domingo, 6 de janeiro de 2013

As Aventuras de Pi. Ou quase.



Eu teria escrito sobre As Aventuras de Pi se a sessão em que tentei assisti-lo não estivesse dominada por idiotas. Era começo de tarde, meio de semana, sessão das 14h10. Cinemark, este complexo que, curiosamente, tende a atrair o pior tipo de público, acima de quaisquer outros cinemas de shopping que já vi.

15 minutos de filme e eu já estava especialmente enfurecido com um sujeito sentado três poltronas ao lado. Eu estava acompanhado, e ele também. Falava aos cotovelos e aos calcanhares. A pescoçadas. Esmurrava o ar com comentários, altos, como se estivesse em casa. Dizia o nome de todos os bichos que apareciam na tela. As Aventuras de Pi tem muitos bichos.

Firme, porém educadamente, pedi que fizesse silêncio. Olhei nos olhos. Falei "Por favor" no começo e "Por gentileza" no final. Superestimei a cidadania e a educação do meu... semelhante. Sempre superestimo. O homem, um estúpido completo, moleque por volta de 40 anos, me mandou mudar de lugar e tomar no meio do meu cu (ou à merda, não lembro; algo relacionado a bundas, isto é certo).

Basicamente, são duas as opções para este cenário: a primeira é entrar no jogo neandertal de troca de ofensas e babaquices, atrapalhando a sessão por completo. Eu cogitei. Meu vocabulário ofensivo é bom e ele certamente merecia, sobretudo se envolver alguma dose de humilhação direta. Ainda me arrependo de não tê-lo chamado de moleque, na frente da esposa ou o que quer que fosse.

A outra alternativa, mais civilizada, é chamar um funcionário, esperando que ofensas numa sala de cinema não sejam toleradas e, assim, alguém que não saiba se comportar seja colocado para fora.

Fui atrás do funcionário. O funcionário me seguiu, atencioso. Apontei o dedo na cara do babaca. O funcionário pediu compreensão e que eles fizessem silêncio. Ninguém foi expulso da sala, algo que lamentei. Eu poderia ter insistido. Não insisti. De algum modo, eu me preocupava com a possibilidade de me envolver em agressões físicas.

A sessão estava destruída. As outras pessoas também não paravam de falar, de fazer barulho, de acender luzinhas de celulares. Zoológico.

Incrível como, em frações de segundo, você começa a se perder em pensamentos sobre a educação (geral) do Brasil, em como é um país açoitado nesse aspecto; na educação do público goianiense, na Goiânia que carece muito de políticas cinematográficas (o que não é um desprivilégio nosso, eu sei), de cinemas de rua e de valorização da crítica, uma série de elementos que sempre estiveram relacionados com o ato de educar para o cinema, que não é apenas ver filmes, nem mesmo quando sozinhos em casa, ao invés de pensá-los somente como mais alguma coisa a se fazer no shopping.

O que faço aqui não é uma espécie de elegia às salas de rua. Tampouco um hate post dirigido aos cinemas de shopping e multiplexes, embora seja, muito indiretamente, às políticas de distribuição vigentes no Brasil, que permitem um descontrole e favorecem uma invasão de mesmacoisice nessas salas, em que capitais menores vêem suas opções ainda mais afuniladas, e o grande público pouco sabe de outros cinemas feitos, e, se pouco sabem, como poderia ter a chance de se importar?

Isso é treta antiga. Não falo nada de novo e gente mais graúda já disse isso mais de uma vez. O Inácio mesmo, há poucos dias. Pior que o eventual desconforto com os cinemas de shopping é a maneira com que os filmes são encarados ali. Por todos, inclusive por nós.

Em Goiânia, apesar dos muitos problemas de projeção que já testemunhei nos cines Lumière, é importante observar sua abertura para outros filmes, que já foi mais eficiente, mas ainda existe e, desde o ano passado, tem voltado seu interesse para o retorno da Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, uma repescagem do que é exibido no Rio e em São Paulo, meses antes. Tudo num shopping, ao lado da praça de alimentação.

A rede Cinemark costumava reservar um horário da semana para filmes mais alternativos. Não lembro o nome da iniciativa, mas era a sessão das 15h. Cada semana, um longa. Vi A Espiã, de Paul Verhoeven, lá. São sessões, espaços infiltrados, que não existem mais. Questões de lucro, claro.

Hoje, na cidade, a grande responsabilidade educativa de cinema reside sobre o Cine Cultura, muito bem localizado na praça central, a Praça Cívica. Barato, acessível, popular, mas na constante briga pela popularidade, já que exibe "filmes para poucos" (mas já não há espaços demais para os "filmes para muitos"?), obras "impopulares". Por isso me importa destacar que, ao lado do acesso aos filmes, exista esta noção de acesso a uma relação com o cinema.

Bom, As Aventuras de Pi...

Do que consegui prestar atenção, me pareceu um filme zen-filosófico repleto de auto-importância, sobretudo nas cenas em que a versão mais adulta do personagem Pi (Irrfan Khan, muito bom) aparece narrando (ou inventando) sua história.

Em resumo, a tal "vida de Pi" (título original e do livro homônimo) tem como destaque o seu naufrágio ao lado de alguns animais de zoológico. Por fim, sobram o jovem Pi e um tigre chamado Richard Parker dividindo um pequeno barco, espaço metafórico dos mais bonitos e que gera algum interesse de imagem e tecnologia em Ang Lee, cineasta de robusta sensibilidade. Lee é capaz de encontrar delicadeza e literariedade até onde inicialmente não se espera (Hulk seria o melhor exemplo, das épocas que adaptações Marvel eram pensadas com algo de cinema no meio, e não lançados como lancheiras em série, padronizadas), então fica aquela impressão de um longa colocado em seu colo, "aos cuidados de". Uma cena com uma baleia é mais fascinante do que eu consegui perceber, isso eu pude sentir, por exemplo.

O que mais me interessou aqui foi o envolvimento com o poder narrativo, o "contar histórias" e seu enriquecimento, suas dúvidas. Interessa ao próprio filme, tanto que é finalizado com esta questão. Até lá, porém, mergulha em boas intenções de mercearia, entregues a nós como pães quentinhos dentro do saco.

A noção de múltiplas crenças, ou melhor, de fascínio religioso, em seu sentido mais amplo, tem a força para ser levado a sério, ao invés de simplesmente ser grifado como "humanamente importante"? É um tipo de compreensão espiritual que Lee parece se esforçar para fazer funcionar, e o filme sugere claramente uma jornada de amadurecimento, de horizonte mais sofisticado que o primeiro O Hobbit, exibido na sala ao lado, muito embora o tom "caderno de ensinamentos", quase constante a partir de certo ponto, incomode.

De qualquer forma, este é um relato falho. Gosto de Lee e me interesso pelo filme, a ser revisto em outra oportunidade - até mesmo para esclarecer aqueles efeitos especiais um tanto pedestres na tela do cinema; achei estranhos, para não dizer obsoletos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário