quarta-feira, 17 de julho de 2013

11ª Mostra ABD Cine Goiás



O FICA 2013 marcou uma conquista para os realizadores goianos. Após dez edições, a Mostra ABD Cine Goiás, dedicada exclusivamente ao cinema feito no estado, foi exibida no Cine Teatro São Joaquim, mesma sala da Competitiva ambiental, deixando no passado aquela sensação de improviso que eram as projeções no chamado Cinemão.

Na matemática do golpe de vista, acredito que a Mostra goiana tenha registrado o maior índice de público deste festival, que pôde conferir animações, documentários, ficções e filmes experimentais. O conjunto de 12 produções foi selecionado por membros da ABD de Pernambuco e julgado pelo júri composto pela atriz Helena Ignez, pelo compositor Guilherme Vaz e pela cineasta Juliana Rojas. As exibições foram divididas em três dias.

Dia #1

A Vida não Vive, de Amarildo Pessoa e Kátia Jacarandá

Embora classificado como animação, muita gente parece ter se perguntado o porquê de A Vida não Vive não ter competido entre os experimentais. O curta transborda as formações de seus realizadores, o filósofo Amarildo Pessoa e a artista plástica Kátia Jacarandá. Abre citando a obra Minima Moralia e dedica seus 10 minutos ao que mais parece ser um ensaio determinado a ilustrar as muitas tijoladas adornianas, resultando num conjunto de imagens afobadas que certamente tentam atingir alguma perturbação. Montagens com larvas, bovinos marcados e decapitados, humanos e plásticos comparados e mais uma infinidade de coisas arremessadas ao espectador tendem a gerar sensações de angústia, por um lado reforçadas pela trilha de Villa-Lobos, mas, por outro, dispersadas pela redundância em repetir os trechos do filósofo alemão ou fincar suas palavras e frases de força aqui e ali nos cantos da tela, como se o próprio fluxo imagético, já associado à epígrafe, não fosse suficiente.

A Vida não Vive foi escolhida como Melhor Animação.

Gustav Ritter - uma Arte, uma Vida, de Ângelo Lima

Único longa presente na Mostra ABD, Gustav Ritter - uma Arte, uma Vida se propõe a homenagear a... earmmm... "arte e vida" de Gustav Ritter, arquiteto e artista plástico alemão muito influente em Goiânia, onde se radicou no final dos anos 1940.

Documentário de quase meia-hora, segue uma espécie de tabuada em que os depoimentos de familiares, amigos, colegas e artistas são insistentemente acompanhados por filmagens que acabam por ilustrar quase tudo o que é dito: um entrevistado fala de flores, e o filme corta para imagens de flores; outro menciona algo sobre barrancos, e surge a filmagem de um barranco; "...para não espantar os pássaros", diz alguém, e já sabemos que a cena de pássaros alçando voo aparecerá logo em seguida.

O filme é quase todo assim, esse esquema de filmagens caroneiras da falação sendo rapidamente denunciado pela montagem previsível, um cansaço também observado em O Mundo é uma Charge e Inacabado - o Teatro e a Cidade, outros dois documentários exibidos na Mostra, totalizando um trio que não parece ir muito além de artigos da Wikipédia. São poucas as imagens de arquivo que despertam algum interesse (como aquelas com o próprio Ritter) e as filmagens na Alemanha parecem sugerir que a visita ao país não tenha durado mais que duas horas. Há também uma estranha aparição do próprio diretor carregando a base de suporte para uma das obras de Ritter num salão de exposição, presença um tanto forçada dentro do didatismo do longa.

Diante de um material riquíssimo a ser explorado, fica a incômoda sensação de um documentário ao mesmo tempo apressado e ocioso.

De todo modo, o filme foi premiado como Melhor Documentário e também Melhor Fotografia, sendo este um grande mistério pra mim.


Dia #2

Bilhete, de Matheus Leandro

Curta anapolino vencedor do III Anápolis Festival de Cinema, Bilhete conta a história de um garoto que mora em casa sozinho e se comunica com sua mãe ausente através de constante troca de bilhetes.

O filme é leve, medindo muito bem o que há de cômico e melancólico nesse pequeno conto de carência e amor familiar. É realizado em vídeo e visualmente surpreendente com o pouco que tem. Talvez peque por alguma falta de confiança, como ao colocar em áudio o que pode ser lido com clareza nos pequenos recados manuscritos, que são curtos e já embalados por uma trilha sonora, pregados em locais diversos da casa.

