domingo, 16 de novembro de 2014

Rapidinhas brasileiras




Pra tirar a grande camada de pó, umas rapidinhas sobre filmes brasileiros que vi nos últimos meses, a maioria em função da cobertura do VII Janela Internacional de Cinema do Recife que fiz pela revista ] Janela [.

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PERMANÊNCIA, de Leonardo Lacca

Gostei de Permanência. Gosto dos desconfortos à procura de algum sabor, da intimidade hesitante, das lembranças que buscam tempo e lugar, do pouco esforço em pontuar as diferenças culturais entre Recife e São Paulo, do movimento dos corpos (a atendente/secretária da galeria de arte que demonstra interesse pelo fotógrafo com uma virada de cabeça lá no cantinho do enquadramento mais aberto, por exemplo).

O filme, claro, não é perfeito. Me pergunto se havia mesmo necessidade de pintar o personagem do marido de Rita como um bananão, um pateta de babaquice contida e portanto completamente desinteressante frente ao papel de Irandhir. Aí é fácil.

Mas o longa de Leonardo Lacca pode ganhar por saber lidar com sentimentos e comportamentos familiares, por saber identificar com certa naturalidade uma situação delicada entre um (ex)casal, o que o diretor já fazia no curta Décimo Segundo (2007), espécie de ensaio para Permanência.

Fora isso, é mais uma oportunidade para se apaixonar por Rita Carelli, e descobrir a nova paixão que pode ser Laila Pas (deveria existir viagem no tempo só para que Pas pudesse voltar aos anos 1960 e ter um filme da nouvelle vague só pra ela). Também dá pra se apaixonar por café derramado em abdômen feminino.


SANGUE AZUL, de Lírio Ferreira

Saí da sessão gostando e hoje não sei mais. Acho que o maior mérito é o de ser todo filmado em Fernando de Noronha e mesmo assim não cair na armadilha de filme cartão postal. E se esse é o maior mérito então temos um problema. Ou vários.

É um filme que tinha tudo pra ser bonito, nos sentimentos, nas sensações, no peso das relações ali dispostas. A história do homem-bala (Daniel de Oliveira, filmado por Lírio como o cara mais sarado e desejado do mundo - e no filme o mundo é, de fato, uma ilha, o que só radicaliza o cenário) que volta a trabalhar com o circo onde foi criado e reencontra a irmã na pequena turnê pelo pedaço paradisíaco de Pernambuco, despertando um tesão complicado, é tratado por Lírio com certo lirismo e tentativas de poesia, mas um carimbo de melodrama Rede Globo parece sempre querer se apoderar de tudo ali.

Embora tenha vencido o Festival do Rio deste ano, terá o mesmo destino de Árido Movie, do qual ninguém mais se lembra?

Bom, Lírio sempre terá Baile Perfumado.


A HISTÓRIA DA ETERNIDADE, de Camilo Cavalcante

Relações conflitantes com o primeiro longa de Camilo Cavalcante, que tem extensa carreira no cinema de durações menores. Cineasta pernambucano de experiência e que demorou a chegar ao longa, portanto grande expectativa, ainda mais no cine São Luiz, lotado, equipe, conhecidos etc, aquele tipo de sessão em que é preciso identificar o que seria comoção automática e o que não seria.

Impressão é o de um filme duro, preso, pouco fluido no geral. Engessadíssimo, mas só até se soltar completamente numa cena em que Irandhir Santos, o artista da pequena vila sertaneja que dá lugar à história, canta Secos e Molhados numa performance a céu aberto. A câmera gira ao seu redor, o artista que faz o mundo girar, e Cavalcante parece ter amarrado seu filme para que pudesse existir em função deste momento. É uma cena curiosa e ao mesmo tempo problemática: se Irandhir é grande o bastante para carregá-la (e seria feita se ali estivesse outro ator? Um ator que não estivesse em fase tão presente, querida e badalada?), a cena existe para ser A CENA, para comprar a emoção, levantar o público, baixar sua guarda com golpes forçados. Mas tem Irandhir, e ele é bom, muito bom.

O mesmo vale para a cena em que a menina sonhadora é levada a "enxergar" o mar. Câmera giratória se repete, há quase uma vontade de ser um plano-sequência (o sertão dando lugar às águas seria algo incrível sem o uso do corte, mas não vejo como seria possível no contexto da produção), e a negociação emocional de novo se faz presente, desta vez arrancando aplausos durante a sessão. Nada contra catarses, mas A História da Eternidade tem um jogo emocional complicado, que pressiona a fim de não dar espaço para outras sensações.

*Dias depois fui ao Cais do Sertão, novo museu do Recife, dedicado à cultura nordestina e sobretudo pernambucana. Há uma instalação de Camilo por lá, intitulada "Retratos", que consiste em 48 depoimentos de nordestinos contando parte de suas histórias de vida (há inclusive um muito célebre e importante, só procurar). Assisti a uns seis deles, a maioria capaz de levar a uma emoção autêntica, de dentro, sem muito esforço e que levarei comigo muito mais que as tentativas do longa.


PROMETO UM DIA DEIXAR ESSA CIDADE, de Daniel Aragão

Até passei a repensar Boa Sorte, Meu Amor (2013), longa anterior de Aragão. Teria o preto-e-branco dosado seus excessos e histrionismos? Mas Aragão só parece saber filmar desse jeito, nos efeitos máximos, na saturação, na luz solar de farol de Scania que vem do fundo e parece obstinada a nos cegar. É estilo, mas pode ser estilo que começa a irritar já neste segundo longa, para mim algo próximo do desastre e que, com esses cacoetes, sequer se distancia daquele seu curta Solidão Pública, seu trabalho mais egóico.

Para impressões um pouco mais completas, tem a crítica na Janela.


SINFONIA DA NECRÓPOLE, de Juliana Rojas

Talvez minha maior frustração do Janela do Recife, quem sabe do ano. O filme é produto de um telefilme feito para a TV Cultura, só que na versão de cinema pouco consegue escapar das nítidas amarras televisivas ao qual fora originalmente submetido. Tudo muito fechado, apertado, um humor bobo e que costuma nascer repetitivamente do protagonista abobado. Não pega, não engata, por mais que tenha a astúcia de sugerir uma reflexão sobre especulação imobiliária a partir de um enredo que gira em torno da reestruturação de um cemitério. E sendo um musical, claro. Soa promissor (e é, demais), porém a instigante combinação "Juliana Rojas + cemitério + musical" fica no meio do caminho, um tanto murcha.

Ainda assim, inegável que o Filmes do Caixote tem o cinema mais interessante produzido em São Paulo hoje, provavelmente.

Ademais, tendo a concordar com o Júlio.


OBRA, de Gregorio Graziosi

Desse eu queria gostar mais. Começa muito bem, potente, fazendo tremer as paredes de um cinema gigante como o São Luiz, os prédios tomando campo na tela. É um filme de verticalização, de concreto, de arquiteto, filmado na base de régua e esquadro, o que ironicamente também passa a sabotá-lo, pois insiste tanto na sua forma como caminho para a profundidade que logo se torna redundante e exibido demais. No entanto, tem seus méritos e interesses, inclusive o de colocar Irandhir numa atuação atípica, robótica, concentrada, domada, o que pode incomodar alguns, mas é bom ver o ator coringa do cinema alternativo de maior acesso em papel um tanto "às sombras"; o que não trai o talento de Irandhir, jamais, ele que, como o próprio Graziosi diz, consegue parecer protagonista num filme de múltiplas narrativas como O Som ao Redor.

Mais impressões lá no texto da Janela.


A MISTERIOSA MORTE DE PÉROLA, de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima

Coisa mais porrada e estranha do VII Janela do Recife. Estranha no bom sentido. O novo filme da Alumbramento foi lançado no festival e, não obstante o começo casinha de bonecas, todo requintado, logo tomou o São Luiz com o impacto que um bom cinema fantasma tem de ter. É filme maldito dos bons, com pelo menos uma cena inesquecível de guarda-roupa escuro.

Escrito, filmado, atuado e produzido por Guto e Ticiana. Um feito.

Mais sobre ele no meu texto da Janela.


BRASIL S/A, de Marcelo Pedroso

O novo de Marcelo Pedroso eu só fui assistir após o Janela de Recife, na Mostra Canavial de Cinema, mais especificamente em Goiana, na Zona da Mata Norte, um dos oito municípios percorridos pela Canavial este ano. Sessão peculiar, pois Goiana está em região canavieira e agora vem se transformando em pólo industrial, com uma fábrica da Fiat impossível de ignorar na chegada à cidade.

Adepto do cinema peito aberto e linha de frente, Pedroso aponta seus dedos justamente para esse processo de industrialização, uma pegada acusatória decidida a enfrentar aquilo que uma nublada ideia de progresso teria de mais daninho. Pedroso literalmente mira seus raios exterminadores para uma classe média de outdoors imobiliários maquiados, os hoje conhecidos como coxinhas e que o cineasta faz queimar feito formigas sob uma lupa. Jogo duro.

