo hoje (revi partes na TV, mas nunca achei grande coisa), mas de lá pra cá, os outros trabalhos do diretor nunca me chamaram muita atenção.

Aqui, no entanto, Tanovic solta um belo filme, a ponto de lembrar o que o atual cinema romeno tem oferecido de melhor para o mundo (vide Além das Montanhas, de Cristian Mungiu). A história é das mais simples: esposa de um catador de ferro-velho precisa passar por cirurgia de emergência, mas a família, ciganos residentes da periferia da Bósnia e Herzegovina, não possui dinheiro e tampouco seguro para que a operação seja realizada.

Por trás dessa simplicidade há uma jornada de esforço e exaustiva procura por soluções, agonia que Tanovic captura como um relógio em tic-tac. O tempo não espera, os médicos e hospitais dizem seus "não, não é possível", e a sensação de que uma pessoa pode morrer simplesmente assim, mesmo na porta de um hospital, é tão gélida quanto a temperatura daquele país.

Ainda assim, num cenário em que tudo pode e parece dar errado, em que o sentimento de humilhação chega a fazer com que Senada, a mulher, esposa e mãe de dois filhos, se recuse a procurar outros hospitais e ajudas alternativas (seu rosto, de uma tristeza ímpar, é inesquecível), Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho pode surpreender, sem, porém, abandonar o gosto amargo.

Em meio ao universo de recusas burocráticas, cabem as vias desesperadas do que seria "ilegal", mas nada condenável. Na câmera na mão documental de Tanovic fica o registro do abandono humano, impulsionado pelo fato de a família reviver na tela um episódio de sua própria vida.

A lenha de fogueira que abre e encerra o filme parece vir de uma necessidade simbólica de aquecer a frieza dessa existência. No final, a câmera fica de fora da casa, talvez por sensibilidade e respeito. Muito bonito.


Sonar (Echolot, Alemanha, 2013), de Athanasios Karanikolas

Completa perda de tempo. Este Sonar tem 77 minutos, mas morre em 20. Sobre amigos que se reúnem numa casa de campo para uma espécie de cerimônia de funeral e memória de um amigo suicida, é como se pegasse a dinâmica de um Para o Resto de Nossas Vidas (1992), lindo filme de Kenneth Branagh, e injetasse venenos de tédio.

Num pretenso "filme de arte", Karanikolas junta cenas ruins de jovens dormindo ou se pegando e... é basicamente isso. A deixa para abandonar a sessão é um plano com a câmera girando em torno de seu próprio eixo enquanto acompanha um rapaz tocando irritantemente um tipo de flauta.


Michael Kohlhaas (França/Alemanha, 2013), de Arnaud des Pallières

O elenco é bom: Mads Mikkelsen, Bruno Ganz, Denis Lavant (o grande ator do cineasta Leos Carax, razão de ser de seu último filme, Holy Motors), Sergi López... todos atores sólidos do cinema europeu moderno e contemporâneo.

No resumo do catálogo do Festival, a informação de que o diretor fora influenciado por três grandes obras na realização deste longa: Aguirre - A Cólera dos Deuses, de Werner Herzog; Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa; e Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky.

Terminada a sessão, fica o ponto de interrogação na cabeça e o constrangimento por tamanha pretensão, uma vez que sequer passa perto de qualquer um dos feitos convocados. Michael Kohlhaas, o filme, está mais para uma narrativa clássica sonolenta do que alegoria da humanidade ou uma obra a respeito dos princípios de honra, o que Pallières até tenta com algum esforço, sobretudo porque tem Mikkelsen em papel que já interpretou inúmeras vezes, a começar pelo recentíssimo e bem melhor O Amante da Rainha (2012), que cumpria seus objetivos se assumindo como melodrama e sem se julgar tão a sério.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Festival do Rio #1: Bastardos


A algumas horas do início oficial do Festival do Rio, consegui chegar a tempo de uma cabine de Bastardos (Les Salauds, 2013), de Claire Denis, cineasta de interesse e que estará no evento para pelo menos uma das sessões de seu filme.

Não é o primeiro de seus filmes que parece querer me abandonar de vez durante a sessão. Denis costuma me ganhar nos acréscimos, com encerramentos que me fazem repassar na cabeça tudo o que acabei de ver e, enfim, sentir se aquilo teve ou não alguma força. Minha Terra, África (White Material, 2009), seu bastante elogiado longa anterior, foi uma dessas experiências um tanto em branco, para não dizer aborrecida, sem efeito sobre mim, muito embora todos que conheço tenham respondido bem ao filme. Acontece.

No caso deste Bastardos, visto no típico ritmo já cansado de uma cabine matutina, o distanciamento de Denis, capaz de primar pela elegância numa cena de suicídio logo na abertura, também parecia ser testado pelo olhar recém amanhecido.

De maneiras distintas, uma mulher, Sarah (Julie Bataille) perde seu marido, seu negócio e, aparentemente, sua filha. Ela responsabiliza um executivo rico e chama seu irmão, Marco (Vincent Lindon), um capitão naval, para que possa ajudá-la como puder. A escolha dessa profissão de Marco é muito curiosa e dá a entender que tenha sido feita por questões de sedução, uma vez que sua estratégia é se envolver com Raphaëlle (Chiara Mastroianni), relação que pode levá-lo a algumas respostas.

A assinatura visual de Marco é uma camisa branca de 300 euros que parece perfeita para realçar suas costas largas enquanto ajusta uma bicicleta, sendo observado com atenção por Raphaëlle. Isso é filmado com muita naturalidade por Denis, tornando fácil a aceitação da sensualidade casual e ao mesmo tempo objetiva desse homem de mais de 50 anos. Da mesma forma, o tesão é filmado de verdade, e não há a menor preocupação, muito menos forçação, em deixar no ar se tal relacionamento se entregaria a dúvidas românticas ou se apenas seria o que seria. Denis sabe ser simples, compreende a seriedade do material e sabe o valor que isso tem. Qualquer traço de romance é descartado com a frieza de um golpe pelas costas, sem brincadeiras.

Num mix de fatalidade familiar e investigação pessoal que parece pisar em terrenos já visitados por filmes como Hardcore (1979), de Paul Schrader, e mesmo o Festa de Família (Festen, 1999) de Thomas Vinterberg, Bastardos ainda nos sugere o tempo todo o que pode ser sua grande pegada: a incômoda impressão de que há algo mais pesado por trás, a ser visualmente entregue nos momentos certos, o que de fato acontece, sobretudo no desfecho eletro pervertido que, entre closes genitais e espigas de milho, autentica a feiura e o lamento e permite colar o filme na cabeça até o final do dia, no mínimo.

Sem Dor, Sem Ganho


A finalização de compromissos acadêmicos envolvendo o mestrado (ironicamente, você faz um mestrado sobre cinema e passa dois anos sem assistir metade do que era acostumado a assistir) fez com que eu pulasse a coluna da semana passada. Para retornar, desviei de Smurfs 2, de Percy Jackson, dos especiais da Globo e do novo Adam Sandler. Dizem que este outro filme do Wolverine é OK, longe de ser desastroso como o primeiro, mas acabei caindo no Sem Dor, Sem Ganho, o que não é menos questionável, porque Michael Bay é uma espécie de nêmesis do cinema.
 
Alguém foi ver? É um filme esbelto se comparado aos padrões de destruição de Bay, diretor de blockbuster por excelência, nos piores sentidos possíveis. Emenda um sucesso atrás do outro com produtos gigantescos e fabricados em ritmo de rolo compressor. Curiosamente, este aqui parece ficar num nem-lá-nem-cá, talvez incapaz de agradar logo quem espera o tipo de quebradeira arrogante que fez toda sua carreira, o que não significa criar uma distância saudável de sua filmografia anterior, porque, no fundo (e nem tão fundo assim), a matemática da estetização publicitária e videoclíptica permanece igualmente onipresente, como se toda imagem tivesse de ser dotada de um poder de anúncio.
 
