
Depois de três filmes mais centrados em violência, Beto Brant tem estado mais introspectivo. Brant sempre foi um ótimo intruso de locações, com um belo tato pra trabalhar personagens em lugares de verdade. Seu O Invasor é um dos melhores exemplos desse cinema entrão.
Agora Brant não só filma lugares reais, mas gente que parece ter nascido, bebido, comido e trepado neles. Cão Sem Dono atinge um máximo de naturalismo em sua obra, com personagens baseados em livro e pessoas, que por sua vez podem ser baseadas nesses papéis, pois parecem ser uma coisa só. Eu (re)conheço esse povo, um por um, fala por fala, INT. por INT., EXT. por EXT., FADE por FADE.
Ciro é formado em Literatura e consegue alguma pouca grana como tradutor de russo. Mora de aluguel num pequeno apartamento sem muita coisa além das paredes. Sua mesa é uma dessas branquinhas de metal, de boteco. Seu telefone é um orelhão pichado. Bebe, fuma, não toma café da manhã e meio que adota um cachorro “amigo”. Enfim, um brasileiro.
Mantém contato com os pais, que o ajudam como pode. Seu laço de maior amizade parece ser com o porteiro do prédio, mas cria química mesmo é com uma guria modelo gente boa (Tainá Müller, muito boa, muito boa), a literalmente começar pelo sexo e a se desenvolver aos miligramas, podendo ou não se revelar importante. Enfim, uma relação.
São todas pessoas desse mundo, o conjunto câmera-roteiro-fotografia-atuações nos garante. A impressão é de que Brant filmou um RG de cidadania brasileira e residente em Porto Alegre. Embora seja um tipo intelectual de considerável sensibilidade artística (livros, música, pinturas em jornais), Ciro parece ter emoções embaralhadas, dividindo certa semelhança com o personagem de Marco Ricca em Crime Delicado. Julio Andrade constrói nele uma figura lenta e pacata, sensação de constante estado de sonambulismo espaçada por uma série de fades que parece dar esse mesmo ritmo ao filme, e digo isso no melhor sentido. Entre tantos fades, Ciro não tem o que fazer além de aceitar, mas o último fade out é escolha só dele.
O cachorro também é muito de verdade.
*post escrito ao som de Florence and the Machine - "Dog Days Are Over".
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