Quem já viu outros curtas anapolinos sabe do quanto é um cenário ainda bem deficiente na compreensão das linguagens mais básicas do fazer cinema, elementos importantes com os quais Bilhete não parece ter muitos problemas, com boa edição para o timing cômico e até uma montagem através da mudança de foco (quando o garoto vira seu olhar para o porco-cofrinho).

A versão exibida em Anápolis era um pouco maior, trazendo um plano final longo demais, em que a mãe cantava "Leãozinho" quase inteira. A edição mais curta, conferida no FICA, é bem melhor.

Bilhete foi premiado em Direção de Arte e os atores Rafael Vinícius e Rainan Pires levaram a categoria de Melhor Ator.

Faroeste - um Autêntico Western, de Wesley Rodrigues

Que coisa mais bonita, esse Faroeste de Wesley Rodrigues, que banhou com uma sinfonia de cores a sala quase lotada do São Joaquim. Rodrigues pinta o cangaço e o sertão, cenários que fazem o nosso faroeste (pensemos em Baile Perfumado por um instante), através de um conto de vingança que também tem muito do oriente.

A história de um urubu que desde criança se torna íntimo da espingarda e se transforma no assassino de vilas sertanejos desfila na tela com encantadora fluidez (atenção para a movimentação do sol no filme), como se a animação fosse criada em tempo real, bem ali, diante dos olhos de todos. Essa inventividade parece colher bastante plantio de Miyazaki, influência assumida na composição da personagem da Morte, enquanto a caracterização tão forte do caçador de recompensas Sebastião poderia colocá-lo nas páginas de Stan Sakai.

Esse mix entre ocidente e oriente, tão próximos em certos temas e tão díspares em plasticidade, costuma render obras de interesse no cinema. O diálogo travado entre Kurosawa/Yojimbo e Sergio Leone/Por um Punhado de Dólares já está há muito eternizado, e o Kill Bill de Tarantino tem ocupado a maior referência nesse sentido na última década. O curta de Rodrigues brilha nesse universo da mistura, e sem abrir mão do que talvez seja o que possui de mais autêntico, que é trazer parte de uma brasilidade muito característica.

Há suspeitas de que Faroeste - um Autêntico Western tenha peito pra levar prêmios Brasil e mundo afora. Na Mostra ABD, era tida como favorita absoluta em Animação. Levou apenas trilha sonora, que o compositor Guilherme Vaz disse lembrar Frank Zappa.

O Mundo é uma Charge, de Ranulfo Borges

O curta de Borges, extremamente didático, se comporta como uma videoaula rasteira, partindo do princípio de que ninguém entende o que é uma charge. Alguns chargistas são entrevistados, falam de seus trabalhos, mas ao fim dos 15 minutos o espectador pode se perguntar se aquilo não era um documentário sobre Jorge Braga, tamanha a predominância de seus depoimentos e material. Cerca de dois terços da duração trazem Braga ou uma interminável exibição de suas charges, expostas numa animação que simula mesa de desenho e viradas de página (tem até barulhinho, não se preocupem).

Existe aquela pergunta, que muitos de nós às vezes fazemos: por que fazer um filme e não escrever um livro? Em relação a O Mundo é uma Charge, a pergunta é: por que não fazer um catálogo em vez de um filme?

Inacabado - o Teatro e a Cidade, de Dalton Costa

O média-metragem de Dalton Costa possui um conjunto de pesquisa mais sólido que o de Ângelo Lima, mas é também vítima do bê-a-bá documental muito centrado no falatório informativo, sem que se crie ou busque um eixo em torno daquilo. Por vezes o filme até ameaça dedicar sua força ao teatrólogo Otavinho e sua relação com o teatro, o relacionamento entre um homem e um espaço que condensa parte da história de uma cidade.

No entanto, há um peso de cobertura jornalística do todo que cede ao abre-e-fecha que tanto acomete o chamado Teatro Inacabado, fadado ao descaso por decisões humanas. É curioso como pessoas criam vínculos com lugares, sobretudo espaços culturais, e o documentário de Costa me parece carecer desse tom mais pessoal.

p.s.: o filme é dividido em capítulos, o que não é um problema, mas aquela buzininha que anuncia um novo assunto é um tanto irritante, não?