Há, no entanto, o alto risco de Brasil S/A conversar apenas com os já devotos, com aqueles dispostos a confirmar suas posições. Não que eu acredite que Pedroso se preocupe com isso. Seu cinema é assumido demais, e em certa medida é isso que o faz tão interessante, por se colocar em marcha de ataque de rinoceronte desde o começo e não dar trégua (o curta Em Trânsito já deixava isso claro). Fala das mesmas coisas que O Som ao Redor, por exemplo (e, em larga escala, dos mesmos incômodos do Recife/Brasil atual), só que em outro extremo, sem nenhuma discrição.

Durante a sessão pode render entusiasmo - sobretudo porque realmente possui momentos de grande cinema, como a sequência do Transporte Cegonha (não lembro se é este o nome correto), o maracatu vitoriano e a coreografia dos tratores -, e o aspecto quase operístico do filme me levou a pensar que Pedroso sugeria ali um novo Hino Nacional, cinematográfico, mas alguns dias depois dá uma encolhida. O desfecho, por exemplo, já não sei se simpatizo, se não passaria de uma provocação meio juvenil (de cabeça erguida, contudo; respeito), e que mesmo no balaio das provocações ficaria atrás de um curta tão curioso, e muito mais inspirado, como Zigurate (2009).


BRANCO SAI, PRETO FICA, de Adirley Queirós

Esse é grande. Não maior que A Cidade É uma Só? (2013), mas grande. Já ensaiei escrever algo mais elaborado sobre e até hoje não me arrisquei.

É um documentário, e um documentário gradativo dentro de sua hibridez. Cinema híbrido anda em alta, moda, e Adirley está acima do modismo (e modismo não significa necessariamente uma desvalorização, ou não deveria, só pra constar).

Nas fotos do baile no Quarentão, nos depoimentos em off e, depois, de frente para a câmera, Branco Sai, Preto Fica clareia sua faceta documental, porém sempre inserida não apenas num contexto ficcional, mas de ficção-científica. É um dos filmes mais engenhosos do ano, uma sci-fi que nasce em Ceilândia, periferia do Distrito Federal, e que somente por meio da proposta dessa reinvenção do gênero, ou seja, por meio do cinema, é que encontra um meio de promover justiça.

Tem bomba de música. Tem container máquina do tempo. Tem viajante espacial que canta Roberto Carlos. Tem um final que, de tão incrível e destemido, pode até ser mal interpretado.

Adirley fez uma ópera rap sci-fi periférica. Um filme bem único por aqui.


CASA GRANDE, de Fellipe Barbosa

Tem pelo menos dois dos melhores planos do nosso cinema este ano: o primeiro é o de abertura, um plano geral da casa classe média alta ao anoitecer, com Marcelo Novaes dando uma escorregada após sair da piscina; as luzes se apagando, e a luz do banheiro (ou quarto?) de Jean acendendo.

O outro, sem dúvida, é o plano aberto da área externa da casa, no meio do filme, com a profundidade de campo e de foco permitindo observar os quatro personagens dispostos no quadro, todos de alguma forma chamando a atenção para si. Quem observar? Como absorver o plano todo de uma vez, sabendo ser impossível, mas a dinâmica de cena se revelando irresistível, ainda mais por reservar momento memorável na carreira de Novaes (escolha perfeita para um filme que pega estética e chavões de novelas Rede Globo e coloca de cabeça pra baixo).

Dá pra questionar muita coisa em Casa Grande (vide texto de Júlio), mas é como se Fellipe Barbosa tivesse sequestrado Malhação e transformado em bom cinema.

PS: o título internacional é Casa Grande or the ballad of poor Jean. Bonito.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Olho Nu no Cine Cultura



Deve dar muita gente pra ver Olho Nu, documentário sobre Ney Matogrosso, no Cine Cultura, e é bom que dê. Não gosto do filme, mas pra quem quiser passar pelo menos uma semana cantarolando nada mais que Ney (e Secos e Molhados, claro), disso ele é bem capaz.

Cantar Ney só pode ser bom, qualquer um de bom juízo diria. É uma quase verdade. A exceção é a sala de cinema, pois esses documentários a serviço de bandas e músicas envolventes costumam sofrer com a invasão daqueles espectadores que fazem questão de cantar juntinho, como se estivessem num show. Querem mostrar que sabem a letra, que aquele filme é só pra ele, o maior fã presente naquela sessão. Se não cantam, às vezes batem os pezinhos, acompanhando o ritmo. Ou uma garrafinha d'água entre as mãos.

Um ano atrás, numa sessão de Tropicália, de Marcelo Machado, no cine Lumière do Shopping Bougainville, tinha um desses. Sujeito barbudo, homem feito, batucava o plástico como se aquilo não pudesse incomodar outros ali presentes. Enfim, virou uma das minhas muitas histórias de confusão no cinema, de ter de chamar segurança e tudo o mais.

Pô, cantem Ney. Faz bem pro coração, eu sei. Mas na sala de cinema, cantem internamente. A poltrona vizinha agradece.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho


Quando ternura é força

A que cabe o crescente interesse por Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) senão aos seus próprios esforços? Sem celebridades, sem apadrinhamentos, sem transitar pela grade de uma rede de TV, sem ser mencionado em horário nobre, o primeiro longa de Daniel Ribeiro caminha para 100 mil espectadores em sua segunda semana em cartaz, aumentando agora o número de cidades em que estreia.

Com apenas 33 cópias iniciais e agora já com 56, números dos mais significativos para uma produção nacional independente, é interessante como o filme vem furando o bloqueio desses blockbusters que ao menos uma vez por mês chegam para ocupar metade das salas do país numa distribuição colossal cujo propósito é sufocar o mercado e lucrar a partir disso. Disputando bravamente seu lugar, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho chega em meio a Rio 2, Noé e Capitão América 2.

Também temos aqui um exemplo contrário à lógica de mercado que domina o próprio cinema brasileiro. O trio protagonista - Guilherme Lobo, Tess Amorim e Fabio Audi - pode até apresentar rostinhos que estariam facilmente escalados na Malhação, mas os jovens atores vêm de um quase completo anonimato para enriquecer com rara sensibilidade uma dramaturgia que se propõe a olhar para a juventude. Num cenário em que sucesso de bilheteria parece se resumir a comédias chupadas de ibope televisivo (basta uma olhada nas dez maiores bilheterias brasileiras do ano passado, é deprimente), levando espectadores ao cinema sem que de fato os tire da programação do sofá de casa, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho conquista uma posição a ser notada.

Não que seja um filme perfeito. A história de um garoto cego e gay que se apaixona por seu novo colega de classe sofre inclusive de certo protecionismo que o próprio diretor e roteirista parece preocupado em criticar. Praticamente situado em três ambientes base - casa de Leo, colégio e um acampamento escolar -, o filme pouco permite que seus personagens principais interajam com o universo externo, com pessoas de cotidiano que pudessem adicionar cor às suas vivências, sobretudo se considerarmos que é São Paulo, mesmo que num bairro nobre de classe-média. É difícil, assim, evitar que às vezes tudo pareça fantasioso e corretinho demais, como se o mundo não lhes pudesse ser mais nocivo que o bullying na escola.

Ainda assim, estamos longe do nível comercial de margarina. Por mais que os devidos recados sejam transmitidos de forma muito clara, configurando um filme de puras boas-intenções, me parece ser a representação do jovem e suas preocupações, tão corriqueiras quanto mundanas, a real riqueza do que se vê em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. O adolescente exposto, seja ele homossexual ou não, deficiente ou não. As paixões de colégio, os amigos confidentes, os ciúmes de amizade, o sentir-se abandonado, os colegas irritantes, a sexualidade ainda verde, as festinhas, os trabalhos no quarto, a vergonha da nudez, os pequenos conflitos com a família e, talvez das coisas mais interessantes a ser explorada pelo roteiro, o desejo de ver e conhecer o mundo.

Com seus 31 anos, não faz tanto tempo que Ribeiro deixou para trás essas agruras. Às vezes parece dirigir uma espécie de diário, misturando ficção a lembranças que poderiam ser suas. Seu filme tem essa capacidade de aproximação, um elemento de identificação muito forte. Leo não enxerga, Leo é atraído pelo mesmo sexo, mas Leo também é só um menino. Um menino que vai ao cinema, por sinal.

Ribeiro realiza aqui um desdobramento de seu curta de 2010, Eu Não Quero Voltar Sozinho, muito visto na internet e festivais, sobretudo de temática LGBT, algo que o filme tira proveito, é verdade, mas além de ser inevitável, talvez seja necessário. Uma temática que parece vir, no entanto, meio que por acaso, tanto que a característica da cegueira é o grande elemento de discussão e distinção dentro da história. A homossexualidade vem no embalo, simplesmente porque sim, e todos os problemas que decorrem dela poderiam ser problemas de qualquer demonstração sexual.