Acontece que Sem Dor, Sem Ganho é um tanto metido a esperto, sugerindo que Bay possa ter se aventurado pelo satírico, uma certa gracinha em torno do estilo de vida competitivo dos EUA e das pessoas que lá habitam. O filme se passa nos anos 1990 e acompanha três marombados (Mark Wahlberg, Dwayne Johnson e Anthony Mackie) insatisfeitos com o que o "sonho americano" tem lhes reservado até então, levando-os a aplicar um golpe num judeu ricaço.
 
Por um instante, há a impressão de que o longa pode realmente funcionar e que Bay possa surpreender numa paródia de si mesmo, o que logo se revela uma promessa vã. O histórico de Bay é um baita testamento contrário, a ponto de, como numa rota inversa, fazer do sujeito um autor, munido de estilo reconhecível e assinaturas fáceis. Por pior que seja, você bate o olho em segundos de imagem e entende que aquilo só poderia vir dele (ainda assim, sinto muito, não há debate sobre vulgar auteurism que o salve). Eis um cineasta que faz jus ao clichê pejorativo do uso "hollywoodiano".
 
Por trás da aparente intelectualidade, não demora a aparecer o Bay de sempre, da estereotipação de estrangeiros e suas culturas, das piadas adultescentes (uma  delas envolve pelos pubianos e poderia ter saído da série Todo Mundo em Pânico) e de toda uma visão superficial de mundo que parece usar a tela de cinema para atestar aquele mapa "Como os EUA enxergam o mundo" que tanto circula por nossas timelines virtuais.
 
Na melhor das hipóteses, Sem Dor, Sem Ganho sugere um desperdício, sendo difícil não pensar seu material nas mãos de Shane Black (roteirista de Máquina Mortífera, dirigiu Beijos e Tiros e, recentemente, o terceiro Homem de Ferro), para nos contentarmos com a lembrança mais óbvia. Porque no filme de Bay eu vejo Dwayne Johnson (que tem todo um carisma a protegê-lo) cheirado de pó assando mãos humanas decepadas no meio da rua e só me passa pela cabeça que o tom de "cena divertida" é tão errado que sobra apenas o mau gosto moleque desse diretor que, numa estranha noção de diversão, já colocou defuntos como obstáculos numa perseguição automobilística e atropelou uma favela inteira em Bad Boys 2 (2003), mas enxergo a mesma cena sendo polida por Black aos moldes de inspirada acidez.
 
O que há de satírico é rapidamente soterrado pela forte sensação de que Bay faz tudo isso com toda a seriedade que sempre fez, como nas câmeras lentas por qualquer coisa. Alguém apenas salta de uma van e a imagem é logo sobrecarregada de lentidão, ou então um personagem leva um choque na cabeça em close enquanto o slow motion garante, com algo de cômico, o detalhe do processo de dor da vítima. Mais uma vez, o histórico de Bay parece nos dizer que ele acredita em sua ação, e que isso seria interessante somente pela plasticidade em si, não muito diferente desses replays modernos dos jogos de futebol.
 
Mais um filme para vender TVs LED de muitas polegadas em frente aos saldões.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Pacific Rim



Desde os trailers de Pacific Rim ("Círculo de Fogo" aqui no Brasil, 2013), um amigo dizia que Guillermo del Toro poderia estar oferecendo uma espécie de resposta a Transformers, a coisa mais insuportável de todas as coisas insuportáveis já feitas por Michael Bay. A comparação, de fato, procede.

Lembro de quando vi Transformers 2 (2009). A trilogia é um amontoado de barulho e destruição aleatória, a parte 2 sendo o pior deles. Ao final da sessão, poucas poltronas à frente levantava um garoto muito empolgado, aplaudindo. Eu me sentia como se tivesse saído de uma coqueteleira, mas o menino parecia ter se divertido, talvez porque a lógica do "quanto mais rápido, mais veloz" esteja cada vez mais presente e mais associada a uma ideia de diversão, a ponto de, hoje em dia, espectadores não conseguirem assistir a um filme no cinema sem parar para checar a telinha do smarphone vez ou outra. Se o blockbuster não tiver uma velocidade cretina, o sujeito vai dar uma checadinha no Facebook. Esta é a impressão que se tem durante um filme de Bay, que lhe enfia uma colher de grude antes que se possa ter qualquer noção de sabor da colherada anterior. É só ver a picotagem alucinada de suas montagens, que, sem demora, não se importam com qualquer concepção de sentido. É anestesiante.

No filme de del Toro, por sua vez, a Terra é invadida por monstros gigantescos de outra dimensão e precisa investir em robôs colossais para sobreviver aos ataques. Os clichês surgem quase como bolas cantadas num jogo de bingo, pois são evidentes e aparecem até completar uma cartela de obviedades que vão desde a superação de traumas do passado ao desfecho tipicamente feliz com o casal sobrevivente. Os personagens parecem se relacionar na dinâmica de uma produção highschool - há um maromba praticante de bullying, vejam só -, calculados na matemática mais básica. Até aí, pouco se diferencia de qualquer produção de Jerry Bruckheimer.

A sensação de resposta não só aos Transformers, mas de toda essa incansável quebradeira generalizada, em que a vontade de mostrar a capacidade de acabar com cidades inteiras parece ser o objetivo final dos atuais blockbusters hollywoodianos (GI Joe, Os Vingadores, O Homem de Aço...), vem, primeiramente, de planos mais longos que o costume para esse tipo de produção, evitando a mania da montagem esbaforida do corta-corta-corta antes que se passem dois ou três segundos de alguma imagem lembrável.

O que del Toro faz é filmar com algum encanto, um deslumbramento juvenil. O ângulo geralmente baixo tem algo do olhar de criança, um pouco como a mágica aparição do brontossauro em Jurassic Park (1993), de Steven Spielberg. Sua câmera é contemplativa, de alguma forma fascinada por esses mechas humanoides e criaturas oriundas de um universo que revela o eterno flerte entre o cineasta e a obra de Lovecraft.

Mesmo a ação em si, que presume uma destruição urbana colossal (são gigantes, afinal), parece ser mais focada. Parte dela ocorre em pleno mar, e, quando em meio a ruas, prédios e civilização, o movimento de "corpos" se impõe, às vezes sugerindo que Pacific Rim seria uma espécie de confronto entre gladiadores, até mais que aquele recente Gigantes de Aço (2011). A imagem de um robô arrastando um navio como se fosse um porrete é exemplo muito forte nesse sentido.

A cena da invasão de Sydney, na Austrália, é particularmente interessante. Num plano muito aberto, percebe-se que o monstro que a ataca é de alguma forma parecido com a Opera House, o grande centro de artes da cidade. Essas criaturas, assim como as máquinas robóticas, são elas próprias filmadas como construções arquitetônicas. O que temos aqui é uma aposta completa no apuro visual, sem receio, inclusive, de se prestar a coloridos fluorescentes.

Temos aqui, enfim, um brinquedão de tato e visão. Na sua raiz, está também uma cara homenagem ao (sub)gênero de monstros gigantes, ninho de Godzillas e Gargantuas, empenhadas tosquices dos anos 50 e 60. Não deixa de ser um blockbuster, e um desses sem muito fôlego industrial, aquém de suas expectativas de sucesso (custou 180 milhões de dólares, tem arrecadado, até então, mais ou menos o dobro, pouco para os padrões). O prazer está nos momentos em que del Toro acredita que até para fazer quebra-quebra é necessário um mínimo de embelezamento.