Dia #3

Vaca Louca, de Waldemar Junior

Típico exemplar de militância vegetariana. São três minutos de imagens C*H*O*C*A*N*T*E*S de bovinos destinados ao abate. É um filme direto, cuja clara missão é mostrar o quanto aquilo é horrível, experiência visual desagradável que, apelando para a sensibilidade do espectador, acredita ser capaz de fazer com que alguém desista de consumir carne. Caso consigam, são bem-sucedidos, mas o próprio FICA 2013 contou com exemplos mais interessantes para o mesmo objetivo, como A Galinha que Burlou o Sistema, de Quico Meirelles, vencedor de melhor curta-metragem na Competitiva.

Como se não bastasse, um jogo bobo de palavras encerra o filme, que fica com cara de post compartilhado no Facebook.

Itauçú, do Grupo EmpreZa

Outro experimental de três minutos e vencedor da categoria, o curta do Grupo EmpreZa me deixou sem saber exatamente o que pensar a respeito, o que, em se tratando de, como o próprio nome diz, um experimento, penso ser interessante.

Ao apresentar o filme, dois integrantes definiram Itauçú como algo indefinido, uma coisa, e o propósito dessas coisas talvez seja buscar sensações de difícil classificação. A bem da verdade, é o registro de uma performance do Grupo EmpreZa. A câmera é única, localizada num canto alto de um salão, capturando todo o ambiente. Na projeção, as imagens são aceleradas, técnica fotográfica. É minimamente curioso na medida em que a performance é segundo plano, e a movimentação daquelas pessoas que se juntam para prestigiar "estranhezas", a ocupação do espaço por um determinado tempo, tende a virar um número performático em si.

História de Guerra, de Rildo Farias de Sousa

Animação curtinha (sete minutos) e esforçada sobre, basicamente, um guerreiro em "violento" confronto com inimigos e algumas breves e simplórias reflexões... existenciais? Contexto medieval e influências visuais de animes de ação sugerem não mais que a ilustração de uma cena de RPG. Breve e esquecível.

Atrás da História (ou no Coração do Filme), de Jarleo Barbosa

O desafio atual de Jarleo Barbosa - e talvez da produtora Panaceia - é o de superar seu primeiro curta, Julie, Agosto, Setembro, trabalho que também inaugura o que já me parece ser uma espécie de zona de conforto destes realizadores, cujos curtas são dedicados a uma visão fofinha de mundo. Talvez seja de fato um objetivo muito concreto da produtora, mas ao mesmo tempo não é essa a hora mais apropriada para os riscos, em que a metragem é curta e a idade ainda soa como eterna?

Esse Atrás da História também possui esse aspecto cafuné, mas tem premissa interessante, que é de contar a história pela perspectiva do próprio filme, que procura sua mocinha. Essa busca ocorre pelas ruas Goiânia, geralmente no centro, e seus interesses românticos costumam ser moças que parecem ter saído de um catálogo de roupas classe média, embora brotem no centro da cidade. É uma caracterização que particularmente me soa estranha, pois são aparições deslocadas para o olhar de uma câmera que passa a impressão de reconhecer aquele espaço urbano como seu, cidade existente e de fato vivida. Uma das garotas surge no alto dum morro distante como se tivesse saído do shopping para um ensaio fotográfico.

De qualquer forma, o filme de Jarleo é muito capaz de se reconhecer como produção, como ilusão, e, portanto, como linguagem. Na visão subjetiva da câmera, o curta procura mocinhas em prédios e praças, toma porre em bar e anda trôpego pela calçada (Smack My Bitch Up, clipe do Prodigy, é lembrança certa), perdendo o foco na bebedeira. Sendo assim, ainda que no risco de cair num argumento meramente fetichista, me parece fazer grande diferença suas exibições em película, aquelas pequenas tremulações e pequenos desfoques provenientes do rolo de filme instaurando sensações de que há algo vivo ali na tela. Para um curta realizado a partir do ponto de vista do filme (mesmo com narração em terceira pessoa), e numa época em que tudo é digital e arquivo virtual, este filme existir materialmente no plano real talvez seja essencial. Caso contrário, o curta poderia ser encarado apenas como uma brincadeira.

Atrás da História foi premiado nas categorias de Melhor Atriz (Salma Jô), Melhor Roteiro e Melhor Som.