O que Ribeiro nos destaca é o sentimento acima de tudo. A câmera que foca na audição de Leo assim que a voz de Gabriel se faz audível pela primeira vez é a força de tudo o que vem a seguir. O restante deve a uma direção segura do que colocar na tela, mesmo quando a situação pode se revelar esquemática (penso aqui nos dois dançando Belle and Sebastian no quarto), de alguma forma parecendo acreditar inclusive em seus momentos mais vulneráveis, pois ternura há de sobra por aqui.

Um filme de carinho. Às vezes faz bem.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Grande Beleza


Roma, publicidade aberta

Uns tantos gostam, outros tantos não gostam. Com este não parece haver meio termo. Na verdade, reformulo: o time dos que são felizes com o filme parece ser maior.

Eu não gostei nada, confesso. Bom, pra não dizer que nada ali me agrada, simpatizo bastante com o Toni Servillo no papel do escritor-de-um-livro só Jep Gambardella. Mas paro por aí.

O que pega pra mim é Sorrentino ser tão clichê em suas escolhas nas 2h20 - que mais parecem 8h - que usa para refletir sobre o vazio da burguesia elitista da Itália contemporânea. Itália de hoje, sim, com seus Macs, iPhones e festas de toque eletrônico, mas que acaba dando aquela olhada sobre o ombro, seguida de piscadela, para A Doce Vida (1960), de Fellini, reflexo mais evidente neste filme que tenta muito, mas muito mesmo, honrar um "cinema italiano anterior".

O Marcello Rubini interpretado por Marcello Mastroianni tomaria uns drinks com Jep numa boa, aliás. Falariam de mulheres, literatura, italianices, ócio. Daria outro filme, provavelmente mais curto e melhor.

Enquanto Jep, já com mais de 60 anos, resiste em voltar a escrever, insistindo no bonvivantismo que fez de sua vida em Roma, participando de festas, visitando manifestações artísticas diversas (da mais atual e questionável performance moderna aos clássicos lapidados) e discutindo a vida com e dos amigos, Sorrentino filma suas idas e vindas sociais como se tivesse de cumprir algumas exigências para que seu filme venha a atingir o nível de "excentricidade" (felliniana? Quisera ele; porque um dos brilhos de Fellini era transformar o "excêntrico" em algo seu, portanto felliniano) esperado. Elementos como a editora anã e duas cenas envolvendo animais - uma girafa e um conjunto de flamingos - parecem surgir por obrigação. "Tá muito normal ainda, põe ele pra encarar uma girafa", talvez esteja anotado à caneta no roteiro original.

Esses animais, por sinal, trazem na garupa uma ou duas lições de moral que tratam de deixar a segunda metade desse longo filme ainda pior. O mágico que diz que, se soubesse fazer pessoas desaparecer, já não estaria mais entre nós, e, constrangimento dos constrangimentos, a santa desdentada explicando o porquê de comer apenas raízes e, em seguida, soprar as aves para longe. E a câmera do Sorrentino ali, viciada em sua elasticidade, repetitiva, quase um estilingue ao aproximar-se ou distanciar-se de pessoas ou objetos.

Também damos de cara com o imenso desejo de fazer de A Grande Beleza uma crônica de Roma e de tudo o que uma capital dessas poderia oferecer (oferece Fanny Ardant, por exemplo, que, embora francesa, já teve seus affairs com o cinema italiano, sobretudo com Ettore Scola). Nada contra filmar uma cidade como Roma. Até um pouco inspirado Woody Allen conseguiu. Impressão aqui, no entanto, é que a grande Roma, por mais bela e histórica que seja, é usada por Sorrentino como estratégia de compensação. "A SACADA DE SEU PRÉDIO É DE FRENTE PARA O COLISEU", o movimento de câmera parece gritar, como se precisasse nos esfregar na cara que, embora tenha vista VIP para uma das maravilhas do mundo, Jep não está imune à decadência (humana, intelectual, corporal, enfim...). Não por acaso, depois do "the end" só dá imagens pelo rio Tevere, muito mais vivas que o desfecho recado-aos-mais-jovens, versinho juvenil que se esforça para, no último gole, sublinhar A Grande Beleza como um possível filme de amor e arrependimento.

O filme ainda me parece extremamente mal montado. Um excesso de cortes, às vezes beirando a montagem desses blockbusters de ação. E a luz, tentando encontrar uma perfeição absoluta em tudo, me fez pensar em algo encomendado por agência de publicidade, uma Roma de calendário que se manifesta na tela.

Se jogado no WinRAR, talvez A Grande Beleza reaparecesse como uma versão estendida de comercial da Campari. Porque, voltando a Fellini, que tanto respira na nuca do longa de Sorrentino, por sua vez um Fellini edição Martin Claret, acredito que seja como o José Miguel Wisnik conclui na sua coluna do O Globo: "Fellini elevou o kitsch sentimental ao sublime. A Grande Beleza reduz o sublime ao kitsch."

sábado, 12 de abril de 2014

Eles Voltam


Era uma vez eu, Cris

Pronto desde 2012, quando venceu o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (ao lado de Era uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes), Eles Voltam, mais um da grande safra pernambucana, finalmente ganhou tem rodado pelo país. É distribuído pela Vitrine Filmes, responsável por circular alguns dos títulos nacionais mais importantes dos últimos dois anos, no mínimo, além de estrangeiros que todo mundo deveria ver, como o argentino Las Acacias e o uruguaio La Vida Útil.

Em breve comentário sobre Eles Voltam, o Inácio Araújo comentou em seu blog na Folha que havia uns tantos de Kiarostami, Hitchcock, Bresson, Rossellini e, puxando o Alcino Leite pra conversa, também Antonioni no filme de Marcelo Lordello, todos nomes que tendo a concordar, com maior ou menor intensidade. Pensando bem, o Hitchcock eu não chego a ver ali, mas é um trabalho capaz de dialogar com toda essa gente grande, sem dúvida.

Mas faz mais de uma semana desde que assisti a Eles Voltam no Cine Cultura e a lembrança de Truffaut ofusca todos esses. A menina sozinha, depois encontrada e desencontrada; as companhias inesperadas; o sono solitário e independente, quase atrevido; o flagrante na piscina e, pouco depois, já na água, as curtas conversas aparentemente desimportantes sobre a vida; a visita à praia, entre família e uma recém conhecida; os estranhos retornos, reencontros, a menina já um tanto diferente, e incapaz de não contestar frente a frente outra geração (porque, tão jovem, sente que a breve experiência vale tudo, e talvez não esteja de todo errada), à mesa do café da manhã, farta e talvez excessivamente acolhedora.

O que se tem aqui, a princípio, é um filme de abandono. Um casal de irmãos largado pelos pais à beira da estrada. Uma lição aplicada por conta de uma briga, supõe-se. Lá são deixados, e lá devem se virar. Ele, mandão e pouco paciente, mais velho, se vira primeiro. Ela, de nome Cris (Maria Luiza Tavares), então sozinha, toma seu rumo. Encontra pessoas, faz amizades tão fáceis de evaporar, conhece gente e lugares que provavelmente não conheceria não fosse o acaso do abandono inicial. Porque, de certa forma, Eles Voltam é também sobre o protecionismo sufocante, as preocupações de estar "solto por aí" em "lugares que nem se imagina", e não num carro, num condomínio ou atrás do portão gradeado duma garagem.

Acho que a primeira meia-hora, ou quase isso, é toda na estrada, quase sem falas. Lordello toca esse começo tão bem, dando tempo às cenas, ao rosto pensativo e intrigante - ela nunca se desespera - de Maria Luiza, que embora me lembre Truffaut em sua trajetória, talvez tenha olhos de Godard (do nada, e no nada, ela resolve fazer uma panorâmica da estrada à sua frente), que por um instante não nos perguntamos se tudo se passaria ali, ao lado da rodovia. O filme, que aos poucos se torna menos sutil, precisa desses bons minutos, e é preciso coragem para mantê-los, fazer cinema daquilo, do "nada" aparente, e, enfim, soltá-lo no mundo.

Essa não discrição de Lordello, por sinal, encontra lugar no fato de termos em Eles Voltam a perspectiva de uma garota de doze - ou onze? - anos. Não há nenhum receio na distinção de classes que o cineasta quer apresentar, entre aqueles que Cris esbarra no caminho e a preocupadíssima recepção dos entes queridos. Ironicamente, o único perigo real presente no longa não se destina a Cris ou ao seu irmão; sequer aparece na tela, ainda que seja revelado no momento certo.

O rápido confronto com o avô, por sua vez, deixa claro o poder da experiência passada pela garota. No entanto, mais importante que o enfrentamento em si, direto e simples, talvez seja a vontade de enfrentar, e, no caso de Lordello, o que me parece ser uma vontade de fazer com que Cris passe a existir. Pois o primeiro plano de Eles Voltam, hoje penso, não poderia ser diferente: alto, muito aberto, as estrada e os carros distantes, e aqueles dois mal são pessoas, e sim apenas dois pontos arremessados num filme. Depois são filmados cada vez mais próximos, os rostos muito fortes, e Peu (Georgio Kokkosi), o irmão, também deixa a impressão de que daria outro bom filme, mas ele segue pro lado que a câmera prefere não ir. A riqueza de Eles Voltam parece estar nesse processo de transformação da menina Cris (não de uma garota qualquer; dela, aquela experiência é dela), captado por Lordello com tamanha naturalidade.

Truffaut foi o grande cineasta das faces infantis. Filmava como poucos a primeira juventude, curiosa e, ironicamente, em certo conflito com a educação e o aprendizado. O melhor elogio que tenho a Lordello é que seu Eles Voltam leva a uma vontade de rever, mais uma vez, Os Incompreendidos (1959). E, assim como Truffaut e Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, seria um prazer visitar Lordello e Maria Luíza Tavares/Cris mais três ou quatro vezes em filmes futuros.

segunda-feira, 31 de março de 2014

RoboCop (2014)



O novo RoboCop e o Inmetro

Num território tão desvantajoso quanto o dos remakes de obras cults, vigiados por apreciadores dos originais a cada notícia e imagem que apareça na mídia, é preciso, em primeiro lugar, dar o devido crédito de termos aqui no mínimo uma refilmagem (ou atualização, me parece mais apropriado) diferente de sua fonte (quem quiser algo igual ao original, que reveja o original, não?) e aparentemente interessado em seus próprios objetivos, que não são poucos. Em certa medida, o RoboCop de José Padilha flerta mais abertamente com o sci-fi, agregando pequenas e curiosas discussões que, embora dignas de contos de Philip K. Dick, nunca são de fato aprofundadas, limitando-se a passar de raspão por elas.

Em suas ambições, esse novo filme amplifica seu universo e tenta fazer o mesmo em relação ao "mal necessário" que seria uma polícia robotizada num futuro próximo. Na melhor cena do filme, a câmera acompanha uma tentativa de fuga de Robocop logo após acordar num laboratório, passando por centenas de trabalhadores e revelando, enfim, que parte do história não ocorre nos Estados Unidos e que existe ali uma logística de produção nada menos que atual (o ambiente clean e branco parece sinalizar para a Apple, aliás).

Há também uma ânsia por percorrer vários canais de debate, às vezes tateando sem muita certeza do que dizer e onde chegar, feito a parábola dos cegos e o elefante. Sensacionalismo televisivo, corrupção policial, melodrama familiar, ética científica, rivalidade entre homem e máquina, vingança, tudo isso entra no roteiro, de alguma forma espelhando as conexões que o diretor brasileiro já propunha em seus dois Tropa de Elite. Aqui, no entanto, montagem e direção parecem suar para deixar os lados todos perfeitinhos, como se brigassem com um cubo mágico por duas horas.

Entretanto, por mais que sejam diferentes e tenham de ser diferentes, o princípio de ambos os filmes é a violência. É ela o elemento que dá liga, e é ela, também, o grande tema de Padilha desde o documentário Ônibus 174 (2002), até hoje seu melhor trabalho. No caso de RoboCop, de algumas maneiras a versão atual parece pedir por mais violência gráfica do que o original - e brilhante - dirigido por Paul Verhoeven em 1987. Mas não há uma gota de sangue. Não há nada para horrorizar o público e deixá-lo intrigado e incomodado com sensações mistas, porque uma violência G.I. Joe sempre será OK ao olho nu.

Temos aqui, então, um filme que se coloca diante de questões em torno da violência (urbana, mundial, simbólica, pessoal), mas se esconde dela. Cheia de receio em mostrar homens explodindo ou mesmo tiros em pessoas, a câmera ora filma de longe, ora aproveita a perspectiva do personagem cameraman para tremer e se virar pra um lado seguro, ou então uma fumaça de explosão oculta todo o campo de visão, ou simplesmente os inimigos caem como sacos de areia, secos e neutralizados.

A armadilha que vitimiza o policial e homem de família Alex Murphy (Joel Kinnaman, em atuação andróide antes e depois da armadura), posteriormente levando-o à sua única opção de vida, que seria aceitar sua transformação em um experimento criado por um empresário milionário oportunista (Michael Keaton) e desenvolvido por um cientista (Gary Oldman), tampouco escapa do acanhamento em relação a mostrar ou não mostrar uma violência mais explícita. Porque, afinal, a cena é premeditada, é anunciada antes de acontecer, deixando o espectador apenas no aguardo de sua confirmação, que já vira em cena anterior a preparação da tentativa de assassinato do personagem. Um pouco mais de cuidado e preocupação com a integridade do nosso olhar e teríamos cintos de segurança e airbags nas fileiras do cinema.

No delicioso carro desgovernado que é o RoboCop de 1987, obra que jamais seria realizado hoje, o Alex Murphy de Peter Weller se via num covil de criminosos insanos, cercado por uma série de possibilidades brutais que só se revelavam no exato momento em que eram executadas. Naquele filme, mas não apenas nele, Verhoeven era um mestre do incômodo e do estado de alerta, da tensão criada pela desconfiança de que qualquer coisa pode acontecer ali, naquele momento. Sem avisos, sem tempo de fechar os olhos ou virar o rosto.

Quase como um homem-bomba infiltrado em Hollywood, Verhoeven fazia de seu RoboCop um reflexo alucinado de uma sociedade norte-americana (Detroit, para ser mais específico) que se engasgava em altos índices de violência. O longa de 87 se permite embriagar-se dessa agressividade, fazendo-se irresistível mas também difícil de olhar.

A questão, logo, tampouco poderia ser mais atual, sobretudo no Brasil (o que sugere uma oportunidade desperdiçada por um cineasta brasileiro em sua produção de maior visibilidade): uma violência policial, patrocinada por empresários e apoiada por Estado e interesses políticos, seria mais "aceitável", não importando seu equivalente potencial de desgraça e feiura?

Na trama do novo filme, o rosto de um homem num robô é uma clara tentativa de humanização seguida de aprovação da opinião pública, uma nova investida estratégica de uma força policial que literalmente se desumanizou com o tempo. Em cena um tanto cronenberguiana, Murphy se descobre ainda Murphy, mas com o desafio de lidar com uma nova ideia de corpo e, não muito atrás, origem. O conceito de um robocop não completamente autômato surge da noção de que ele é uma cria consequencial de um sistema descontrolado e, portanto, parte desse sistema e, enfim, de sua violência. Porque é ela que guiará determinados tipos (ou níveis) de aceitação, para não dizer aprovação, desse espelho de um futuro proposto.

O problema é que, neste caso, se não há sangue, não há questionamento, e apenas o original de Verhoeven demonstra compreender este ponto. No que talvez seja medo de chocar o que tem tudo pra ser seu maior público (às vezes arriscando desviar o interesse para outras questões, mais próximas da ficção-científica, como já dito), o filme de Padilha evita escancarar a violência na tela e acaba por transformar seu Robocop em um herói fácil, algo que o longa de 87, com toda aquela demência visual e satírica, tão apreciada por Verhoeven, nunca deixava acontecer. Pelo contrário, na verdade: aquele RoboCop é de uma rara esquisitice, pois enquanto cabe a ele o papel de mocinho upgrade num universo onde há bandidos a serem combatidos, ao mesmo tempo o natural sentimento de prazer que o espectador teria em acompanhar os feitos desse herói produzido é intimidado pela possibilidade de uma mão e um braço explodirem ou um carro atropelar e estourar um homem derretido por líquidos tóxicos. No longa de Verhoeven existe o combate ao crime, existe a vingança, os vilões derrotados, mas antes disso, bem antes, a primeira coisa a ser lembrada são essas imagens grotescas e despudoradas.

Este Robocop geração 2014 nasce pronto para o boneco action figure, pois é fácil abraçar suas ações num filme tão tímido visualmente. Quando a população vibra com sua presença, não há ambiguidade. É mocinho inegável e aprovado pelo Inmetro, o que talvez explique um sujeito na minha sessão que se empolgava e batia palmas a cada guinada do Robocop a uma missão. Ele comprou o heroísmo adolescente, por mais que ao final o filme tente deixar mastigada sua ironia.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mud, Trapaça e O Lobo de Wall Street



Sobre meninos, trapaceiros e lobos

Às vezes convém falar de dois ou três filmes de uma só vez, pois de alguma forma eles se comunicam ou dividem o ar que respiram. No caso de Amor Bandido, Trapaça e O Lobo de Wall Street, são filmes que parecem pisar em terreno de bandidagens tipicamente norte-americanas, exercendo algum efeito de familiaridade, de já ter visto aquilo antes, de reconhecer essa cultura.

Amor Bandido

Amor Bandido ("Mud" no original, 2012), talvez o melhor de Jeff Nichols, que vem sendo observado mais de perto desde O Abrigo (2011), se comporta como um conto sulista dos EUA: em linhas gerais, dois garotos de Arkansas encontram um barco abandonado numa ilha e, mais importante, um sujeito que ali vive, chamado Mud (Matthew McConaughey), e que parece fugir de algo.

A estrutura não é novidade: envolto de certo mistério e carisma (o papel faz parte dessa fase absolutamente incrível de McConaughey), Mud está sempre no mato ou na prainha medíocre da tal ilha, com suas únicas vestimentas, que se resumem a botas, jeans e camisa branca; e uma pistola fincada nas costas, "para proteção".

O homem fala como um sabichão, papos que lhe dão um ar de misticismo. Aparece meio que do nada para os garotos, e Nichols filma essa sua introdução como se visualizasse nele um personagem dos contos de Flannery O'Connor, escritora que retratava um sul norte-americano muito específico, das profundezas, e o fazia brilhantemente. Na areia, os jovenzinhos notam pegadas estranhas, andam um pouco e, como se tivesse brotado da terra, Mud está ali, atrás deles, como se fosse onipresente.

Nichols não chega a ser pessimista (ou realista, como lembraria Cohle, o investigador de McConaughey na bela série True Detective) como algumas das mais famosas histórias de O'Connor, é verdade. O desfecho de seu filme beira o pieguismo, para não dizer covardia. Mas a composição do personagem exerce atração similar, assim como a dinâmica com os garotos. O resto, a trama da máfia, não tem tanto fôlego, ainda que, ironicamente, esteja lá justamente para movimentar a história para um rumo, uma solução, quando o que há de mais interessante é o fato deste ser, também, um conto sulista de amor, em que um garoto, alimentado pelo clássico desespero da infância que é a separação dos pais, se apega à ideia de amor mais próxima e mais isolada de sua realidade. Um bandido ilhado à procura de sua mulher idealizada é como um baú de tesouro para um menino despedaçado.

Trapaça

Não entendi o que David O. Russell (Três Reis, O Lado Bom da Vida) quis com este aqui. É uma homenagem a um tempo e a certo tipo de cinema, como sugerem as nostálgicas telas das produtoras antes de o filme começar? Seria uma tentativa de homenagear ou emular o cinema de Martin Scorsese, o que cairia num risco muito grande, pelo fato de, bem, Scorsese não apenas estar vivo e chutando muito bem, mas por também ter acabado de realizar um filme sobre trapaceiros, e um dos melhores de seus últimos anos? Talvez uma reflexão acerca do que é real e do que é mentira, a exemplo de um diálogo entre os personagens de Christian Bale e Bradley Cooper na cena do museu, mas que nunca parece ir muito adiante, subjugada pela própria trama em si?

Trapaça, que concorria a 10 Oscar (levou nada), lembra um jogo de cartas mal distribuídas, com várias possibilidades em mãos, todas elas destinadas ao seu próprio beco sem saída. A sensação inicial de homenagem é mecânica, relegada a figurinos e música; emular Scorsese seria se contentar a ser um "sub-", um maneirista a ser desmentido logo na sessão da sala ao lado; e, enfim, a discussão entre o que há de autêntico e falso sendo lembrada quando convém, às vezes de maneira muito óbvia ("Você tem cabelo liso, mas você o deixa encaracolado porque você precisa, todos nós precisamos", esse tipo de coisa).

O filme, claro, não é um completo desperdício. Nem chega a ser ruim, na verdade. Só me parece ser facilmente esquecível. Ainda assim, há cenas muito boas. Minha favorita é a primeira, com o trambiqueiro interpretado por Bale dedicando um bom tempo à arrumação de seu cabelo desastroso. A cena é só isso: Bale, trajes setentistas, personagem um tanto ridículo (estamos mais para uma comédia, afinal), ajeitando o cabelo em frente ao espelho, tentando acertar um penteado minimamente decente, com todo o cuidado e trabalho que isso exige. É simples, sem falas, e resume ali, em algo tão patético, a questão do fingimento, da enganação, do, enfim, hábito da trapaça, tão presente no filme e ao mesmo tempo tão engolido por uma história que talvez não precisasse de tantas voltas (por mais que a menção histórica a Meyer Lansky seja interessante, era realmente preciso Robert De Niro como um novo obstáculo, cansando ainda mais um filme já cansado nos seus 40 minutos finais?).

Russell é melhor quando se atém ao simples. No começo de O Vencedor (2010), colocava Bale, irmão do protagonista, para surgir pelo extracampo, seus braços magros desferindo socos no ar e revelando sua presença na cena. Uma cena que também parecia capaz de sintetizar quase todo o filme, ou o que tem de melhor, a relação entre os dois irmãos.

Em A Trapaça, o filme parece crescer somente longe da trama (o que daí já se tem uma diferença em relação a Scorsese, em que a trama geralmente está em perfeita harmonia com o que há de mais íntimo nos personagens), quando se percebe isolado: Amy Adams sem maquiagem depois de tantos minutos sendo filmada produzidíssima; a conversa ao telefone entre Adams e Cooper, ambos com bobes segurando os cabelos; são pequenos momentos que não se esforçam demais, e viram algo maior pelas mãos de um elenco muito bom, mais que pela direção de Russell, que parece pensar primeiro na trilha sonora, ou numa ideia de como um filme de trapaceiros deveria ser. Perde-se a conta de quantas vezes ele aproxima, em velocidade, a câmera dos atores olhando para frente, uma marca scorseseana que aqui parece um tique, de tão repetitivo.

Para um diretor que vinha se mostrando um autor, vir com O Lado Bom da Vida num ano e Trapaça no outro é bem decepcionante. Mas, vai entender, a crítica norte-americana gostou, e a Academia também.

O Lobo de Wall Street

Poxa, notaram que Martin Scorsese é exagerado depois de 40 anos? Porque é esta que tem sido a queixa mais comum em relação a seu novo filme, não? "Exagerado", "excessivo", como se o cinema (e sobretudo um cinema de autor, como o de Scorsese) tivesse algum compromisso com alguma ideia de realidade. O Lobo de Wall Street é histérico, e de uma histeria maravilhosa, sem dúvida, mas nada que seja surpreendente vindo do cineasta. Curiosamente, li por aí que, comparado ao livro de Jordan Belfort, Scorsese até pega leve, vejam só.

Desde Caminhos Perigosos (1973), quase todos os filmes de Scorsese se entregam ao excesso, ao estouro. Reclamaram disso em Vivendo no Limite (1998)? Não me recordo, mas sempre achei dos mais subestimados. E de O Rei da Comédia (1992)?

DiCaprio, aliás, talvez interprete aqui seu primeiro papel scorseseano com ecos de Robert De Niro. Não que o novo preferido do cineasta atue de modo semelhante, mas o papel de Belfort, o tal lobo, rico e drogado, cultiva cenas que espelham aquela grande fase entre os anos 1970 e 1990. No papel da segunda mulher, Margot Robbie tem muito de Sharon Stone em Cassino, e a briga entre o casal, culminando no bebê colocado em risco, reflete um desses momentos. Temos ali o Scorsese que todos aprendemos a admirar.

Mas temos também o Scorsese dessa "fase DiCaprio", se for permitido o atrevimento de dividir sua obra em função de sua parceria com os dois atores (observação e mea culpa: não é, haja visto os grandes filmes que Scorsese fez sem eles, como Alice Não Mora Mais Aqui, A Cor do Dinheiro e o já mencionado Vivendo no Limite, fora os documentários). Há em O Lobo de Wall Street esse descontrole, essa ansiedade e nervosismo que curiosamente lhe fazem tão bem, que criam cenas que jamais serão esquecidas quando olharmos a carreira de DiCaprio em retrospecto, quando, batamos na madeira, ele talvez envelhecer tão mal quanto De Niro, que hoje em dia pouco faz de relevante, mas tem seu legado. Deve ser o ponto alto deste ator que vem acertando mesmo quando os filmes não lhe são à altura, como o novo O Grande Gatsby (2013), de Baz Luhrmann.

Scorsese parece compreender que, no seu cinema, a única maneira de encarar o universo de Wall Street é abordá-lo como um espetáculo circense. O circo, admitido desde a cena inicial, em que um anão é arremessado ao alvo, abre espaço para um Scorsese que não se via tão enérgico desde Cassino (1995), com o qual parece fazer, juntamente com Os Bons Companheiros (1990), uma espécie de trilogia do dinheiro. O espetáculo não é novidade, o próprio cinema sendo um tanto responsável por isso (o Gordon Gekko de Michael Douglas, sempre o primeiro a ser lembrado).

Agora, pra fechar, lembremos por um instante de Trabalho Interno (2010), aquele documentário insuportável graças à sua inabilidade de desviar do economiquês. Um filme que, no fundo, não levava a nada, a não ser ao óbvio, que é circular em torno da alta criminalidade desse mercado. Na falta de evidências mais concretas, como se visse numa missão de incriminar aqueles empresários, o doc chegava mais próximo de acusá-los de usar drogas e sair com prostitutas, tentando capturá-los pelo viés da moralidade. Ou seja: um documentário que se propõe uma longa viagem, mas em dado momento prefere tomar um atalho.