Achei um barato e não faço ideia de como aquele garoto da sessão de Transformers 2 reagiria ao filme.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Passion, de Brian De Palma



Daí que vi Passion (2012), novo do Brian De Palma, que não fazia nada desde Redacted (2007), obra potente, terror do real e muito bem sincronizado com o interesse de De Palma pelos aparatos imagéticos, algo que ele também tenta aqui, abrindo seu novo longa com duas publicitárias (Rachel McAdams e Noomi Rapace) trabalhando em cima de um Mac filmado quase que ostensivamente.

De Palma reúne aqui muita coisa de sua obra, como se tentasse retornar a um território familiar, o das fantasias (sexuais e literais), dos assassinatos cortantes, do sexo/sexualidade como forma de controle (ou descontrole), do suspense que, de tão delineado, parece ter sido costurado em seda. A imagem de uma loira de óculos escuros saindo do elevador no meio de uma das sequências características do cineasta, em que o tempo se permite ficar ligeiramente suspenso para que as ações sejam catapultadas pela mise en scène, sugere uma espécie de travestismo invertido da grande cena de Vestida para Matar (1980).

A bem da verdade, Passion por várias vezes parece adotar o tom de uma publicidade ruim ou de um soft porn que jamais se atreve a ir além do ensaio (o que é aquele apartamento de McAdams e a garrafa de bebida servida pela atriz senão cenário e objeto de uma sensualidade mascarada?), o tipo de energia farsesca que este autor costuma transformar em belas peças de afetação, como se fossem porcelanas folhetinescas. Dália Negra (2006), se lembro bem, seguia os passos do noir tradicional, com pequeninas subversões, até se entregar a inspiradíssimos excessos novelescos num show muito particular de Fiona Shaw.

A história tem Rapace como uma espécie de auxiliar de McAdams, duas moças que acabam por disputar status, reconhecimento e posições na grande agência de publicidade em que trabalham. O espaço para punhaladas nas costas é amplo por aqui.

O filme cresce de alguma maneira quando esse enredo maquiado de A Malvada (Joseph L. Mankiewicz, 1950) decide cravar as unhas no expressionismo e se comportar como um quadro torto na parede. No entanto, com sua pegada lesbo, sua incursão nos sonhos, filmagens europeias (Berlim e, no mínimo, co-produzido por franceses), a impressão final é de que talvez Passion seja um siamês de Femme Fatale (2002), embora careça daquela alegria toda para dissimular e enganar.

De Palma já fez piadas melhores, sem dúvida. O próprio Femme Fatale, seu melhor em muitos anos, é um jogo perfeito. O recurso da tela dividida e a trilha de Pino Donaggio, parceiro de alguns dos De Palmas mais atrevidos, a começar por Carrie (1976), soam como lembranças um tanto distantes.

De todo modo, parece haver nesse conjunto a capacidade de revelar um cinema de memória. Passion está mais para uma saudade.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Halloween (1978)



O medo do lado de fora

Coloque Halloween, com seus 35 anos de rodagem, numa sala de cinema, imagem boa e som no talo certo, e o filme ainda se mostra calibrado de sustos e agonia.

O deslize da câmera Panavision Panaglide (na época, uma competidora da steadicam*) pelas ruas da vizinhança gera toda a ansiedade e estranheza de que precisamos. Uma inquietação, sem saber quando Michael Myers aparecerá pelo extracampo, por este ou aquele lado do enquadramento, pois, tecnicamente, isso pode acontecer a qualquer momento.

De fato, acontece menos do que se espera, pois é esta espera, muitas vezes frustrada (no lugar do assassino, o que surge no canto do quadro pode ser apenas uma árvore ou um arbusto decorativo do jardim), que nos coloca ali dentro, sobretudo porque John Carpenter abre seu filme com aquele plano-sequência subjetivo do então garoto Myers, a câmera no lugar de seu olhar, prestes a cometer seu primeiro assassinato dentro de sua própria casa e ser enviado ao manicômio da cidade.

Visto hoje, no entanto, Halloween também gera outras reações. É um filme com seus momentos de humor (não seria Carpenter se assim não fosse), embora não seja um filme engraçado. Foi exibido no Cine Cultura na última sexta-feira (26/7) pela Mostra John Carpenter, sessão em que risadas podiam ser detectadas quase na mesma medida que sacolejos de corpos assustados em suas poltronas.

Parte desses risos vem do olhar treinado de um público que se habituou a décadas de slashers, uma coqueluche de jovens fugindo de assassinos diversos, todos lançados pelo padrão estabelecido em Halloween. Vieram Jason e Freddy Krueger, que, ao lado de Myers, moveram séries intermináveis. Wes Craven e seu A Hora do Pesadelo (1984) tinham sua inventividade, é verdade, mas o culto ao tosco Sexta-Feira 13, surgido dois anos depois do longa de Carpenter (cuja sequência sairia em 1981), sempre me pareceu um abraço desesperado de uma audiência sedenta por outra história de monstro humano psicótico.

A cartilha desse tipo de produção foi desnudada por Craven em Pânico (1996), inspirada zoação com o slasher movie e ao mesmo tempo um bom exemplar do gênero, tendo ele mesmo suas três continuações e o direito a ser parodiado por outra série, Todo Mundo em Pânico (2000), que logo se tornou o Zorra Total dos filmes de terror.

Num estágio em que paródias já parodiam paródias, certas técnicas e elementos presentes em Halloween já viraram uma espécie de cacoete há anos. Jamie Lee Curtis olha pela janela, vê Myers, desvia o olhar, depois olha de novo e percebe que ele desapareceu. No cinema de hoje tal recurso é mera tabuada, mas o mais importante talvez seja a compreensão daquele personagem como um personagem cinematográfico, e, portanto, perfeitamente capaz de, embora humano, ser sobre-humano.

Convém lembrar que o contexto da desumanização sempre foi muito recorrente em Carpenter. Aqui, o psiquiatra interpretado por Donald Pleasence entrega tudo logo de cara, nas primeira cenas: "Ele não é um homem", e, portanto, certas regras não se aplicam a ele.

No colégio, a olhada de Jamie Lee Curtis pela janela e o sumiço de Myers são eventos separados por cortes, montados a partir do momento em que ela desvia o olhar para outra direção. Cenas à frente, ela perceberá a presença do assassino através da janela de seu quarto: um plano mostra Curtis, corta para Myers do lado de fora da casa, corta novamente para Curtis, que desta vez não desvia o olhar, e volta para a imagem fora da casa, agora sem a presença de Myers, que sumira diante dos olhos da garota.

Carpenter não precisa mais que a vítima olhe para outro lado para fazer com que a ameaça desapareça no plano seguinte: é irreal, é absurdo, é o que o cinema pode fazer, e Halloween começa a mesclar de maneira brilhante o medo mais íntimo, daquilo que espreita nos jardins, percorre calçadas, invade casas, ataca com faca de cozinha (e é confrontado com um cabide de roupas!), com o que é fantástico, "a coisa" (o The Thing original de 1951 é exibido na TV durante uma cena) inexplicável, o "bicho-papão" em sua versão adulta.

Sessões atuais de Halloween, como a da Mostra, podem revelar 30 anos de nossa experiência com um gênero, e se o filme parece atingir um novo grau de divertimento, é porque as regras do jogo estavam lá desde o princípio, e, o que é melhor, muito expostas. É pela janela, tanto a dos cômodos quanto a da tela de cinema, que a existência de Michael Myers tem seu lugar.

domingo, 21 de julho de 2013

O Homem de Aço, o retorno


"Não me aprisione em caralhinhos voadores!"

O amigo André de Leones foi fisgado por O Homem de Aço de outra maneira, orientado por outra bússola. Menos alien, menos Cristo, menos paternalices, mais A República de Platão. É verdade, e Snyder nem esconde: tá lá o menino Clark com Platão na mão, apanhando. Garoto inteligente, precoce, "alien" em outros sentidos, por que não?

Daí logo me pergunto: por que essa referência, tão nítida quanto o momento na capela, e talvez a mais interessante de todas, inclusive em sua pretensão, não capturou meu interesse a ponto de pensar melhor a respeito? Porque a leitura de um filme é, em boa parte, culpa nossa: somos nutridos por aquilo que nos é permitido ver, tanto no denotativo quanto no conotativo, e elaboramos algo a partir disso.

A bem da verdade, é tudo muito interessante, em princípio; ou, melhor dizendo, em termos de história. Uma maior compreensão do fracasso de Krypton e, consequentemente, da origem desse super-homem; uma pincelada política mais acentuada, que em nada deve a exemplares de nossas vidas; o contexto alienígena, que, cinematograficamente, na premissa deste filme, era o que mais me chamava atenção; enfim, uma série de questões curiosas e promissoras, suficientes para distinguir este Superman dos demais.

Parece haver muita ambição ali, não só no sentido de produção multimilionária, mas no que diz respeito a causar tensões em relação ao que se espera de um filme do Superman. A premissa dedicada aos aspectos alienígenas, por vezes beirando um filme de gênero (a cena do apagão é muito boa, a melhor), me parece a mais forte delas, mas não a única, certamente.

Temos aqui um Superman desafiado a matar, momento meio curto-circuito para um público habituado ao histórico de um super-herói que prima por ser correto, representante "do bem", e não vejo como isso não ser produtivo.

Por fim, a esperança de que a civilização terráquea não se deixe implodir como Krypton, a começar por suas posturas políticas, muito embora Washington e a política local sejam colocadas a distância, como que poupadas. No cenário terrestre, a "presença" do Governo não cruza a linha da representação militar. Não é pouco? Lembro, por sinal, de como, em uma linha de diálogo, Superman Returns expunha os efeitos que o retorno daquele deus poderia causar na bolsa de valores, um tipo de preocupação muito breve, mas que ajudava a pulsar o universo do filme.

Meu maior problema, no entanto, é com o quilate insosso das imagens que dão corpo a tudo isso, pontos de partida distintos cedendo lugar a protocolos de um blockbuster qualquer, sequência por sequência: um procedimento padrão de velocidade, quebradeira e barulho. Quando exibido em TV, o espectador que pegar em torno dos 40 minutos finais pode levar algum tempo para perceber que não é G.I. Joe (2009).

Clark lê Platão, e meu amigo André está certo em observar que A República tá lá, bem presente, mas ao mesmo tempo a direção de Snyder me lembra o bully, um entre tantos outros socadores de fuças. Repassando o longa na minha cabeça - exercício que nunca é ruim de se fazer, pelo contrário - penso que talvez seja o caso de uma boa história mal contada. Frustrante.

sábado, 20 de julho de 2013

O Homem de Aço



Herói de brinquedo

Até então, Hollywood nunca dedicou maiores atenções a esse lado meio sci-fi presente em Superman. No seu melhor e no seu pior, a quadrilogia com Christopher Reeve trazia um clássico filme de super-herói, sem mais nem menos, enquanto o Superman Returns (2006) de Bryan Singer, uma bonita homenagem (embora financeiramente fracassada, tanto é que estamos aqui, de novo), pegava o personagem pelo seu lado de entidade, espécie de deus vigilante da Terra.

A ideia de um Super-Homem focado no aspecto alien da coisa toda é algo de interesse, sobretudo para uma segunda tentativa de renovar a franquia, mas este O Homem de Aço parece ter virado um filme de invasão alienígena dos mais destrambelhados. É escrito por David S. Goyer e produzido por Christopher Nolan, dupla bem-sucedida no novo Batman, e dirigido por Zack Snyder (300Watchmen), que deve ter escrito "filmo quadrinhos" em seu cartão profissional e no perfil do LinkedIn, sendo esta sua terceira adaptação de HQ. Na faixa de comentários do DVD de Madrugada dos Mortos (2004), seu primeiro (e bem bom) longa, Snyder não economiza no elogio "rockstar!", o que ilustra bem o tipo de empolgação do sujeito.

São, basicamente, duas horas do que seria uma espécie de Superman Begins, um tanto desviado de sua mitologia (a relação com Lois é de outra nascente) ou explicando parte dela (o "S" que não é um "S", por exemplo), e o desfecho só confirma essa sensação de termos acompanhado um longo prelúdio. É, enfim, a história de um extraterrestre que vem parar na Terra. Um pouco como E.T. (1982), como O Enigma de Outro Mundo (1982), como Starman (1984), como O Homem que Veio do Espaço (1976), só que esse homem é o Super-Homem, e Snyder, muito afobado em mostrar o quão nerd seu filme pode ser.

O Homem de Aço começa no planeta Krypton pouco antes de sua destruição. É uma introdução ao herói maior do que a que estamos acostumados e que mais parece um sétimo episódio de Star Wars, com cenas de um Jor-El (Russell Crowe) atlético montado num bicho alado gigante. O filme não fica mais brega que isso, o que, por um lado, talvez seja até bom.

Após enviar seu filho para a Terra, Jor-El é assassinado por Zod (Michael Shannon, visto por Hollywood como um especialista em papel de doido, e, de fato, muito bom nisso), general militar que planeja um Golpe. A traição é punida com banimento quase eterno, sendo Zod e seus seguidores aprisionados em capsulas fálicas e lançados no espaço. Não adianta muita coisa para nenhum dos personagens: Zod e seus soldados escapam e iniciam a procura por um já adulto Kal-El, transformado pela atmosfera terrestre num super-humano, e Jor-El vive em espírito, auxiliando quando necessário, indicando o que fazer, onde ir e onde clicar, como se fosse o clipe de ajuda do Word.

A julgar pelo sucesso de alguns blockbusters recentes, o espectador ainda pode começar a lembrar de Prometeus (2012) e Guerra dos Mundos (2005) na aparição de algumas tecnologias alien e se sentir numa sessão esquizofrênica, sem uma personalidade muito própria, exceto por Henry Cavill, um Superman de olhos humildes. Essa simplicidade no olhar é mais reveladora que o evidente paralelo com Jesus Cristo (Clark numa capela, vitral cristão ao fundo...) ou que os esforços de suas mensagens paternas, sugerindo que Cavill talvez merecesse um filme melhor.

Nolan e Goyer, que procuraram revestir um homem-morcego com o máximo de credibilidade, parecem ter sido convocados como cães-guias de Snyder, que abandona aquele seu típico excesso de câmera lenta regada a hormônios adolescentes e filma seu Superman quase todo via calculada câmera na mão (o compositor Hans Zimmer também vem no pacote Nolan de produção, cria um tema até elegante, mas o resto da trilha é qualquer coisa). Um ou outro zoom pode ser percebido aqui e ali, em cenas de voo de naves ou do protagonista, tal qual um "cinegrafista amador" (às vezes é um amador que teria de estar num helicóptero...) captando aquilo, um tipo de imagem que surge espremida entre o que realmente parece interessar na direção, que é colocar o espectador na garupa desse homem que voa e aumentar a velocidade, como se ele fosse um brinquedo. Convém lembrar que tanto com Reeve quanto com Brandon Routh, os heróis anteriores, esse tipo de coisa tendia mais para o onírico, acentuando o desejo de uma habilidade sobre-humana.

Ao fim duma sessão exaustiva, fica a impressão de algo desengonçado, desastrado, em que as puxadas para o "real" são traídas a todo instante por um atropelamento de efeitos especiais que deixa tudo com cara de filme de ação genérico, onde a ordem é quebrar e fazer barulho.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

11ª Mostra ABD Cine Goiás



O FICA 2013 marcou uma conquista para os realizadores goianos. Após dez edições, a Mostra ABD Cine Goiás, dedicada exclusivamente ao cinema feito no estado, foi exibida no Cine Teatro São Joaquim, mesma sala da Competitiva ambiental, deixando no passado aquela sensação de improviso que eram as projeções no chamado Cinemão.

Na matemática do golpe de vista, acredito que a Mostra goiana tenha registrado o maior índice de público deste festival, que pôde conferir animações, documentários, ficções e filmes experimentais. O conjunto de 12 produções foi selecionado por membros da ABD de Pernambuco e julgado pelo júri composto pela atriz Helena Ignez, pelo compositor Guilherme Vaz e pela cineasta Juliana Rojas. As exibições foram divididas em três dias.

Dia #1

A Vida não Vive, de Amarildo Pessoa e Kátia Jacarandá

Embora classificado como animação, muita gente parece ter se perguntado o porquê de A Vida não Vive não ter competido entre os experimentais. O curta transborda as formações de seus realizadores, o filósofo Amarildo Pessoa e a artista plástica Kátia Jacarandá. Abre citando a obra Minima Moralia e dedica seus 10 minutos ao que mais parece ser um ensaio determinado a ilustrar as muitas tijoladas adornianas, resultando num conjunto de imagens afobadas que certamente tentam atingir alguma perturbação. Montagens com larvas, bovinos marcados e decapitados, humanos e plásticos comparados e mais uma infinidade de coisas arremessadas ao espectador tendem a gerar sensações de angústia, por um lado reforçadas pela trilha de Villa-Lobos, mas, por outro, dispersadas pela redundância em repetir os trechos do filósofo alemão ou fincar suas palavras e frases de força aqui e ali nos cantos da tela, como se o próprio fluxo imagético, já associado à epígrafe, não fosse suficiente.

A Vida não Vive foi escolhida como Melhor Animação.

Gustav Ritter - uma Arte, uma Vida, de Ângelo Lima

Único longa presente na Mostra ABD, Gustav Ritter - uma Arte, uma Vida se propõe a homenagear a... earmmm... "arte e vida" de Gustav Ritter, arquiteto e artista plástico alemão muito influente em Goiânia, onde se radicou no final dos anos 1940.

Documentário de quase meia-hora, segue uma espécie de tabuada em que os depoimentos de familiares, amigos, colegas e artistas são insistentemente acompanhados por filmagens que acabam por ilustrar quase tudo o que é dito: um entrevistado fala de flores, e o filme corta para imagens de flores; outro menciona algo sobre barrancos, e surge a filmagem de um barranco; "...para não espantar os pássaros", diz alguém, e já sabemos que a cena de pássaros alçando voo aparecerá logo em seguida.

O filme é quase todo assim, esse esquema de filmagens caroneiras da falação sendo rapidamente denunciado pela montagem previsível, um cansaço também observado em O Mundo é uma Charge e Inacabado - o Teatro e a Cidade, outros dois documentários exibidos na Mostra, totalizando um trio que não parece ir muito além de artigos da Wikipédia. São poucas as imagens de arquivo que despertam algum interesse (como aquelas com o próprio Ritter) e as filmagens na Alemanha parecem sugerir que a visita ao país não tenha durado mais que duas horas. Há também uma estranha aparição do próprio diretor carregando a base de suporte para uma das obras de Ritter num salão de exposição, presença um tanto forçada dentro do didatismo do longa.

Diante de um material riquíssimo a ser explorado, fica a incômoda sensação de um documentário ao mesmo tempo apressado e ocioso.

De todo modo, o filme foi premiado como Melhor Documentário e também Melhor Fotografia, sendo este um grande mistério pra mim.


Dia #2

Bilhete, de Matheus Leandro

Curta anapolino vencedor do III Anápolis Festival de Cinema, Bilhete conta a história de um garoto que mora em casa sozinho e se comunica com sua mãe ausente através de constante troca de bilhetes.

O filme é leve, medindo muito bem o que há de cômico e melancólico nesse pequeno conto de carência e amor familiar. É realizado em vídeo e visualmente surpreendente com o pouco que tem. Talvez peque por alguma falta de confiança, como ao colocar em áudio o que pode ser lido com clareza nos pequenos recados manuscritos, que são curtos e já embalados por uma trilha sonora, pregados em locais diversos da casa.

Quem já viu outros curtas anapolinos sabe do quanto é um cenário ainda bem deficiente na compreensão das linguagens mais básicas do fazer cinema, elementos importantes com os quais Bilhete não parece ter muitos problemas, com boa edição para o timing cômico e até uma montagem através da mudança de foco (quando o garoto vira seu olhar para o porco-cofrinho).

A versão exibida em Anápolis era um pouco maior, trazendo um plano final longo demais, em que a mãe cantava "Leãozinho" quase inteira. A edição mais curta, conferida no FICA, é bem melhor.

Bilhete foi premiado em Direção de Arte e os atores Rafael Vinícius e Rainan Pires levaram a categoria de Melhor Ator.

Faroeste - um Autêntico Western, de Wesley Rodrigues

Que coisa mais bonita, esse Faroeste de Wesley Rodrigues, que banhou com uma sinfonia de cores a sala quase lotada do São Joaquim. Rodrigues pinta o cangaço e o sertão, cenários que fazem o nosso faroeste (pensemos em Baile Perfumado por um instante), através de um conto de vingança que também tem muito do oriente.

A história de um urubu que desde criança se torna íntimo da espingarda e se transforma no assassino de vilas sertanejos desfila na tela com encantadora fluidez (atenção para a movimentação do sol no filme), como se a animação fosse criada em tempo real, bem ali, diante dos olhos de todos. Essa inventividade parece colher bastante plantio de Miyazaki, influência assumida na composição da personagem da Morte, enquanto a caracterização tão forte do caçador de recompensas Sebastião poderia colocá-lo nas páginas de Stan Sakai.

Esse mix entre ocidente e oriente, tão próximos em certos temas e tão díspares em plasticidade, costuma render obras de interesse no cinema. O diálogo travado entre Kurosawa/Yojimbo e Sergio Leone/Por um Punhado de Dólares já está há muito eternizado, e o Kill Bill de Tarantino tem ocupado a maior referência nesse sentido na última década. O curta de Rodrigues brilha nesse universo da mistura, e sem abrir mão do que talvez seja o que possui de mais autêntico, que é trazer parte de uma brasilidade muito característica.

Há suspeitas de que Faroeste - um Autêntico Western tenha peito pra levar prêmios Brasil e mundo afora. Na Mostra ABD, era tida como favorita absoluta em Animação. Levou apenas trilha sonora, que o compositor Guilherme Vaz disse lembrar Frank Zappa.

O Mundo é uma Charge, de Ranulfo Borges

O curta de Borges, extremamente didático, se comporta como uma videoaula rasteira, partindo do princípio de que ninguém entende o que é uma charge. Alguns chargistas são entrevistados, falam de seus trabalhos, mas ao fim dos 15 minutos o espectador pode se perguntar se aquilo não era um documentário sobre Jorge Braga, tamanha a predominância de seus depoimentos e material. Cerca de dois terços da duração trazem Braga ou uma interminável exibição de suas charges, expostas numa animação que simula mesa de desenho e viradas de página (tem até barulhinho, não se preocupem).

Existe aquela pergunta, que muitos de nós às vezes fazemos: por que fazer um filme e não escrever um livro? Em relação a O Mundo é uma Charge, a pergunta é: por que não fazer um catálogo em vez de um filme?

Inacabado - o Teatro e a Cidade, de Dalton Costa

O média-metragem de Dalton Costa possui um conjunto de pesquisa mais sólido que o de Ângelo Lima, mas é também vítima do bê-a-bá documental muito centrado no falatório informativo, sem que se crie ou busque um eixo em torno daquilo. Por vezes o filme até ameaça dedicar sua força ao teatrólogo Otavinho e sua relação com o teatro, o relacionamento entre um homem e um espaço que condensa parte da história de uma cidade.

No entanto, há um peso de cobertura jornalística do todo que cede ao abre-e-fecha que tanto acomete o chamado Teatro Inacabado, fadado ao descaso por decisões humanas. É curioso como pessoas criam vínculos com lugares, sobretudo espaços culturais, e o documentário de Costa me parece carecer desse tom mais pessoal.

p.s.: o filme é dividido em capítulos, o que não é um problema, mas aquela buzininha que anuncia um novo assunto é um tanto irritante, não?


Dia #3

Vaca Louca, de Waldemar Junior

Típico exemplar de militância vegetariana. São três minutos de imagens C*H*O*C*A*N*T*E*S de bovinos destinados ao abate. É um filme direto, cuja clara missão é mostrar o quanto aquilo é horrível, experiência visual desagradável que, apelando para a sensibilidade do espectador, acredita ser capaz de fazer com que alguém desista de consumir carne. Caso consigam, são bem-sucedidos, mas o próprio FICA 2013 contou com exemplos mais interessantes para o mesmo objetivo, como A Galinha que Burlou o Sistema, de Quico Meirelles, vencedor de melhor curta-metragem na Competitiva.

Como se não bastasse, um jogo bobo de palavras encerra o filme, que fica com cara de post compartilhado no Facebook.

Itauçú, do Grupo EmpreZa

Outro experimental de três minutos e vencedor da categoria, o curta do Grupo EmpreZa me deixou sem saber exatamente o que pensar a respeito, o que, em se tratando de, como o próprio nome diz, um experimento, penso ser interessante.

Ao apresentar o filme, dois integrantes definiram Itauçú como algo indefinido, uma coisa, e o propósito dessas coisas talvez seja buscar sensações de difícil classificação. A bem da verdade, é o registro de uma performance do Grupo EmpreZa. A câmera é única, localizada num canto alto de um salão, capturando todo o ambiente. Na projeção, as imagens são aceleradas, técnica fotográfica. É minimamente curioso na medida em que a performance é segundo plano, e a movimentação daquelas pessoas que se juntam para prestigiar "estranhezas", a ocupação do espaço por um determinado tempo, tende a virar um número performático em si.

História de Guerra, de Rildo Farias de Sousa

Animação curtinha (sete minutos) e esforçada sobre, basicamente, um guerreiro em "violento" confronto com inimigos e algumas breves e simplórias reflexões... existenciais? Contexto medieval e influências visuais de animes de ação sugerem não mais que a ilustração de uma cena de RPG. Breve e esquecível.

Atrás da História (ou no Coração do Filme), de Jarleo Barbosa

O desafio atual de Jarleo Barbosa - e talvez da produtora Panaceia - é o de superar seu primeiro curta, Julie, Agosto, Setembro, trabalho que também inaugura o que já me parece ser uma espécie de zona de conforto destes realizadores, cujos curtas são dedicados a uma visão fofinha de mundo. Talvez seja de fato um objetivo muito concreto da produtora, mas ao mesmo tempo não é essa a hora mais apropriada para os riscos, em que a metragem é curta e a idade ainda soa como eterna?

Esse Atrás da História também possui esse aspecto cafuné, mas tem premissa interessante, que é de contar a história pela perspectiva do próprio filme, que procura sua mocinha. Essa busca ocorre pelas ruas Goiânia, geralmente no centro, e seus interesses românticos costumam ser moças que parecem ter saído de um catálogo de roupas classe média, embora brotem no centro da cidade. É uma caracterização que particularmente me soa estranha, pois são aparições deslocadas para o olhar de uma câmera que passa a impressão de reconhecer aquele espaço urbano como seu, cidade existente e de fato vivida. Uma das garotas surge no alto dum morro distante como se tivesse saído do shopping para um ensaio fotográfico.

De qualquer forma, o filme de Jarleo é muito capaz de se reconhecer como produção, como ilusão, e, portanto, como linguagem. Na visão subjetiva da câmera, o curta procura mocinhas em prédios e praças, toma porre em bar e anda trôpego pela calçada (Smack My Bitch Up, clipe do Prodigy, é lembrança certa), perdendo o foco na bebedeira. Sendo assim, ainda que no risco de cair num argumento meramente fetichista, me parece fazer grande diferença suas exibições em película, aquelas pequenas tremulações e pequenos desfoques provenientes do rolo de filme instaurando sensações de que há algo vivo ali na tela. Para um curta realizado a partir do ponto de vista do filme (mesmo com narração em terceira pessoa), e numa época em que tudo é digital e arquivo virtual, este filme existir materialmente no plano real talvez seja essencial. Caso contrário, o curta poderia ser encarado apenas como uma brincadeira.

Atrás da História foi premiado nas categorias de Melhor Atriz (Salma Jô), Melhor Roteiro e Melhor Som.


O que Aprendi com Meu Pai, de Getúlio Ribeiro


O Que Aprendi com Meu Pai foi realizado como TCC da faculdade. Getúlio Ribeiro é estudante de audiovisual na UEG e talvez seja, ao lado de Maurélio Toscano (Boiúna, exibido na Competitiva), o nome mais promissor entre os realizadores da ala jovem da produção goiana.

Seu primeiro curta, Longe de Casa, sobre dois rapazes que observam um corpo de mulher estirado ao sol em uma estação de ônibus interiorana, me lembrava algo de teatro beckettiano, que depois descobri não ser intencional, o que não faz diferença, pois era uma lembrança que deixava tudo muito interessante.

Neste novo trabalho, há aquela bonita sensação de ver cinema a cada plano muito bem pensado e montado. Temos aqui um curta que não se intimida com a tela grande, pelo contrário: se alimenta de planos abertos e cria toda uma atmosfera para um bang bang provinciano, onde acompanharemos um pequeno conto de dura hereditariedade em torno da vida de um matador, com sugestão de suas gerações passadas e futuras.

Há todo um clima de melancolia no filme, peso balanceado entre a narração que faz comentários quase com descaso e as aparições de uma criança, presença inocente destinada a viver, e talvez seguir, numa história de corpos e tiros. O protagonista não é matador por necessidade e que depois se acostuma a tocar essa vida. Sua narração - muito boa - é também fruto de hábito e tristeza.

O curta de Getúlio impressiona sobretudo por sua ampla noção de imagem, e de como encenar e filmar além do que o espectador vê na tela. Sua direção explora bastante o extracampo, criando a sensação de que personagens entram e saem de um universo próprio, não delimitado pelo enquadramento. Há também um cuidado na montagem desse ambiente, no tempo nada apressado entre um corte e outro, na presença de um cachorro ocasional ou na inserção de um plano muito breve dum figurante que escuta o som de um disparo, detalhes que fazem de O Que Aprendi com Meu Pai um cinema habitado e feito por quem parece ter tesão em filmar, coisa bem rara por aqui.

O filme foi reconhecido com o trio mais importante de prêmios: Montagem/Edição, Direção e Melhor Ficção.

Mudernage, de Marcela Borela

Feito para o DOCTV, Mudernage fechou a Mostra ABD como que para também concluir este recorte artístico da seleção de documentários. Por abordar a arte moderna feita em Goiás, o documentário de Borela se vê um tanto próximo do longa de Ângelo Lima dedicado a Gustav Ritter, docs que chegam a dividir alguns entrevistados, como Siron Franco e Divino Sobral.

Assistir aos dois filmes separados por apenas 48 horas leva a um exercício interessante. Por mais que sofra com o ritmo um tanto capitular, muito devido aos propósitos televisivos, Mudernage propõe discussões não só em torno da arte em si, como se fosse uma palestra, mas do diálogo entre gerações de artistas locais, da presença da arte na vida das pessoas e da relação entre o próprio documentário - cujo status de produção controladora é revelado a todo momento, ecos de Eduardo Coutinho - e as motivações daqueles artistas (a presença do Grupo EmpreZa, por exemplo, não é uma performance, mas o debate entre eles a respeito de como fazer ou não fazer a performance).

