sexta-feira, 29 de março de 2013

Killer Joe



Filme família

Não é bem o caso de noticiar um "retorno" de William Friedkin, cineasta sempre lembrado por dois medalhões da voraz New Hollywood da década de 1970: Operação França (1971) e O Exorcista (1973). Seu último longa, Possuídos (2006), já era algo notável, espécie de conto romântico bizarro que, se não me falha a memória, se debruçava sobre noções animalescas de corpo, casal e acasalamento.

Friedkin é desses diretores que filmam um cinema sem receio de quebras de protocolo, e que, em qualquer momento da carreira, me parecia canalizar um amontoado de energia de modo muito mais interessante que Dennis Hopper, para pegar outro ícone daquela época e daquele olhar destemido diante da própria cultura. Viver e Morrer em Los Angeles (1985), com seus quase 30 anos de idade, dificilmente não deixará atordoado o espectador que se aventurar nele pela primeira vez. Os finais de Friedkin - ou melhor, a chegada aos finais - costumam ser bordunadas em qualquer zona de conforto que seus filmes podem armar.

Killer Joe - Matador de Aluguel (2011), em cartaz no Cine Cultura, é por aí. Baseado em peça de Tracy Letts, temos um jovem (Emile Hirsch) de família texana tipicamente caipira que, de tão pé-na-cova com a máfia local, bola um plano para ficar com o seguro de vida de sua mãe. Contrata Joe (Matthew McConaughey, muito bom), policial e, mais importante, matador de aluguel. Daí o filme vira outra coisa, às vezes beirando comédia de erros, material que, é seguro dizer, também seria muito bem tratado pelos irmãos Coen.

O público mais frequente do Cine Cultura pode levar algum choque ao sair de uma semana dedicada ao "Feminino no Cinema" e, logo na programação seguinte, entrar em Killer Joe. Após exibir diversas facetas de delicadeza e feminilidade numa bonita Mostra com filmes de cineastas mulheres como Mia Hansen-Løve, Agnès Varda e Claire Denis, além do Lola Montès (1955) de Max Ophüls e de A Grande Testemunha (1966) de Robert Bresson, o filme de Friedkin tem algo de abissal e, porque não, criativo em certos atos de degradação humana, sobretudo numa cena em que uma mulher é humilhada de maneira, penso eu, inédita. Recomenda-se não comer frango frito antes da sessão.

Munido de Kentucky Fried Chicken, Friedkin parece estimulado a aloprar parte da cultura norte-americana, ou pelo menos da texana. Não tarda para que os personagens passem a sugerir caricaturas de si mesmos, inseridos em terrenos de humor muito próprio (no papel do pai... lento, Thomas Haden Church é o elemento cômico mais preciso).

O universo de Friedkin é o universo do cinema, metros distante da realidade. Nem Joe, que em certo momento alerta que aquilo tudo não é coisa de cinema, escapa do que lhe caracteriza como personagem cinematográfico: a existência de Joe está nos closes na fivela do cinto, na bota, nos óculos escuros e no chapéu preto, na calmaria da fala e do andar, no olhar obscuro e objetivo. Joe é um cowboy, um sheriff, uma ligeira distorção do western que, como um espírito do mal à procura de uma virgem, invade o trailer dessa família que, em sua própria doença, não tem outra alternativa senão aceitá-lo.

A caminho de um desfecho-piada brilhante, a cena final se constrói nos moldes de jantar em família, briga de casal e anúncio de boas notícias, tudo sob o mesmo teto. Temos aqui melodrama revirado de ponta-cabeça e uma enfim decifrada sátira a valores e morais familiares. Killer Joe é "filme de família".