O caminho de Scorsese em O Lobo de Wall Street é justamente o contrário: parte do que seriam detalhes imorais (sexo e drogas), adotando-os como brincadeiras, comédias de um homem prestes a desabar de tão alto, do cume da cultura do tudo-não-é-o-bastante.

Ao microfone, Belfort é um palestrante motivacional, o que ele acaba se tornando. O que há de hilariante é um truque, trapaça. Um personagem fadado à desgraça tanto quanto outros scorseseanos. É uma história bem triste, na verdade.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Quando Eu Era Vivo


Quando Eu Era Vivo e os cômodos eram mortos

Existe alguém com um norte tão bem definido no que diz respeito a fazer cinema de terror e horror no Brasil quanto o Filmes do Caixote? Cinema de terror que tenha um tato minimamente comercial, no caso. Que tenha alguma facilidade de chegar ao público médio, considerando, ainda, a falta de tradição que temos no gênero (José Mojica é um caso ímpar, cuja obra se tornara cult em relação a si própria).

Marco Dutra e Juliana Rojas sempre ousaram embrenhar por esse lado. Dirigindo em dupla, realizaram curtas que se assumem como cinema de gênero (O Lençol BrancoUm Ramo), assim como Trabalhar Cansa (2011), primeiro longa dos dois e que também se entrega ao fantástico. Em Quando Eu Era Vivo, Dutra dirige solo, enquanto Rojas (que filmou o seu próprio curta fantástico em 2012, O Duplo) põe as mãos na montagem. Parecem saber o que quer, e isso fica cada vez mais evidente no que têm filmado.

Acho que foi o José Geraldo Couto, no Blog do IMS (Instituto Moreira Salles) o primeiro a observar, em texto, certas semelhanças entre Quando Eu Era Vivo e o cinema de Roman Polanski. Couto chega a exemplificar com uma cena específica de O Inquilino (1976), mas a lembrança também pode chegar a O Bebê de Rosemary (1968) e até mesmo Repulsa ao Sexo (1965), no que já teríamos aí uma trinca bem certeira do autor polonês.

Polanski sabia - e ainda sabe, como podemos verificar no recente Deus da Carnificina, de 2011 - adoecer seus espaços e, com eles, os personagens que ali abrigam. É um mestre em transformar espaços fechados em algo um tanto demente: quartos, cômodos, apartamentos inteiros. Um conjunto de paredes, algo tão sólido, capaz de se colocar como uma presença a mais, uma coisa a ser sentida, não raramente com os piores efeitos possíveis.

Na história de um homem (Marat Descartes) que volta a morar temporariamente com o pai (Antônio Fagundes) após se separar da esposa, Quando Eu Era Vivo ecoa muito dessa influência, confirmando um cineasta que produz por meio de uma cinefilia que não morre em si mesma. Porque Quando Eu Era Vivo compreende certas regras, com as quais Dutra acaricia no atacado e no varejo, às vezes brincando com clichês do gênero (a gaveta, a maçaneta), outras vezes levando a sério, embora com aquele sorrisinho de lado, crendices e folclores facilmente reconhecidos por nossa cultura de superstição. A cena em que Descartes, sentado numa cadeira, é "benzido", é um acerto absoluto, pois, além de saltar do cômico para a tensão extrema (e reveladora), traz toda uma carga de crença popular, tão comum ao brasileiro, inclusive a classe média, justamente o campo de exercício do Filmes do Caixote.

Após bela abertura de créditos iniciais e uma introdução com gravações de arquivo que, colocadas ali no começo, parecem logo estimular a imaginação macabra que será fundamental para o filme, o pai, recebendo seu primogênito, reapresentará ao filho o prédio e, sobretudo, o apartamento. A cada olhada de Descartes pela sala, Dutra devolve com um plano de ponto de vista, nos mostrando o que o protagonista olha, vê e observa, numa espécie de raio-x inicial do lugar. Terá de dormir na sala, uma vez que seu antigo quarto está agora ocupado por uma estudante de música (Sandy), que pode não ser a única inquilina ali dentro.

A habilidade de canto da moça possui papel fundamental na história (baseada em A Arte de Produzir Efeito sem Causa, de Lourenço Mutarelli), o que faz de Sandy o cajado a matar duas capivaras de uma vez, muito embora pareça à vontade somente com 50% da faceta da personagem, os outros 50% talvez carentes de alguma força e impacto, principalmente ao lado de Descartes, impecável no seu mix de lassidão e "enfermidade".

Descartes leva seu personagem, Júnior, a novos estágios de delírio. Obcecado pelas antigas gravações em VHS e pela memória da mãe, por sua vez chegada num ocultismo, não hesita em investigar e desenterrar o passado familiar. Faz isso de maneira concreta, resgatando objetos e remodelando o apartamento. O espaço fechado finalmente toma corpo, assumindo-se macabro. A possessão de um lugar cotidiano.

A câmera de Dutra pode não entortar e suas imagens podem não se impregnar de uma elasticidade febril como em Polanski, mas a apreensão de que algo estranho e "vivo" se esconde por trás de tanta tralha e decoração peculiar é bastante similar. Há em Dutra certa rigorosidade e estabilidade contínua dos planos, até mesmo delicadeza, que fazem desse apartamento algo íntimo e, portanto, assustador conforme tal familiaridade passa a ser associada ao inexplicável. Essa sensação vai desde, mais uma vez, gavetas e maçanetas, objetos tão comuns do dia-a-dia e eternamente requentados pelo cinema de gênero, até um boneco do Fofão filmado de modo encapetado e capaz de remeter à infância de muita gente; aquele receio do que pode estar à espreita no cantos da casa, atrás da mobília, nos corredores mal iluminados, na esquina da porta, no olhar de um boneco. Um filme de clima, sem dúvida.

A infância, por sinal, age como tiro de largada do longa. É a fase em que mais estamos sujeitos a nos impressionar, afinal. Mesmo que venha a adquirir um aspecto redundante e repetitivo, retendo um pouco o ritmo do filme, é no material das fitas em VHS que a infância é exposta. Não por acaso, em várias momentos Descartes lembra uma criança crescida.

Se Quando Eu Era Vivo não esconde ter sua raiz no núcleo familiar apodrecido (por mais que o último diálogo sugira um desfecho mais leve do que de fato é), é da infância que nascem os incômodos. O primeiro registro em VHS, logo no começo, é quase uma versão condomínio de causos contados ao redor de fogueira de acampamento.

Dutra fez aqui um filme de bruxaria dos bons. Que o cinema brasileiro não tenha medo dele.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Frances Ha

Amores modernos

Vi com atraso o Frances Ha (2012), muito comentado/divulgado em terra brasilis por ser coprodução brasileira, com dedo de Rodrigo Teixeira no meio. Salvo engano, foi bem visto por aqui, e há alguns dias esteve de novo em cartaz em Goiânia, na semana da Retrospectiva 2013 do Cine Cultura, tendo sido um dos sete mais votados pelo público.

O filme é dirigido por Noah Baumbach, que em 2005 fez o muito bom A Lula e a Baleia e depois não engatou nada de muito interessante (Margot e o Casamento em 2007 e O Solteirão em 2010). Até chegarmos a este Frances Ha, um aceno dos mais graciosos para o cinema francês, a Nouvelle Vague, sobretudo para Leos Carax e François Truffaut.

Ou, como completou um amigo, não um aceno, mas uma levada pra cama, uma esfregação, umas pegadas, tudo sem abandonar a ternura, em nenhum momento.

Conhecemos um pouco da vida de Frances (Greta Gerwig), moça - ainda nos 30, afinal - de Nova York que não tem residência própria, nem namorado, tampouco emprego. Divide apartamento com a melhor amiga (Mickey Summer), é considerada "inamorável" por outro roomate e é apenas aprendiz de dançarina numa companhia de dança que pode ou não contratá-la para trabalhar.

Dito assim, soa como uma dessas comédias românticas previsíveis, em que todos os problemas começam a ser resolvidos a partir do momento em que a protagonista encontra um cara. No entanto, Frances Ha, filme e personagem, ao contrário de qualquer coisa com Zooey Deschanel, é mais íntimo da autenticidade do que se supõe.

Entre as dificuldades de se virar sozinha, temos uma mulher - já nos 30, afinal - a (re)descobrir sua identidade. Para tanto, a interpretação de Gerwig é uma exatidão, fazendo de Frances um traço alegre e meio torto, um hífen embaçado a dividir uma moça-mulher, e Baumbach a filma assim, quase como uma menina grande. Há nela certa timidez e insegurança, mas também explosões espontâneas que a levam, enfim, a aproximar-se de si mesma e, não surpreendentemente, da França, que é sobretudo uma aproximação do próprio filme.

