domingo, 7 de julho de 2013

FICA 2013



Dia 1
Até mesmo por estarem sujeitos a um modus operandi da produção televisiva, os episódios de seriados costumam aparecer no FICA como se seguissem um manual de redação a partir da adequação ao tema. Expédition Grand Rift (FRA) e Somos Um Só (BRA) figuraram com capítulos didáticos, informativos e ambientais, inaugurando as primeiras duas horas da Mostra Competitiva, talvez para que apenas cumpram o papel de apresentar algumas das questões motoras do festival.


A distinção entre a modernidade/urbanidade e civilizações ainda não capturadas pelo progresso é certamente um debate constante por aqui, observados com mais interesse pelas exibições seguintes, a começar pelo curta-documentário goiano Boiúna, de Maurélio Toscano, estudante do curso de Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás, em que, no diálogo entre seus dois últimos planos, nos rostos de dois indígenas do Amazonas, há a revelação de uma vergonha atual do Brasil, talvez num dos desfechos mais inspirados a passar no Cine Teatro São Joaquim este ano.

O outro documentário goiano selecionado para a Competitiva, Dona Romana e o Grande Eixo da Terra, de Paulo Rezende, também foi exibido na primeira tarde de programação. Logo de início, o curta nos traz Dona Romana, mulher de crença em Deus e no destino, porta de entrada para um universo místico muito pessoal que Rezende lapida para fazer dessa senhora uma personagem minimamente curiosa, indo além de uma mera postura de apresentar um sujeito interessante ao mundo ou mesmo sua arte.

Dona Romana nasce de uma atmosfera criada pelo documentário, que se defende muito bem de qualquer maior esforço em racionalizar e resumir esta figura como só uma doida que diz escutar vozes e receber ordens espirituais para que seja uma das responsáveis pela manutenção da vida terrestre e do eixo do planeta. Apesar de inserções de um garoto pesquisando na internet destoarem do todo, são 20 minutos que parecem ter algo de estranho ali. O envolvimento é bom.

O feel good movie do dia ficou a cargo da produção estadunidense Carbon for Water, curta-metragem inicialmente amargo, a respeito da rotina de mulheres quenianas que desde muito cedo devem buscar e carregar pilhas de madeira para que possam ferver a água a ser bebida.

O impasse é logo identificado no fato de a constante necessidade de madeira auxiliar o desmatamento local, problema solucionado na segunda metade da projeção, que a partir deste momento lembra uma peça publicitária do projeto social que intitula o filme: por cinco semanas, uma grande equipe tem a missão de levar um filtro de água a 900 mil moradias do oeste do Quênia, ensinando os residentes a utilizar o novo mecanismo.

Esses rumos finais agem como um passe de mágica que, agora ritmado por uma trilha devidamente alegrinha, plantam  aquela desconfiável sensação de “podem ficar calmos, está tudo bem”. Ao final, fotos de famílias sorridentes segurando o filtro surgem como que para atestar missão cumprida. O festival é repleto de boas intenções como essa, algumas muito louváveis, mas na tela Carbon for Water termina por lembrar um quadro assistencialista do Caldeirão do Huck.

Após intervalo de meia-hora, o curta italiano I Morti di Alos, de Daniele Atzeni, ignora qualquer traço de doçura da programação até então e, inspirado por Edgar Allan Poe, basicamente resume a história do capitalismo tentacular em 30 minutos. No timbre de um narrador-personagem fatalista, sobrevivente da pequena vila de Alos, que nos relata o destino dos moradores locais, testemunhamos aqui algo extremamente apocalíptico, espécie de conto macabro com notas de rodapé marxistas. Montado com materiais de arquivo e filmagens do vilarejo abandonado, conjunto de muros vazios e silenciosos, Atzeni fez disso aqui um trem fantasma dos bons. A última imagem, depois dos créditos finais, é impressionante.

Por fim, O Som ao Redor, cuja presença no festival chegou a ser questionada, na dúvida se seria ou não uma “produção ambiental”. É no mínimo uma discussão nova para filme já tão premiado e discutido, e o cineasta Pedro Novaes, em texto publicado na revista Janela já fez a melhor defesa que o longa poderia ter nesse sentido.

Em grande parte, Kleber Mendonça Filho traz em O Som ao Redor um lamento pela urbanidade ansiosa e descompromissada, algo como um crescente abismo invertido que cerca a todos sem que se perceba de imediato. Em alguns momentos, é um filme sob a perspectiva de prédios e muros, concretos plantados pela história de nossas terras e cercas.

