quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Amor (Michael Haneke, 2012)




Amor examinado

O que esperar de Haneke falando de amor? Não uma comédia romântica, sem dúvida, muito menos daquelas tão celebradas por corações jovens hollywoodimente alimentados a cada temporada por gente bonita e "ideal". Dessas, salvam-se poucas.

Desde O Sétimo Continente (1989), o cinema de Haneke parece nos nutrir do que seria um vazio, emoções quase sempre ocas projetadas por um cineasta muito interessado na relação do espectador com as imagens diante de si. Violência Gratuita (1997) e Caché (2005) são os exemplos máximos desse olhar, filmes que, num estreito relacionamento com a videografia, sugerem afiadíssima extrapolação da janela - ela, a janela da tela, a cortina cinematográfica - que separa sua ficção de nossa realidade. Em mais de um sentido, Haneke nos testa, seja no mistério de uma fita enviada a personagens, seja na violência que acontece fora do campo (e que, por isso, por estar fora do olhar, realmente seria menos agressiva?), seja numa sádica piscada para a câmera.

Por outro lado, cada filme deste autor também nos leva a questionar a exatidão dessa frieza, ou ao menos adicionar algumas vírgulas. E então chega este Amor, que, para o cinema praticado por Haneke, duro e seco, chega a ser até mesmo emotivo, na falta de palavra melhor. Uma minúscula dose de doçura, sobretudo nos rumos finais, talvez?

É difícil pensar nessas palavras - "emotivo", "doçura" - quando se escreve sobre tal cineasta, no risco de confundir ainda mais possíveis espectadores guiados apenas pelo título do filme. Aqueles que conhecem Haneke já estão familiarizados com sua visão de mundo, visão esta que tem sido recebida por Hollywood com crescente curiosidade: em 2010, A Fita Branca (2009) figurou entre os indicados a Melhor Filme Estrangeiro, e agora Amor recebe uma coleção de nominações, incluindo Filme e Diretor. Ambos os filmes foram premiados com a Palma de Ouro em Cannes em seus respectivos anos.

Assistir a um Haneke é como entrar num consultório. Ainda lembro com exatidão de meu amigo André de Leones encarando O Sétimo Continente: um filme sob o ponto de vista dos objetos, dizia ele. É uma sensação que às vezes também parece valer aqui.  Em Amor, seu estilo seco e duro permanece irretocável na companhia do casal Georges e Anne (Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, dois grandes nomes do cinema francês: ela desde Hiroshima Mon Amour, de Resnais, e ele, desde antes de As Corças, de Chabrol), professores de música aposentados e já com seus 80 anos. São sobriamente ternos, ainda vão juntos a concertos, dividem momentos de refeição numa pequena mesa de um apartamento francês burguês. Certo dia, ela não responde, e a rotina começa a ser outra.

Cena por cena, uma adoecida Anne lembra cada vez mais um recipiente do que antes era uma vida com corpo, sugerindo versão amarga de "felizes para sempre ou até que a morte os separe". A gradativa inexistência de alguém, sob o constante olhar de um sentimento. Parece reverberar de algum modo a filosofia de Irrversível, de Gaspar Noé, de que "o tempo destrói tudo", muito embora sejam filmes e autores tão distantes em tom e estilo de filmar.

Constrói-se a partir daí um tipo de teste para os personagens, incluindo uma filha interpretada por Isabelle Huppert. A cada aparição, Huppert soa como um suave aconchego no meio desse apartamento que aos poucos passa a impressão de ser filmado por Haneke como se fosse um caixote da morte. A presença dos espaços e das paredes é sensacional, muito lúcida e impiedosa, a câmera às vezes agindo como um pedaço de mobília qualquer. Uma cena de pesadelo é particularmente interessante, podendo encontrar sua dose de gritos no público.

Já no nosso caso, aqui o teste, assim como o brilho do incômodo sentido, talvez - e sublinho o talvez - seja o de considerar o lado de cá da janela de cinema (seja ela a tela de cinema, da TV ou do computador) um outro cômodo desse lar, uma extensão do lugar habitado e, não menos importante, vivido pelo casal. Um extracampo, para onde Haneke pode ou não dirigir seu olhar.

2 comentários:

  1. O corredor cheio de água e perigo é um alívio pra escapar daquele átrio (único plano aberto de que me lembro) sufocante. Eu já disse isso antes, Amor é um filme sobre a liberdade.

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    1. Daniel, só agora vi o comentário. Talvez seja mesmo sobre liberdade. Aliás, tu leu o texto do Calligaris inspirado pelo filme?

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