O início, coleção de cenas que resumem a proximidade entre Frances, cujo nome lembra "França", e sua amiga de nome francês, Sophie, parece resumir a força do filme. Estão elas, sempre juntas, no parque, na lavanderia, no apartamento, quase eternas. Não demora para que nossa protagonista perca o que parecia ser uma de suas bases e tenha que aprender a se reconfigurar, se jogar no mundo, movida por sentimento, porque é assim com boa parte das pessoas, certo?

Ainda que singelo, esse começo é muito poderoso. Entrega-nos um filme de amor. Não o amor romântico (inexistente no filme, chegando a ser descartado ao menor indício de que algo pudesse acontecer, como num diálogo entre Frances e um de seus dois roomies; é, não há clima de Jules e Jim aqui), mas o amor de amizade. E é dessa relação afetuosa que surge a paixão pelo cinema moderno francês, um "modern love" como o que serve de trilha para a corrida de Frances no meio da rua, espelhada no pique dado por Denis Lavant em Sangue Ruim (1986), de Carax.

Frances corre como Lavant (embora para o outro lado, para a esquerda, porque essa corrida é dela), dança molecamente à beira de uma fonte e do nada decide viajar pra Paris por apenas dois dias. Enquanto isso, Baumbach dosa seu longa com cortes descontínuos, trilhas de Georges Delerue e um preto-e-branco ao mesmo tempo doce e insinuante, ou seja, um pacote Nouvelle Vague que faz da visita à capital francesa, tão impetuosa para a personagem, algo natural, para não dizer inevitável. Todos os contratempos parecem levar àquele destino, de importância física (para a protagonista) e simbólica (para o filme), cidade em que, não por acaso, incentivará cena de declaração das mais bonitas.

Felizmente, o filme está longe de ser refém de suas referências, evitando se transformar numa brincadeira interna entre cinéfilos (porque, como já disse uma vez, com o amor moderno pelo cinema também nasce e se desenvolve uma faceta um tanto insalubre da cinefilia). Toma logo uma vida própria, lá no começo mesmo, naquelas brincadeiras joviais que ignorariam qualquer censura adulta. O plano final, que serve de fundo para os créditos, não deixa a menor dúvida: Frances Ha, filme e personagem, finalmente oficializam seu encontro.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Ninfomaníaca: Volume 1



Punhetagem

Antes de Ninfomaníaca de fato começar, o espectador será informado de que, embora autorizada por Lars von Trier, esta é uma edição censurada. Inicialmente dividido em dois volumes enxutos para a estreia nos cinemas, o filme terá sua versão completa lançada no Festival de Berlim, em fevereiro. Uma hora a mais de sexo, dizem, para que o público, que pensava e talvez pense ser uma coletânea de cenas pornográficas, possa, quem sabe, tentar compensar suas decepções nesse aspecto. Porque Ninfomaníaca, até o momento, não tem nada que valha alarde. A não ser que o espectador, que tem acesso a tudo hoje em dia, mesmo quando não quer, ainda se choque com um boquetezinho mais ou menos visível ali na tela.

De todo modo, temos aqui a obra mais marketeira de von Trier, cineasta que faz questão de ser ele próprio uma espécie de release de imprensa. "Provocador", "polêmico" e "instigante" são adjetivos que parecem acompanhá-lo feito uma bula. No caso de Ninfomaníaca, cuja divulgação sugere mais criatividade que o próprio primeiro filme em si (os grandes lábios do cartaz eram usados em portas de metrô na Europa, se abrindo a cada entrada e saída das estações), há um claro planejamento de que seja visto/vendido/comprado três vezes.

Por enquanto, o que se tem é somente um meio filme, e sem o menor esforço para concluir sua primeira parte (num longa que, como de hábito em von Trier, já é dividido em capítulos), tornando difícil qualquer tentativa de desenvolver um pensamento mais concreto em torno do que assistimos. Poderíamos lembrar, apenas a título de comparação, de Tarantino e seu Kill Bill (2003/2004), também dividido em dois volumes (e igualmente separado por capítulos internos), mas havia ali um fechamento redondo de sua primeira metade, com direito a cliffhanger novelístico e muito preciso, encerrado no corte seco, um fim. O Volume 1 de Ninfomaníaca desaparece num fade, indicando a conexão com um porvir.

Menos complicado que pensar num filme incompleto, porém, é observar o interesse de von Trier pela mulher e os enigmas que a cercam, nutrindo uma obsessão de certa forma obscura pelo feminino. Há, na obra deste autor, uma coleção de mulheres protagonistas em processo de esgotamento, estranhamente tentadas a cair dentro de uma espécie de fissura moral, o que acaba aprisionando-as em algum momento. Soa também como um percurso de aprendizado dos mais perversos (o melhor exemplo talvez seja Dogville, em que a Grace de Nicole Kidman aprende sobre aquele lugar, aquelas pessoas, sobre si mesma e, ironicamente, sentencia a pequena vila à desgraça), o que nos leva às contantes acusações de misoginia recebidas pelo diretor.

Em Ninfomaníaca, Joe (Charlotte Gainsbourg), largada num beco após provável espancamento, é encontrada e acolhida por Seligman (Stellan Skarsgard), falante senhor que tentará racionalizar, através de metáforas e alusões com pescaria, matemática, música e literatura, a bagunça que é aquela mulher tão íntima do acaso.

Essa relação é claramente psicologizada por meio da encenação de um divã "casual", Joe deitada numa cama, a contar suas aventuras sexuais (flashbacks que trazem Stacy Martin no papel de Joe, sendo dela as cenas mais "safadas") e os porquês de se considerar uma má pessoa, e Seligman numa cadeira, sendo ele o início de um fluxo de reflexões que, se não soam pseudos só de ouvir, envolvem Ninfomaníaca numa entediante jornada de obviedades cinematográficas.

No diálogo sem fim dessa sessão de psicanálise de história de pescador, por exemplo, boa parte da troca de falas parece montada para que Trier ostente seu conhecimento erudito. "Você tem um livro na cabeceira. Tem lido? - Relido, na verdade. - O que é? - Edgar Allan Poe"; "Legal seu aparelho de som. - É um toca fitas. - Tem alguma fita nele? - Sim. - O que é? - Bach"; algo assim, ou algum comentário a partir de Epicuro, gerando um pretensiosismo jogar-verde-pra-colher-maduro que não parece encontrar lugar na tela.

Até então, as pretensões de von Trier me pareciam pelo menos servir a certa criatividade de cinema, a um interesse no filmar e narrar. Em Anticristo (2009), além de os personagens serem movidos pelo pretexto (ainda que raso) da elaboração de uma tese acadêmica, tornando assim a erudição um elemento pertencente de toda a situação (e de uma ironia bem mais curiosa, por conta dos simbolismos religiosos), não é todo dia que se vê genitálias masculinas e femininas serem tratadas daquela maneira.

Em Ninfomaníaca, contudo, as contantes reflexões, acompanhadas por imagens redundantes, passam a impressão de apenas ilustrar um álbum de figurinhas metido a besta. Se há, por um lado, a procura pelo distanciamento do espectador ao inserir números, cálculos, gráficos e cenas documentais, há, também, um rápido cansaço dessa repetição que parece revelar um diretor que não tem muito a dizer (e por dizer também me refiro a filmar) desta vez. São vários os momentos em que Seligman ou Joe descrevem algo e von Trier vai lá colocar na tela a imagem do que é descrito. "Ele aguardava na porta, como um gato...", e temos a imagem de um gato; "...mas se movia como um leopardo", e, surpresa!, a imagem de um leopardo; não muito diferente daquelas reportagens esportivas, em que a voz em off anuncia que "o Goiás está voando baixo no Brasileirão" e é acompanhada pela imagem de uma garça dando o rasante num lago qualquer. Num filme de duas horas, isso logo vira um porre de previsibilidade.

Com exceção da cena em que Joe "lacrimeja" de maneira, digamos, um tanto distinta ao perder um ente querido (pois até a cena com Uma Thurman no papel da esposa traída me parece óbvia em seu humor), nada destas primeiras duas horas de Ninfomaníaca se atreve a ir além do esperado, por vezes beirando o patético, como quando von Trier exibe uma sequência de fotos de pintos. Para quem viu os recentes Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, e Um Estranho no Lago (2013), de Alain Guiraudie, filmes que lidam com o sexo e a sexualidade com tanto desprendimento (ok, talvez Kechiche nem tanto, mas ainda assim um belo filme de amor) e segurança do que mostrar, esse tipo de coisa soa como provocação infantil, nada mais.

Não há como negar, no entanto, o interesse pelo material. Sexo é a isca fácil, assim como prazer e desejo, seus elos imediatos. Mas não é sobre sexo, claro. Solidão, quem sabe?

