sábado, 3 de novembro de 2012

Cinco curtas queridos da 12ª Goiânia Mostra Curtas

O Duplo, de Juliana Rojas

Durante a primeira semana de outubro, Goiânia teve o prazer de receber curtas-metragens de praticamente todo o país. O Goiânia Mostra Curtas chegou à sua 12ª edição, mais de uma década trazendo filmes de pequena duração, alguns deles revelando olhares iniciais de cineastas que podem construir carreira de interesse.
 
Mais uma vez abrigada pelo Teatro Goiânia, local da maior parte de suas edições, a Mostra deste ano ocorreu entre 2 e 7 de outubro e exibiu mais de quarenta curtas somente na sua principal Competitiva, a Curta Mostra Brasil. Em meio a estas dezenas de produções, cinco delas cativaram minha atenção o suficiente para registrar uma ou outra reflexão mais profunda, cinemas de tiro curto capazes de gerar inquietações mais extensas. Certamente mereceram a tela grande em que foram vistas, mas fica aqui a sugestão para, futuramente, procurá-los em telas menores.
 
Capela (SP, 2011), de Gustavo Rosa de Moura

Talvez o mais curioso de todos os filmes exibidos, Capela se divide em três partes: “Manhã”, “Tarde” e “Noite”, cobrindo uma tradicional festa da cidade de Capela, interior do Sergipe. Trata-se de um documentário com um carinho pelo experimental, capaz de conceber, com recursos tão simples, uma fascinante atmosfera apocalíptica durante seu registro festivo.
 
Há algo de espiritual em torno do curta, não apenas pelo seu título e nome da cidade, mas por conseguir, em seu caráter de documento, uma pequena sensação de fim do mundo, uma brincadeira séria com fogos enlatados que voam pelos céus e giram alegremente pelas ruas. No terço final, Moura parece enfeitiçado por esse descontrole, gente a pé e montada a cavalo tentando capturar e arremessar buscapés, latas cuspidoras de fogo. É insano e beira o poético, chegando a lembrar dos curtas experimentais de Apichatpong Weerasethakul, cineasta tailandês.
 
Capela foi o premiado do Júri Prêmio Especial ABD-GO. Trailer: http://mirafilmes.net/destaques/capela/
 
Desterro (BA, 2011), de Cláudio Marques e Marília Hughes

A Barragem de Sobradinho, construída durante os anos 70, obra do regime militar, tem papel importante no curta de Cláudio Marques e Marília Hughes. Há mais de 30 anos, a construção da barragem desabrigou quatro cidades (Remanso, Casanova, Feito Sá e, parcialmente, Pilão Arcado), que acabaram submergidas. Duas mulheres estavam lá: Thereza Batalha, registrando, com uma câmera Super 8, a remoção de mais de 70 mil pessoas, e Dona Pequenita, moradora de Pilão Arcado e a única a retornar à cidade, tornando-se a residente solitária do que se tornou uma cidade fantasma.
 
A riqueza de Desterro está em como ele revela o que de fato é. A própria Dona Pequenita surge como uma alma abandonada, sensação criada depois de Marques e Hughes filmarem o pequeno município esquecido por meio de uma série de planos de casas mortas e lugares ocos, sem vida, dando tempo às imagens. Um cachorro perdido faz aquilo tudo respirar, até que nos leva, com muita calma, ao que realmente interessa: a história que envolve estas mulheres, fortalecida pelas imagens de arquivo de uma intervenção governamental que, na bela dimensão trabalhada pelo filme, chegou a passar por cima de verdadeiras existências.
 
Corpo Presente (PE, 2011), de Marcelo Pedroso.

O curta de Marcelo Pedroso, diretor do longa Pacific (2009), um dos documentários mais interessantes a surgir no Brasil nos últimos anos, pode exigir certa paciência do espectador. Boa parte de seus 22 minutos é dedicada à preparação de um boneco-defunto, imagens que, se são estranhas no princípio, passam a sugerir sua relação com a morte. Pedroso filma com frieza e enquadramentos clínicos, cirúrgicos, praticamente fatiando este “corpo” com a montagem. Não há trilha, o que potencializa cada som desse procedimento, uma literal limpeza de corpo e, talvez, alma.
 
O que Pedroso parece fazer com Corpo Presente é nos colocar, com tanta secura, diante da inevitável certeza da morte e da eventual inexistência de um corpo, ainda que, como sugere o final, permaneça como memória. Boneco, corpo, caixão, cremação e cinzas constituem, aqui, um conjunto muito sólido, podendo gerar aquela incômoda sensação de desamparo que vez ou outra se faz presente em cada um de nós. O filme tem força.
 