O que Aprendi com Meu Pai, de Getúlio Ribeiro


O Que Aprendi com Meu Pai foi realizado como TCC da faculdade. Getúlio Ribeiro é estudante de audiovisual na UEG e talvez seja, ao lado de Maurélio Toscano (Boiúna, exibido na Competitiva), o nome mais promissor entre os realizadores da ala jovem da produção goiana.

Seu primeiro curta, Longe de Casa, sobre dois rapazes que observam um corpo de mulher estirado ao sol em uma estação de ônibus interiorana, me lembrava algo de teatro beckettiano, que depois descobri não ser intencional, o que não faz diferença, pois era uma lembrança que deixava tudo muito interessante.

Neste novo trabalho, há aquela bonita sensação de ver cinema a cada plano muito bem pensado e montado. Temos aqui um curta que não se intimida com a tela grande, pelo contrário: se alimenta de planos abertos e cria toda uma atmosfera para um bang bang provinciano, onde acompanharemos um pequeno conto de dura hereditariedade em torno da vida de um matador, com sugestão de suas gerações passadas e futuras.

Há todo um clima de melancolia no filme, peso balanceado entre a narração que faz comentários quase com descaso e as aparições de uma criança, presença inocente destinada a viver, e talvez seguir, numa história de corpos e tiros. O protagonista não é matador por necessidade e que depois se acostuma a tocar essa vida. Sua narração - muito boa - é também fruto de hábito e tristeza.

O curta de Getúlio impressiona sobretudo por sua ampla noção de imagem, e de como encenar e filmar além do que o espectador vê na tela. Sua direção explora bastante o extracampo, criando a sensação de que personagens entram e saem de um universo próprio, não delimitado pelo enquadramento. Há também um cuidado na montagem desse ambiente, no tempo nada apressado entre um corte e outro, na presença de um cachorro ocasional ou na inserção de um plano muito breve dum figurante que escuta o som de um disparo, detalhes que fazem de O Que Aprendi com Meu Pai um cinema habitado e feito por quem parece ter tesão em filmar, coisa bem rara por aqui.

O filme foi reconhecido com o trio mais importante de prêmios: Montagem/Edição, Direção e Melhor Ficção.

Mudernage, de Marcela Borela

Feito para o DOCTV, Mudernage fechou a Mostra ABD como que para também concluir este recorte artístico da seleção de documentários. Por abordar a arte moderna feita em Goiás, o documentário de Borela se vê um tanto próximo do longa de Ângelo Lima dedicado a Gustav Ritter, docs que chegam a dividir alguns entrevistados, como Siron Franco e Divino Sobral.

Assistir aos dois filmes separados por apenas 48 horas leva a um exercício interessante. Por mais que sofra com o ritmo um tanto capitular, muito devido aos propósitos televisivos, Mudernage propõe discussões não só em torno da arte em si, como se fosse uma palestra, mas do diálogo entre gerações de artistas locais, da presença da arte na vida das pessoas e da relação entre o próprio documentário - cujo status de produção controladora é revelado a todo momento, ecos de Eduardo Coutinho - e as motivações daqueles artistas (a presença do Grupo EmpreZa, por exemplo, não é uma performance, mas o debate entre eles a respeito de como fazer ou não fazer a performance).

O campo de pesquisa de Borela é mais amplo, falando de arte e da cidade às vezes de maneira quase indissociável. Parte das entrevistas não são meramente mecânicas, em que se procura apenas as informações da falação padronizada: Siron Franco aparece, mas tanto quanto ele aparece seu ateliê, a valorização daquele espaço de criação; com Divino Sobral, filmado no alto dum morro, a cidade de Goiânia está presente no horizonte, lá atrás, às vistas. O ambiente é geralmente filmado sem que se comporte como um simples anexo dos depoimentos.

Talvez a maior diferença entre os docs de Borela e Lima possa ser resumida no modo com que os diretores se inserem em seus próprios filmes: enquanto Lima me parece se colocar gratuitamente em frente à câmera, Borela, além de não se omitir como entrevistadora, a ponto de até mesmo escutar respostas inesperadas e assumir tais reações como parte do processo, inclui sua família dentro da questão (e problema?) do colecionismo artístico, sua mãe e seu pai dispondo seus muitos quadros na paredes da casa como peça decorativas.

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