quarta-feira, 19 de março de 2014

Mud, Trapaça e O Lobo de Wall Street



Sobre meninos, trapaceiros e lobos

Às vezes convém falar de dois ou três filmes de uma só vez, pois de alguma forma eles se comunicam ou dividem o ar que respiram. No caso de Amor Bandido, Trapaça e O Lobo de Wall Street, são filmes que parecem pisar em terreno de bandidagens tipicamente norte-americanas, exercendo algum efeito de familiaridade, de já ter visto aquilo antes, de reconhecer essa cultura.

Amor Bandido

Amor Bandido ("Mud" no original, 2012), talvez o melhor de Jeff Nichols, que vem sendo observado mais de perto desde O Abrigo (2011), se comporta como um conto sulista dos EUA: em linhas gerais, dois garotos de Arkansas encontram um barco abandonado numa ilha e, mais importante, um sujeito que ali vive, chamado Mud (Matthew McConaughey), e que parece fugir de algo.

A estrutura não é novidade: envolto de certo mistério e carisma (o papel faz parte dessa fase absolutamente incrível de McConaughey), Mud está sempre no mato ou na prainha medíocre da tal ilha, com suas únicas vestimentas, que se resumem a botas, jeans e camisa branca; e uma pistola fincada nas costas, "para proteção".

O homem fala como um sabichão, papos que lhe dão um ar de misticismo. Aparece meio que do nada para os garotos, e Nichols filma essa sua introdução como se visualizasse nele um personagem dos contos de Flannery O'Connor, escritora que retratava um sul norte-americano muito específico, das profundezas, e o fazia brilhantemente. Na areia, os jovenzinhos notam pegadas estranhas, andam um pouco e, como se tivesse brotado da terra, Mud está ali, atrás deles, como se fosse onipresente.

Nichols não chega a ser pessimista (ou realista, como lembraria Cohle, o investigador de McConaughey na bela série True Detective) como algumas das mais famosas histórias de O'Connor, é verdade. O desfecho de seu filme beira o pieguismo, para não dizer covardia. Mas a composição do personagem exerce atração similar, assim como a dinâmica com os garotos. O resto, a trama da máfia, não tem tanto fôlego, ainda que, ironicamente, esteja lá justamente para movimentar a história para um rumo, uma solução, quando o que há de mais interessante é o fato deste ser, também, um conto sulista de amor, em que um garoto, alimentado pelo clássico desespero da infância que é a separação dos pais, se apega à ideia de amor mais próxima e mais isolada de sua realidade. Um bandido ilhado à procura de sua mulher idealizada é como um baú de tesouro para um menino despedaçado.

Trapaça

Não entendi o que David O. Russell (Três Reis, O Lado Bom da Vida) quis com este aqui. É uma homenagem a um tempo e a certo tipo de cinema, como sugerem as nostálgicas telas das produtoras antes de o filme começar? Seria uma tentativa de homenagear ou emular o cinema de Martin Scorsese, o que cairia num risco muito grande, pelo fato de, bem, Scorsese não apenas estar vivo e chutando muito bem, mas por também ter acabado de realizar um filme sobre trapaceiros, e um dos melhores de seus últimos anos? Talvez uma reflexão acerca do que é real e do que é mentira, a exemplo de um diálogo entre os personagens de Christian Bale e Bradley Cooper na cena do museu, mas que nunca parece ir muito adiante, subjugada pela própria trama em si?

Trapaça, que concorria a 10 Oscar (levou nada), lembra um jogo de cartas mal distribuídas, com várias possibilidades em mãos, todas elas destinadas ao seu próprio beco sem saída. A sensação inicial de homenagem é mecânica, relegada a figurinos e música; emular Scorsese seria se contentar a ser um "sub-", um maneirista a ser desmentido logo na sessão da sala ao lado; e, enfim, a discussão entre o que há de autêntico e falso sendo lembrada quando convém, às vezes de maneira muito óbvia ("Você tem cabelo liso, mas você o deixa encaracolado porque você precisa, todos nós precisamos", esse tipo de coisa).

O filme, claro, não é um completo desperdício. Nem chega a ser ruim, na verdade. Só me parece ser facilmente esquecível. Ainda assim, há cenas muito boas. Minha favorita é a primeira, com o trambiqueiro interpretado por Bale dedicando um bom tempo à arrumação de seu cabelo desastroso. A cena é só isso: Bale, trajes setentistas, personagem um tanto ridículo (estamos mais para uma comédia, afinal), ajeitando o cabelo em frente ao espelho, tentando acertar um penteado minimamente decente, com todo o cuidado e trabalho que isso exige. É simples, sem falas, e resume ali, em algo tão patético, a questão do fingimento, da enganação, do, enfim, hábito da trapaça, tão presente no filme e ao mesmo tempo tão engolido por uma história que talvez não precisasse de tantas voltas (por mais que a menção histórica a Meyer Lansky seja interessante, era realmente preciso Robert De Niro como um novo obstáculo, cansando ainda mais um filme já cansado nos seus 40 minutos finais?).

Russell é melhor quando se atém ao simples. No começo de O Vencedor (2010), colocava Bale, irmão do protagonista, para surgir pelo extracampo, seus braços magros desferindo socos no ar e revelando sua presença na cena. Uma cena que também parecia capaz de sintetizar quase todo o filme, ou o que tem de melhor, a relação entre os dois irmãos.