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Dias 2 e 3
No geral, o Fica é uma espécie de portal para as desgraças do mundo. Num festival de temática ambiental, é raro entrar no cinema e não se ver diante de pessoas à mercê da seca, do isolamento e de condições de sobrevivência das mais frágeis, e infelizmente não dá para comentar tudo o que é visto aqui. Segue então um pequeno panorama desse tour de conscientização, em que algumas poucas produções revestidas de certa leveza brotam na tela como uma sessão de massagem.

O curta italiano Ortobello, exibido na quinta-feira, parece ter cumprido bem essa tarefa, geralmente comentado entre sorrisos. Documentário sobre senhores empenhados em cuidar de suas belas hortas, a ponto de organizarem um torneio entre as plantações, o filme emana simpatia em torno dessa imagem que se tem dos italianos, sempre com um prazer em cozinhar e se reunir à mesa, e também de seu passado, sem esquecer que muitos destes homens, simples plantadores, carregam memórias de guerra e fascismo.

O grande filme da última quinta-feira (7/7), foi Lugar Feito por Homens, produção alemã dirigida pelo chinês Yu-Shen Su, a respeito de bairros faraônicos construídos na China como promessas de moradias ideais, embora destinados ao abandono. É um lento exercício de observação, bem ao estilo do cinema chinês – ambiental ou não -, dando tempo máximo a cada plano para que o nosso olhar capte todo aquele descompromisso ambiental em função de sonhos de alta sociedade, de pertencer àquele mundo que brilha forte no anúncio animado presente num imenso painel de luzes.

Outro forte competidor é Zevel Tov, longa israelense de Auda Aushpiz e Shosh Shlam. O filme tem como ponto central um lixão e o grupo de catadores que dali sobrevive, cenário familiar em qualquer lugar do mundo, pois lixo é lixo. Em pequenas doses, o longa se abre para três famílias específicas e se insere no delicado arame farpado político do país. Me parece o longa mais completo em suas ambições.

Entre os brasileiros, A Galinha que Burlou o Sistema, curta de Quico Meirelles, filho de Fernando Meirelles, parece ser aposta certa para voto popular, muito embora as sessões tenham variado bastante em quantidade de público. Denunciando o processo de criação de galinhas para abate, lembra algo de Ilha das Flores, de Jorge Furtado, para então se transformar num filme de fuga animal até bem sacado, com claras influências estilísticas do pai, incluindo referência à corrida da galinha em Cidade de Deus.

Por sinal, Meirelles pai está no festival pela Mostra paralela, com exibições de Domésticas, Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira durante o sábado. Na coletiva para a imprensa, perguntei a Meirelles sua opinião sobre o efeito da popularidade de Cidade de Deus no mercado voltado para o turismo internacional nas favelas cariocas, que aumentou depois do sucesso de seu filme no exterior, algo comentado no documentário Em Busca de um Lugar Comum, exibido na sexta-feira. Meirelles disse nunca ter pensado sobre a estranheza desse safári entre favelas, mas que vê um lado bom, uma vez que pode retirar parte dos preconceitos e impressões que se tem desses lugares onde nem o Estado entra.

Esse Em Busca de um Lugar Comum, de Felippe Schultz Mussel, é também um filme sobre o poder de encanto das imagens, talvez um primo distante de Pacific, de Marcelo Pedroso. Seu brilho reside nos momentos em que se apropria de material de registro dos turistas, europeus munidos de protetor solar e pose para fotos, e que agora carregam morros favelados como um souvenir, prova de que estiveram ali, como se estivessem em frente ao Taj Mahal.

Ainda na sexta-feira, Serra Pelada – A Lenda da Montanha de Ouro se mostrou o mais ambicioso dos nacionais, com a proposta de percorrer um arco de pouco mais de três décadas da mineração de Serra Pelada, pedaço de história do Brasil. Filme irregular, aquela impressão de ser mais longo do que realmente é, mas incrível em suas imagens de arquivo. Há registros ali que parecem extraídos de épicos de Cecil B. DeMille.

Por fim, duas interrogações referentes a Competitiva: que bom a cidade de Goiás Velho ter a oportunidade de ver A Onda Traz, o Vento Leva, curta documentário de Gabriel Mascaro, mas mesmo ampliando ao máximo as noções de “ambiental”, não entendi muito bem o que o traria aqui. E alguém mais saiu de No Fundo Nem Tudo É Memória, filme mineiro, se sentindo uma mariposa em meio a todas aquelas lamparinas?

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