O campo de pesquisa de Borela é mais amplo, falando de arte e da cidade às vezes de maneira quase indissociável. Parte das entrevistas não são meramente mecânicas, em que se procura apenas as informações da falação padronizada: Siron Franco aparece, mas tanto quanto ele aparece seu ateliê, a valorização daquele espaço de criação; com Divino Sobral, filmado no alto dum morro, a cidade de Goiânia está presente no horizonte, lá atrás, às vistas. O ambiente é geralmente filmado sem que se comporte como um simples anexo dos depoimentos.

Talvez a maior diferença entre os docs de Borela e Lima possa ser resumida no modo com que os diretores se inserem em seus próprios filmes: enquanto Lima me parece se colocar gratuitamente em frente à câmera, Borela, além de não se omitir como entrevistadora, a ponto de até mesmo escutar respostas inesperadas e assumir tais reações como parte do processo, inclui sua família dentro da questão (e problema?) do colecionismo artístico, sua mãe e seu pai dispondo seus muitos quadros na paredes da casa como peça decorativas.

domingo, 7 de julho de 2013

Premiados do FICA 2013



Serra Pelada O que Aprendi com Meu Pai são os grandes vencedores do FICA 2013

Premiação sem grandes surpresas na Competitiva. O longa Serra Pelada - A Lenda da Montanha de Ouro, de Victor Lopes, sugere um prêmio por sua ambição e importância de pesquisa acerca de uma história brasileira que beira o épico. Sua premiação num festival ambiental é perfeitamente compreensível, mas ao mesmo tempo é um filme pisoteado por sua própria missão, que, de tão hercúlea, acaba batendo cabeça frente ao acúmulo de depoimentos sem que se crie alguma organização mais sólida entre eles. É um documentário que cobre três décadas de uma fatia histórica muito específica do país, e no entanto é complicado sair da sessão com certa clareza de como os muitos fatos abordados se ligam entre si.

Por outro lado, foram premiados como Melhor Longa e Melhor Média, respectivamente, o israelense Zevel Tov e o italiano I Morti di Alos, talvez os dois melhores filmes do festival, o de Daniele Atzeni sendo o mais impressionante visto por aqui.

Produções vencedoras da Mostra Competitiva do Fica 2013:

Melhor produção goiana: Dona Romana e o Grande Eixo da Terra, de Paulo Rezende
                               
Melhor série ambiental para TV: Expedition Grand Rift (França), de Geoffroy de La Tullaye e Loic de La Tullaye
Melhor curta-metragem: A Galinha que Burlou o Sistema (Brasil-SP), de Quico Meirelles
Melhor média-metragem: prêmio dividido entre I Morti di Alos (Itália), de Daniele Atzeni, e Wind of Change (Noruega), de Julia Dahr
Melhor longa-metragem: Zevel Tov (Israel), de Ada Aushpiz, Shosh Shiam

Prêmio Especial dos Profissionais da Imprensa: Ortobello – Primo concorso di bellezza per orti (Itália), de Marco Landini e Gianluca Marcon
Menção honrosa: Ortobello – Primo concorso di bellezza per orti (Itália), de Marco Landini e Gianluca Marcon
Menção honrosa: Louceiras (Brasil-SP), de Tatiana Tofolli
Grande Prêmio Cora Coralina para a Melhor Obra: Serra Pelada – A Lenda da Montanha de Ouro (Brasil-RJ), de Victor Lopes
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Mostra ABD Cine Goiás

O júri de premiação composto pela atriz Helena Ignez, o compositor Guilherme Vaz e presidido pela cineasta Juliana Rojas reservou os prêmios de montagem, direção e melhor ficção para O que Aprendi com Meu Pai, reconhecendo o curta de Getúlio Ribeiro como o melhor filme desta Mostra ABD, exibida pela primeira vez no Cine Teatro São Joaquim. Acompanhando as sessões, estre trabalho fruto de conclusão de curso do Audiovisual da UEG se distinguia notavelmente, filme de tiroteio inspirado e realizado com muito esmero, inclusive no rigor mais técnico (não ter levado fotografia me parece um mistério).

Após os três dias de exibição, o grande concorrente de Getúlio parecia ser Faroeste - Um Autêntico Western, animação muito bonita de Wesley Rodrigues, que pintou a tela do São Joaquim com uma sinfonia de cores e ampla imaginação na fluidez de suas imagens. Era a aposta certa para Melhor Animação, prêmio curiosamente levado por A Vida Não Vive, de Amarildo Pessoa e Katia Jacarandá, talvez a maior surpresa da premiação. Faroeste - Um Autêntico Western foi reconhecido apenas por sua trilha sonora.

O prêmio de Melhor Documentário para Gustav Ritter - Uma Arte, uma Vida, de Ângelo Lima, é outro que acredito mostrar como júris são júris, sendo impossível prever todas as escolhas de um grupo de pessoas de experiências e realidades diferentes nas suas relações com o cinema, o que também acaba por ser a riqueza desse processo de decisão. Minha aposta era em Mudernage, de Marcela Borela, sobre o cenário da arte moderna em Goiás, tema diretamente relacionado ao filme de Lima, inclusive compartilhando alguns dos entrevistados, mas com inventividade e estalos de ousadia.

Embora relativamente informativo, o longa de Lima me parece fadado ao cansaço, blábláblá que trata a maior parte de suas imagens como anexos de e-mail, resultando 85 minutos com aspecto de seminário.

Filmes vencedores da Mostra ABD Cine Goiás:
Melhor direção de fotografia
Ângelo Lima, por Gustav Ritter – Uma arte, uma vida
Melhor direção de arte
Matheus Leandro Amorim, por Bilhete
Melhor montagem/edição
Larry Sulivan, por O que aprendi com meu pai
Melhor roteiro
Jarleo Barbosa, por Atrás da História (ou No Coração do Filme)
Melhor trilha sonora original
Dênio de Paula, por Faroeste, um autêntico western
Melhor som
Thais Oliveira, por Atrás da História (ou No Coração do Filme)
Melhor ator
Rafael Vinícius e Rainan Pires, por Bilhete
Melhor atriz
Salma Jô, por Atrás da História (ou No Coração do Filme)
Prêmio Beto Leão para o melhor filme de ficção
O que aprendi com meu pai, de Getúlio Ribeiro
Prêmio Eduardo Benfica para o melhor filme documentário
Gustav Ritter – Uma arte, uma vida, de Ângelo Lima
Prêmio Fifi Cunha de melhor filme de animação
A vida não vive, de Amarildo Pessoa e Katia Jacarandá
Prêmio Martins Muniz de melhor filme experimental
Itauçu, do Grupo Empreza
Melhor direção
Getúlio Ribeiro, por O que aprendi com meu pai

FICA 2013



Dia 1
Até mesmo por estarem sujeitos a um modus operandi da produção televisiva, os episódios de seriados costumam aparecer no FICA como se seguissem um manual de redação a partir da adequação ao tema. Expédition Grand Rift (FRA) e Somos Um Só (BRA) figuraram com capítulos didáticos, informativos e ambientais, inaugurando as primeiras duas horas da Mostra Competitiva, talvez para que apenas cumpram o papel de apresentar algumas das questões motoras do festival.


A distinção entre a modernidade/urbanidade e civilizações ainda não capturadas pelo progresso é certamente um debate constante por aqui, observados com mais interesse pelas exibições seguintes, a começar pelo curta-documentário goiano Boiúna, de Maurélio Toscano, estudante do curso de Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás, em que, no diálogo entre seus dois últimos planos, nos rostos de dois indígenas do Amazonas, há a revelação de uma vergonha atual do Brasil, talvez num dos desfechos mais inspirados a passar no Cine Teatro São Joaquim este ano.