Von Trier nos sugere, enfim, que a chave pode estar no personagem de Jerôme (Shia LaBeouf), rapaz ligado a uma memória e a algum traço do que poderia ser amor, ou algo próximo disso, espécie de charada que acaba soterrada diante de tanto bê-a-bá, overanálises, overexplicações e overdidatismos por todos os lados, o que, sem querer fazer um trocadilho, não evita a forte sensação de ser tudo uma mera punhetagem pau mole.

PS: por uma dessas felizes coincidências, o Cine Cultura exibiu na última semana o Sempre Bella [Belle Toujours, 2006), homenagem do grande Manoel de Oliveira a Bela da Tarde [Belle de Jour, 1967], de Buñuel, e que pode ser um antídoto para a bobagem que penso ser Ninfomaníaca. Filmes me parecem cultivar semelhanças, até porque Manoel é outro obcecado pela figura da mulher e pelas incertezas que acompanham este ser tão frequentemente encarado como impreciso, impreciso, ou, numa linguagem tão comum à literatura e ao cinema, misterioso. Mas com o velho cineasta português é aquela delicadeza e, melhor, aquela simplicidade que, na verdade, é apenas aparente. Sempre Bela tem 68 minutos, reflexões e confissões - sobre, sim, desejo, prazer, amor e sexualidade feminina - que surgem estimuladas não por um divã forçado, mas por um mero barman e uma sofisticação que se nota pelo filmar, pela atmosfera daquela gente que "vive" ali. Quando Husson, durante o concerto de uma orquestra, percebe a presença de Séverine na plateia do teatro, roubando por completo sua atenção, Oliveira chama um plano mais aproximado dos músicos, na tentativa de retomar o interesse do personagem de Michel Piccoli para a apresentação musical; é assim, na montagem, no domínio da linguagem do cinema, que em cinco minutos é possível compreender a existência de um enigma, de uma atração, de um abalo. Nada de quase seis horas lançadas em três edições diferentes, nada de análise psicanalítica "por acaso" e erudição mecanicamente ostentada, nada de questões e imagens óbvias. Manoel de Oliveira não precisa exibir nada do que conhece. Ele só precisa fazer um filme.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Vida Secreta de Walter Mitty (2013)

Ben Stiller e o kit enganação

Enquanto assiste a A Vida Secreta de Walter Mitty*, quinta investida de Ben Stiller na direção de um longa, o espectador pode considerar, por algum momento, revisar sua vida e se dedicar a outras prioridades. "Trabalhar menos, aproveitar mais a vida, ser feliz", essas coisas de autoajuda que, bem, dificilmente ajudam alguém (muito pelo contrário, aliás). E como todo filme que se esforça muito para mudar a vida de seu público, fracassa.

Aqui, Stiller interpreta o personagem do título, funcionário da revista ainda-impressa-mas-a-caminho-de-se-tornar-somente-online LIFE. Trabalha na equipe há anos e é acostumado com o cotidiano, vivendo vida não só tediosa como também entediante. Um cara cinza, ombros caídos, sem vida ("LIFE", sacaram?). Sua única via de escape é sonhar acordado, inventando versões alternativas para o que realmente gostaria de fazer em situações que, na verdade, nada faz.

Despertos ou não, sonhos são sempre materiais imagéticos de grande elasticidade. Por adentrarem em terreno onde tudo é possível, são cinematograficamente interessantes, sem limites de exploração. Stiller, no entanto, filma esse "vale tudo" como apenas um deck de cartas piadistas que, no fim das contas, querem dizer algo muito importante para as nossas vidas.

Mitty trabalha na seção de edição de fotos. A partir de um fotograma perdido, que deveria ser capa da última edição impressa da revista, caberá a ele a responsabilidade de cruzar o mundo a fim de encontrar item tão precioso.

Até alcançar seu objetivo, Mitty, auxiliado por interesse romântico (Kristen Wiig, uma zero à esquerda no filme), terá de descobrir o que são outras três fotos e segui-las. Três desafios, três pistas, descoberta de mundos novos, perigosos e aventureiros, quase como num conto infantil.

O problema é que Stiller, que pode ser um ótimo comediante mas não um ótimo diretor (sua tentativa de encarnar outros filmes como anedotas já soa como uma boba repetição), parece largar seu filme numa dúvida, o que seria curioso caso gerasse alguma estranheza, mas é simplesmente apático e um beco sem saída para algo tão fabricado: se as grandes viagens e experiências de Mitty são apenas parte de sua imaginação, eis um longa que não sai do lugar; por outro lado, se tudo acontece de fato, não importa, já que tampouco fica difícil identificar o fingimento de suas intenções, de sua "mensagem".

Para um filme que tem como meta acordar o público para a necessidade de desbravar, para o arriscar-se, A Vida Secreta de Walter Mitty mal disfarça o quanto é conservador. De tão próximo das células clássicas da indústria que o gera, tudo tem origem na busca do par romântico, da paixão (Mitty e a piscada virtual para a colega de trabalho). Mais que isso: Mitty irá se revelar figura paterna exemplar, e, portanto, a projeção de marido exemplar (a substituir um marido não tão exemplar).

Por fim, e de modo algum menos importante, não interessando o conjunto de lições supostamente aprendidas, o mistério da fotografia é entregue de maneira que Stiller parece julgar recompensadora. É na capa da LIFE, exposta para toda a população e observada por futuro casal de mãos dadas, como num comercial (e não seria?), que A Vida de Walter Mitty exibe sua desonestidade, valorizando tão sorridentemente nada mais que o trabalho e a família. O próprio filme é, assim, uma ilusão das mais baratas de se comprar.

*existe uma versão homônima de 1947, dirigida por Norman Z. McLeod.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

2013: Melhores


Ainda dá tempo?

Eu costumava ser mais entusiasmado com listas de final de ano. Fazia de melhores e piores. Religiosamente. Categoricamente. Ainda gosto, mas sem tanta excitação. É bom para mapear, ver o que o colega crítico/cinéfilo pode ter gostado ou desgostado diferente de você. Se gera alguma boa discussão, melhor ainda.

A cinefilia a qual somos afeiçoados, aquela que acabara germinando a nouvelle vague, surge acompanhada de algumas de suas próprias manias. Hoje isso é cada vez mais fetichizado, por vezes deixando-a a mercê do mero prazer do acúmulo. "Ver mais, ver mais, ver mais, listar, dar nota" (o que com a internet no travesseiro pode ser quase desesperador) e não ir muito além disso.

Não que não seja importante assistir a vários filmes. Eis aí uma base da cinefilia, afinal. Mas o consumo desenfreado do olhar às vezes pode revelar apenas isso: consumo.

Listas, TOPs, o que seja, podem ser apenas listas. Dependendo da veiculação, podem ajudar na carreira de um filme e também na memória em torno dele. Na melhor das hipóteses, em níveis um pouco mais pessoais, servem de guia rápido.

Desta vez não me sinto tentado a apontar os desagrados. Alguns são óbvios, e, no fim das contas, pra quê? De todo modo, para não passar no zero, nada foi tão árduo pra mim quanto a sessão de Os Miseráveis ainda no começo do ano, aquele musical torto e cheio de si.

Bom, meu pequeno guia de 2013, meus dez preferidos (lançados no Brasil), do que deu pra ver, são estes abaixo:

1) Tabu (2012), de Miguel Gomes
2) O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho
3) Depois de Lúcia (2012), de Michel Franco
4) Las Acacias (2011), de Pablo Giorgelli
5) Killer Joe (2011), de William Friedkin
6) O Mestre (2012), de Paul Thomas Anderson
7) Além das Montanhas (2012), de Cristian Mungiu
8) A Caça (2012), de Thomas Vinterberg
9) Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche
10) Amor (2012), de Michael Haneke

Ainda vale mencionar A Cidade é uma Só? (2013), de Adirley Queirós, pelo pequeno e inspirado raio-x de uma Brasília distante da imagem passada pela capital; Bastardos (2013), de Claire Denis, pelo desfecho esbofeteante; Um Estranho no Lago (2013), de Alain Guiraudie, pelo que esconde e pelo que não esconde num bosque; O Estranho Caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, por, em toda a experiência de seu cineasta, ser tão singelo ao manobrar imagens que remetem às origens do cinema (coisa que o compatriota Gomes também faz em Tabu, mas de maneira distinta) e fazer disso uma espécie de obsessão, ilusória ou não; Django Livre (2012), que mesmo ficando pra trás na escala Tarantino, é fruto de alguém que entende os meios de amplificar o cinema; e Gravidade (2013), porque, apesar de Cuarón insistir em rejeitar a simplicidade de duas pessoas aterrorizadas com o fato de estarem jogadas à sorte no espaço como se fossem bilboquês humanos, inflando seu filme com simbolismos de renascimento, num mix de ciência e criação que age como freadas irritantes no espetáculo que tem em mãos, ainda é uma baita experiência visual e sonora dentro de uma sala de cinema.

ps: não vi Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, e nem Um Toque de Pecado (2013), de Jia Zhang-ke.