terça-feira, 15 de outubro de 2013

Festival do Rio #1: Bastardos


A algumas horas do início oficial do Festival do Rio, consegui chegar a tempo de uma cabine de Bastardos (Les Salauds, 2013), de Claire Denis, cineasta de interesse e que estará no evento para pelo menos uma das sessões de seu filme.

Não é o primeiro de seus filmes que parece querer me abandonar de vez durante a sessão. Denis costuma me ganhar nos acréscimos, com encerramentos que me fazem repassar na cabeça tudo o que acabei de ver e, enfim, sentir se aquilo teve ou não alguma força. Minha Terra, África (White Material, 2009), seu bastante elogiado longa anterior, foi uma dessas experiências um tanto em branco, para não dizer aborrecida, sem efeito sobre mim, muito embora todos que conheço tenham respondido bem ao filme. Acontece.

No caso deste Bastardos, visto no típico ritmo já cansado de uma cabine matutina, o distanciamento de Denis, capaz de primar pela elegância numa cena de suicídio logo na abertura, também parecia ser testado pelo olhar recém amanhecido.

De maneiras distintas, uma mulher, Sarah (Julie Bataille) perde seu marido, seu negócio e, aparentemente, sua filha. Ela responsabiliza um executivo rico e chama seu irmão, Marco (Vincent Lindon), um capitão naval, para que possa ajudá-la como puder. A escolha dessa profissão de Marco é muito curiosa e dá a entender que tenha sido feita por questões de sedução, uma vez que sua estratégia é se envolver com Raphaëlle (Chiara Mastroianni), relação que pode levá-lo a algumas respostas.

A assinatura visual de Marco é uma camisa branca de 300 euros que parece perfeita para realçar suas costas largas enquanto ajusta uma bicicleta, sendo observado com atenção por Raphaëlle. Isso é filmado com muita naturalidade por Denis, tornando fácil a aceitação da sensualidade casual e ao mesmo tempo objetiva desse homem de mais de 50 anos. Da mesma forma, o tesão é filmado de verdade, e não há a menor preocupação, muito menos forçação, em deixar no ar se tal relacionamento se entregaria a dúvidas românticas ou se apenas seria o que seria. Denis sabe ser simples, compreende a seriedade do material e sabe o valor que isso tem. Qualquer traço de romance é descartado com a frieza de um golpe pelas costas, sem brincadeiras.

Num mix de fatalidade familiar e investigação pessoal que parece pisar em terrenos já visitados por filmes como Hardcore (1979), de Paul Schrader, e mesmo o Festa de Família (Festen, 1999) de Thomas Vinterberg, Bastardos ainda nos sugere o tempo todo o que pode ser sua grande pegada: a incômoda impressão de que há algo mais pesado por trás, a ser visualmente entregue nos momentos certos, o que de fato acontece, sobretudo no desfecho eletro pervertido que, entre closes genitais e espigas de milho, autentica a feiura e o lamento e permite colar o filme na cabeça até o final do dia, no mínimo.

Sem Dor, Sem Ganho


A finalização de compromissos acadêmicos envolvendo o mestrado (ironicamente, você faz um mestrado sobre cinema e passa dois anos sem assistir metade do que era acostumado a assistir) fez com que eu pulasse a coluna da semana passada. Para retornar, desviei de Smurfs 2, de Percy Jackson, dos especiais da Globo e do novo Adam Sandler. Dizem que este outro filme do Wolverine é OK, longe de ser desastroso como o primeiro, mas acabei caindo no Sem Dor, Sem Ganho, o que não é menos questionável, porque Michael Bay é uma espécie de nêmesis do cinema.
 
Alguém foi ver? É um filme esbelto se comparado aos padrões de destruição de Bay, diretor de blockbuster por excelência, nos piores sentidos possíveis. Emenda um sucesso atrás do outro com produtos gigantescos e fabricados em ritmo de rolo compressor. Curiosamente, este aqui parece ficar num nem-lá-nem-cá, talvez incapaz de agradar logo quem espera o tipo de quebradeira arrogante que fez toda sua carreira, o que não significa criar uma distância saudável de sua filmografia anterior, porque, no fundo (e nem tão fundo assim), a matemática da estetização publicitária e videoclíptica permanece igualmente onipresente, como se toda imagem tivesse de ser dotada de um poder de anúncio.
 
Acontece que Sem Dor, Sem Ganho é um tanto metido a esperto, sugerindo que Bay possa ter se aventurado pelo satírico, uma certa gracinha em torno do estilo de vida competitivo dos EUA e das pessoas que lá habitam. O filme se passa nos anos 1990 e acompanha três marombados (Mark Wahlberg, Dwayne Johnson e Anthony Mackie) insatisfeitos com o que o "sonho americano" tem lhes reservado até então, levando-os a aplicar um golpe num judeu ricaço.
 
Por um instante, há a impressão de que o longa pode realmente funcionar e que Bay possa surpreender numa paródia de si mesmo, o que logo se revela uma promessa vã. O histórico de Bay é um baita testamento contrário, a ponto de, como numa rota inversa, fazer do sujeito um autor, munido de estilo reconhecível e assinaturas fáceis. Por pior que seja, você bate o olho em segundos de imagem e entende que aquilo só poderia vir dele (ainda assim, sinto muito, não há debate sobre vulgar auteurism que o salve). Eis um cineasta que faz jus ao clichê pejorativo do uso "hollywoodiano".
 
Por trás da aparente intelectualidade, não demora a aparecer o Bay de sempre, da estereotipação de estrangeiros e suas culturas, das piadas adultescentes (uma  delas envolve pelos pubianos e poderia ter saído da série Todo Mundo em Pânico) e de toda uma visão superficial de mundo que parece usar a tela de cinema para atestar aquele mapa "Como os EUA enxergam o mundo" que tanto circula por nossas timelines virtuais.
 
Na melhor das hipóteses, Sem Dor, Sem Ganho sugere um desperdício, sendo difícil não pensar seu material nas mãos de Shane Black (roteirista de Máquina Mortífera, dirigiu Beijos e Tiros e, recentemente, o terceiro Homem de Ferro), para nos contentarmos com a lembrança mais óbvia. Porque no filme de Bay eu vejo Dwayne Johnson (que tem todo um carisma a protegê-lo) cheirado de pó assando mãos humanas decepadas no meio da rua e só me passa pela cabeça que o tom de "cena divertida" é tão errado que sobra apenas o mau gosto moleque desse diretor que, numa estranha noção de diversão, já colocou defuntos como obstáculos numa perseguição automobilística e atropelou uma favela inteira em Bad Boys 2 (2003), mas enxergo a mesma cena sendo polida por Black aos moldes de inspirada acidez.
 
O que há de satírico é rapidamente soterrado pela forte sensação de que Bay faz tudo isso com toda a seriedade que sempre fez, como nas câmeras lentas por qualquer coisa. Alguém apenas salta de uma van e a imagem é logo sobrecarregada de lentidão, ou então um personagem leva um choque na cabeça em close enquanto o slow motion garante, com algo de cômico, o detalhe do processo de dor da vítima. Mais uma vez, o histórico de Bay parece nos dizer que ele acredita em sua ação, e que isso seria interessante somente pela plasticidade em si, não muito diferente desses replays modernos dos jogos de futebol.
 
Mais um filme para vender TVs LED de muitas polegadas em frente aos saldões.