O outro documentário goiano selecionado para a Competitiva, Dona Romana e o Grande Eixo da Terra, de Paulo Rezende, também foi exibido na primeira tarde de programação. Logo de início, o curta nos traz Dona Romana, mulher de crença em Deus e no destino, porta de entrada para um universo místico muito pessoal que Rezende lapida para fazer dessa senhora uma personagem minimamente curiosa, indo além de uma mera postura de apresentar um sujeito interessante ao mundo ou mesmo sua arte.

Dona Romana nasce de uma atmosfera criada pelo documentário, que se defende muito bem de qualquer maior esforço em racionalizar e resumir esta figura como só uma doida que diz escutar vozes e receber ordens espirituais para que seja uma das responsáveis pela manutenção da vida terrestre e do eixo do planeta. Apesar de inserções de um garoto pesquisando na internet destoarem do todo, são 20 minutos que parecem ter algo de estranho ali. O envolvimento é bom.

O feel good movie do dia ficou a cargo da produção estadunidense Carbon for Water, curta-metragem inicialmente amargo, a respeito da rotina de mulheres quenianas que desde muito cedo devem buscar e carregar pilhas de madeira para que possam ferver a água a ser bebida.

O impasse é logo identificado no fato de a constante necessidade de madeira auxiliar o desmatamento local, problema solucionado na segunda metade da projeção, que a partir deste momento lembra uma peça publicitária do projeto social que intitula o filme: por cinco semanas, uma grande equipe tem a missão de levar um filtro de água a 900 mil moradias do oeste do Quênia, ensinando os residentes a utilizar o novo mecanismo.

Esses rumos finais agem como um passe de mágica que, agora ritmado por uma trilha devidamente alegrinha, plantam  aquela desconfiável sensação de “podem ficar calmos, está tudo bem”. Ao final, fotos de famílias sorridentes segurando o filtro surgem como que para atestar missão cumprida. O festival é repleto de boas intenções como essa, algumas muito louváveis, mas na tela Carbon for Water termina por lembrar um quadro assistencialista do Caldeirão do Huck.

Após intervalo de meia-hora, o curta italiano I Morti di Alos, de Daniele Atzeni, ignora qualquer traço de doçura da programação até então e, inspirado por Edgar Allan Poe, basicamente resume a história do capitalismo tentacular em 30 minutos. No timbre de um narrador-personagem fatalista, sobrevivente da pequena vila de Alos, que nos relata o destino dos moradores locais, testemunhamos aqui algo extremamente apocalíptico, espécie de conto macabro com notas de rodapé marxistas. Montado com materiais de arquivo e filmagens do vilarejo abandonado, conjunto de muros vazios e silenciosos, Atzeni fez disso aqui um trem fantasma dos bons. A última imagem, depois dos créditos finais, é impressionante.

Por fim, O Som ao Redor, cuja presença no festival chegou a ser questionada, na dúvida se seria ou não uma “produção ambiental”. É no mínimo uma discussão nova para filme já tão premiado e discutido, e o cineasta Pedro Novaes, em texto publicado na revista Janela já fez a melhor defesa que o longa poderia ter nesse sentido.

Em grande parte, Kleber Mendonça Filho traz em O Som ao Redor um lamento pela urbanidade ansiosa e descompromissada, algo como um crescente abismo invertido que cerca a todos sem que se perceba de imediato. Em alguns momentos, é um filme sob a perspectiva de prédios e muros, concretos plantados pela história de nossas terras e cercas.

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Dias 2 e 3
No geral, o Fica é uma espécie de portal para as desgraças do mundo. Num festival de temática ambiental, é raro entrar no cinema e não se ver diante de pessoas à mercê da seca, do isolamento e de condições de sobrevivência das mais frágeis, e infelizmente não dá para comentar tudo o que é visto aqui. Segue então um pequeno panorama desse tour de conscientização, em que algumas poucas produções revestidas de certa leveza brotam na tela como uma sessão de massagem.

O curta italiano Ortobello, exibido na quinta-feira, parece ter cumprido bem essa tarefa, geralmente comentado entre sorrisos. Documentário sobre senhores empenhados em cuidar de suas belas hortas, a ponto de organizarem um torneio entre as plantações, o filme emana simpatia em torno dessa imagem que se tem dos italianos, sempre com um prazer em cozinhar e se reunir à mesa, e também de seu passado, sem esquecer que muitos destes homens, simples plantadores, carregam memórias de guerra e fascismo.

O grande filme da última quinta-feira (7/7), foi Lugar Feito por Homens, produção alemã dirigida pelo chinês Yu-Shen Su, a respeito de bairros faraônicos construídos na China como promessas de moradias ideais, embora destinados ao abandono. É um lento exercício de observação, bem ao estilo do cinema chinês – ambiental ou não -, dando tempo máximo a cada plano para que o nosso olhar capte todo aquele descompromisso ambiental em função de sonhos de alta sociedade, de pertencer àquele mundo que brilha forte no anúncio animado presente num imenso painel de luzes.

Outro forte competidor é Zevel Tov, longa israelense de Auda Aushpiz e Shosh Shlam. O filme tem como ponto central um lixão e o grupo de catadores que dali sobrevive, cenário familiar em qualquer lugar do mundo, pois lixo é lixo. Em pequenas doses, o longa se abre para três famílias específicas e se insere no delicado arame farpado político do país. Me parece o longa mais completo em suas ambições.

Entre os brasileiros, A Galinha que Burlou o Sistema, curta de Quico Meirelles, filho de Fernando Meirelles, parece ser aposta certa para voto popular, muito embora as sessões tenham variado bastante em quantidade de público. Denunciando o processo de criação de galinhas para abate, lembra algo de Ilha das Flores, de Jorge Furtado, para então se transformar num filme de fuga animal até bem sacado, com claras influências estilísticas do pai, incluindo referência à corrida da galinha em Cidade de Deus.

Por sinal, Meirelles pai está no festival pela Mostra paralela, com exibições de Domésticas, Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira durante o sábado. Na coletiva para a imprensa, perguntei a Meirelles sua opinião sobre o efeito da popularidade de Cidade de Deus no mercado voltado para o turismo internacional nas favelas cariocas, que aumentou depois do sucesso de seu filme no exterior, algo comentado no documentário Em Busca de um Lugar Comum, exibido na sexta-feira. Meirelles disse nunca ter pensado sobre a estranheza desse safári entre favelas, mas que vê um lado bom, uma vez que pode retirar parte dos preconceitos e impressões que se tem desses lugares onde nem o Estado entra.

Esse Em Busca de um Lugar Comum, de Felippe Schultz Mussel, é também um filme sobre o poder de encanto das imagens, talvez um primo distante de Pacific, de Marcelo Pedroso. Seu brilho reside nos momentos em que se apropria de material de registro dos turistas, europeus munidos de protetor solar e pose para fotos, e que agora carregam morros favelados como um souvenir, prova de que estiveram ali, como se estivessem em frente ao Taj Mahal.

Ainda na sexta-feira, Serra Pelada – A Lenda da Montanha de Ouro se mostrou o mais ambicioso dos nacionais, com a proposta de percorrer um arco de pouco mais de três décadas da mineração de Serra Pelada, pedaço de história do Brasil. Filme irregular, aquela impressão de ser mais longo do que realmente é, mas incrível em suas imagens de arquivo. Há registros ali que parecem extraídos de épicos de Cecil B. DeMille.

Por fim, duas interrogações referentes a Competitiva: que bom a cidade de Goiás Velho ter a oportunidade de ver A Onda Traz, o Vento Leva, curta documentário de Gabriel Mascaro, mas mesmo ampliando ao máximo as noções de “ambiental”, não entendi muito bem o que o traria aqui. E alguém mais saiu de No Fundo Nem Tudo É Memória, filme mineiro, se sentindo uma mariposa em meio a todas aquelas lamparinas?