quarta-feira, 2 de junho de 2010

Império dos Sonhos




Inland Empire, de David Lynch, surgiu numa conversa de bar. Um desses filmes em que definitivamente me expresso melhor com letras e teclados. Vi o filme apenas uma vez, no cinema, final de 2007. O texto abaixo é o que escrevi assim que voltei da sessão.

Uma mulher com problemas

Quando questionado sobre seus filmes, David Lynch às vezes “explica” resumindo-os em poucas palavras. Sobre Império dos Sonhos, disse tratar-se de “uma mulher com problemas”, síntese impressa em cartaz. É vago, mas parece fazer todo um sentido. Se me lembro bem, temos em Cidade dos Sonhos, por exemplo, basicamente uma aspirante a atriz que busca satisfação (profissional, sexual, social...) nos sonhos, e Eraserhead comporta-se como bela e perturbadora obra sobre paternidade precoce – experimentada pelo próprio Lynch, por sinal, gerando trabalho de extrema pessoalidade.

Por mais que seja um cineasta de distorção, Lynch encontra-se numa arte que tem Hollywood como uma de suas principais estruturas, e filma para e sob esse tipo de produção, não obstante seu tato crítico. Cidade dos Sonhos já escancarava esse olhar, e Império dos Sonhos parece abrir o diafragma. Talvez a longa duração de três horas seja para permitir o maior número do tudo que o Cinema (e mídia) tem a oferecer ou ofereceu a Lynch, que por sua vez desdobra tais experiências e transforma em multi e metalinguagem. Triálogo artista-mídia-espectador me trouxe Michael Haneke à cabeça em alguns momentos.

Com 30 minutos, Império dos Sonhos já apresenta uma série de mídias visuais diversas. Nessa primeira meia-hora, Lynch inaugura-se em digital, mas também revisita texturas, estilos, estruturas, (sub)gêneros, enfim, um mais completo filmar e narrar. De noticiários a filmagens cinematográficas, somos convidados a observar breves releituras de sitcoms (na verdade, Rabbits, mini-série que Lynch fez para seu website há alguns poucos anos), pinturas, gravações em vídeo, talk shows (“Sonhos fazem estrelas, e estrelas fazem sonhos!”), remakes e até mesmo lendas da indústria, como os famosos “filmes amaldiçoados”. Maior parte dessa intimidade com o narrativo-visual reside nesses primeiros trinta minutos, mas segue com musicais e marcas de cigarro, as chamadas “cigarette burns” usadas nas películas para indicar o momento de trocar os rolos, de modo que também age como outro “mero” link com Rabbits.

Com uma hora de filme, ou pouco mais, a personagem da Laura Dern (superfodona, minha nossa!) tem o clássico surto de misturar ficção e realidade, ou “realidade”, uma vez que Império dos Sonhos passa a impressão de enlaçar-se em quatro, cinco ou mais dimensões, a começar pela garota do início, que assiste ao(s) filme(s) em seu quarto e depois nota-se como personagem. A princípio, a narrativa de Dern limita-se ao espacial, mas toma rumo espaço-temporal na conversa com a sinistra vizinha: Lynch usa uma imprecisa câmera na mão para filmar a velha, mas um sólido enquadramento fixo para Dern, estabilidade visual que só é abalada quando a vizinha diz que ela pode enxergar o amanhã. Cena em que atriz lê uma determinada passagem de roteiro parece criar-se como uma das razões de ser do longa.

Nikki Grace e Susan Blue, atriz e personagem (ou seria o contrário?) interpretadas por Dern. A oposição dos sobrenomes é evidente, e não poucas vezes Lynch tenta clarear a fantasia, desferindo fortes iluminações de holofotes (ou representações, como postes, o sol, a iluminação do título na abertura) em direção a Dern. Tudo uma farsa, portanto, poderíamos assim encarar. Brian De Palma dizia que “Cinema é mentira, e a câmera mente 24 vezes por segundo”.

A webseries Rabbits que pontua o filme, e um exemplo de desintegração por si só, meio que resume tais impressões. É, sobretudo, uma rápida união artística, formatos de pintura, teatro e TV envolvidos por aquele mistério sombrio que é tão caro ao cineasta. Em Império dos Sonhos, a série laboratorial, espécie de “ligue as falas corretamente” com três atores fantasiados de coelho, é literalmente invadida (por Dern, por nós, por Lynch, pelo filme...), o que parece sugerir todo o contexto de uma metalinguagem extrema que só tende a aumentar.

Não parece haver aqui um “filme dentro do filme” exatamente, mas filmes dentro de filmes, mídias inseridas em mídias, do singelo ao bizarro e avante. Num Cinema da mais pura intensidade – e de imersão – como o de Lynch, esse extremo e extenso olhar sobre o que foi feito e o que se pode fazer com uma câmera, uma gravação, revela contornos de uma peculiar homenagem. O desfecho, enfim, capaz de relembrar comentários internos do filme, não apenas soa, mas canta como celebração que talvez seja. À sua maneira, Lynch celebra o meio ao qual pertence, e tem, nesse meio, um lugar só seu.

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