Corpo Presente recebeu Menção Honrosa pelo Júri Oficial, ao lado de O Duplo, de Juliana Rojas.
 

Porcos Raivosos (PE, 2012), de Isabel Penoni e Leonardo Sette

Eis a sinopse mais atrativa da Mostra: um grupo de mulheres decide fugir ao descobrir que seus maridos se transformaram misteriosamente em porcos furiosos. Porcos Raivosos foi exibido na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes deste ano, sua primeira projeção pública.
 
No curta, Penoni (antropóloga e diretora de teatro) e Sette ficcionalizam um mito indígena ao mesmo tempo em que documentam a tribo, sobretudo suas figuras femininas, de modo dos mais intrigantes. As mulheres em questão são índias da aldeia dos Kuikuro e quase todos os 10 minutos de filme são centrados nelas, que se comportam de maneira ritualística e, a partir de certo momento, defensiva. O som do filme é uma coisa, sugerindo algo possivelmente ameaçador do lado de fora da tenda, com os diretores mantendo a curiosidade no talo.
 
Sette e Penoni podem ter feito aqui um belo casamento entre o documentário antropológico e a narrativa fantástica. A câmera encara as índias de frente, as quais rebatem o olhar com muita força, celebrando, por fim, uma captura que talvez signifiqu para o espectador ocidental um rico feminismo simbólico. Uma vez que a temática desta edição da Goiânia Mostra Curtas se concentrava em diretoras mulheres e a feminilidade no cinema, faria sentido. Bonito.
 
Teaser de Porcos Raivosos: http://vimeo.com/48182481
 
O Duplo (SP, 2012), de Juliana Rojas

Juliana Rojas esteve envolvida com a Mostra de inúmeras maneiras: debate, oficina de direção, encontro de realizadores e as exibições de Um Ramo (2007), seu segundo curta ao lado do parceiro Marco Dutra, e O Duplo (2012), trabalho mais recente e, desta vez, solo. É, além de tudo, uma protegida da produtora Sara Silveira, mulher por trás de, entre outras coisas, os filmes do grande Carlos Reichenbach, cineasta recém-falecido.
 
Trabalhar Cansa, primeiro longa de Rojas e Dutra, foi exibido em julho no FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiental. É um desses filmes que dividem opiniões em seu trajeto e, com isso, constroem um interesse a mais em torno de si, especialmente por sabermos que temos aqui uma dupla de cineastas interessada num cinema incomum no Brasil: aquele que flerta diretamente com o fantástico. Zé do Caixão foi um dos poucos, quem sabe o único, a criar carreira nesse sentido por aqui, e mesmo assim de um jeito só dele. Rojas e Dutra orquestram algo menos avesso ao comercial, muito embora ainda façam um cinema de nicho e da admiração pelo estranhamento, isso desde o primeiro curta dos dois, o mórbido (e ótimo!) O Lençol Branco (2004), em que uma mulher tem dificuldades para aceitar uma perda familiar.
 
O elemento família é uma constante na obra de Rojas, assim como a protagonista feminina. Dentro de seu olhar sobre o fantástico, essas assinaturas parecem convergir para a vulnerabilidade humana daquela criatura que passou a ser tão cobrada em tudo, a mulher moderna. São personagens críveis e, na mesma medida, incríveis.
 
Em O Duplo, Rojas mergulha sozinha no mítico universo do doppelgânger, que seria um monstro ou ser fantástico capaz de duplicar uma pessoa, gerando uma cópia ambulante pelo mundo. É um tema geralmente explorado com riqueza no cinema, seja em filmes mais doces (A Dupla Vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski) ou mais horrorizados (Doppelganger, de Kiyoshi Kurosawa). Com uma quedinha pelo horror simples, Rojas investe numa leitura perturbadora, levando uma professora de ensino fundamental (Sabrina Greve, excelente, premiada em Gramado pelo filme) a lidar com incomodas aparições de seu duplo.
 
Rojas se mune de trucagens em que Greve é duplicada na tela, no mesmo quadro, evidenciando que O Duplo não é low profile em sua técnica. Há uma tensão não exatamente presente, mas agarrada a este filme muito confiante no que há de esquisito em sua história. É um curta que mostra que o grande cinema pode estar numa coisa que não se vê do lado de fora da janela, ou na crescente repetição de um som.

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