Em A Trapaça, o filme parece crescer somente longe da trama (o que daí já se tem uma diferença em relação a Scorsese, em que a trama geralmente está em perfeita harmonia com o que há de mais íntimo nos personagens), quando se percebe isolado: Amy Adams sem maquiagem depois de tantos minutos sendo filmada produzidíssima; a conversa ao telefone entre Adams e Cooper, ambos com bobes segurando os cabelos; são pequenos momentos que não se esforçam demais, e viram algo maior pelas mãos de um elenco muito bom, mais que pela direção de Russell, que parece pensar primeiro na trilha sonora, ou numa ideia de como um filme de trapaceiros deveria ser. Perde-se a conta de quantas vezes ele aproxima, em velocidade, a câmera dos atores olhando para frente, uma marca scorseseana que aqui parece um tique, de tão repetitivo.

Para um diretor que vinha se mostrando um autor, vir com O Lado Bom da Vida num ano e Trapaça no outro é bem decepcionante. Mas, vai entender, a crítica norte-americana gostou, e a Academia também.

O Lobo de Wall Street

Poxa, notaram que Martin Scorsese é exagerado depois de 40 anos? Porque é esta que tem sido a queixa mais comum em relação a seu novo filme, não? "Exagerado", "excessivo", como se o cinema (e sobretudo um cinema de autor, como o de Scorsese) tivesse algum compromisso com alguma ideia de realidade. O Lobo de Wall Street é histérico, e de uma histeria maravilhosa, sem dúvida, mas nada que seja surpreendente vindo do cineasta. Curiosamente, li por aí que, comparado ao livro de Jordan Belfort, Scorsese até pega leve, vejam só.

Desde Caminhos Perigosos (1973), quase todos os filmes de Scorsese se entregam ao excesso, ao estouro. Reclamaram disso em Vivendo no Limite (1998)? Não me recordo, mas sempre achei dos mais subestimados. E de O Rei da Comédia (1992)?

DiCaprio, aliás, talvez interprete aqui seu primeiro papel scorseseano com ecos de Robert De Niro. Não que o novo preferido do cineasta atue de modo semelhante, mas o papel de Belfort, o tal lobo, rico e drogado, cultiva cenas que espelham aquela grande fase entre os anos 1970 e 1990. No papel da segunda mulher, Margot Robbie tem muito de Sharon Stone em Cassino, e a briga entre o casal, culminando no bebê colocado em risco, reflete um desses momentos. Temos ali o Scorsese que todos aprendemos a admirar.

Mas temos também o Scorsese dessa "fase DiCaprio", se for permitido o atrevimento de dividir sua obra em função de sua parceria com os dois atores (observação e mea culpa: não é, haja visto os grandes filmes que Scorsese fez sem eles, como Alice Não Mora Mais Aqui, A Cor do Dinheiro e o já mencionado Vivendo no Limite, fora os documentários). Há em O Lobo de Wall Street esse descontrole, essa ansiedade e nervosismo que curiosamente lhe fazem tão bem, que criam cenas que jamais serão esquecidas quando olharmos a carreira de DiCaprio em retrospecto, quando, batamos na madeira, ele talvez envelhecer tão mal quanto De Niro, que hoje em dia pouco faz de relevante, mas tem seu legado. Deve ser o ponto alto deste ator que vem acertando mesmo quando os filmes não lhe são à altura, como o novo O Grande Gatsby (2013), de Baz Luhrmann.

Scorsese parece compreender que, no seu cinema, a única maneira de encarar o universo de Wall Street é abordá-lo como um espetáculo circense. O circo, admitido desde a cena inicial, em que um anão é arremessado ao alvo, abre espaço para um Scorsese que não se via tão enérgico desde Cassino (1995), com o qual parece fazer, juntamente com Os Bons Companheiros (1990), uma espécie de trilogia do dinheiro. O espetáculo não é novidade, o próprio cinema sendo um tanto responsável por isso (o Gordon Gekko de Michael Douglas, sempre o primeiro a ser lembrado).

Agora, pra fechar, lembremos por um instante de Trabalho Interno (2010), aquele documentário insuportável graças à sua inabilidade de desviar do economiquês. Um filme que, no fundo, não levava a nada, a não ser ao óbvio, que é circular em torno da alta criminalidade desse mercado. Na falta de evidências mais concretas, como se visse numa missão de incriminar aqueles empresários, o doc chegava mais próximo de acusá-los de usar drogas e sair com prostitutas, tentando capturá-los pelo viés da moralidade. Ou seja: um documentário que se propõe uma longa viagem, mas em dado momento prefere tomar um atalho.

O caminho de Scorsese em O Lobo de Wall Street é justamente o contrário: parte do que seriam detalhes imorais (sexo e drogas), adotando-os como brincadeiras, comédias de um homem prestes a desabar de tão alto, do cume da cultura do tudo-não-é-o-bastante.

Ao microfone, Belfort é um palestrante motivacional, o que ele acaba se tornando. O que há de hilariante é um truque, trapaça. Um personagem fadado à desgraça tanto quanto outros scorseseanos. É uma história bem triste, na verdade.

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