sábado, 12 de abril de 2014

Eles Voltam


Era uma vez eu, Cris

Pronto desde 2012, quando venceu o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (ao lado de Era uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes), Eles Voltam, mais um da grande safra pernambucana, finalmente ganhou tem rodado pelo país. É distribuído pela Vitrine Filmes, responsável por circular alguns dos títulos nacionais mais importantes dos últimos dois anos, no mínimo, além de estrangeiros que todo mundo deveria ver, como o argentino Las Acacias e o uruguaio La Vida Útil.

Em breve comentário sobre Eles Voltam, o Inácio Araújo comentou em seu blog na Folha que havia uns tantos de Kiarostami, Hitchcock, Bresson, Rossellini e, puxando o Alcino Leite pra conversa, também Antonioni no filme de Marcelo Lordello, todos nomes que tendo a concordar, com maior ou menor intensidade. Pensando bem, o Hitchcock eu não chego a ver ali, mas é um trabalho capaz de dialogar com toda essa gente grande, sem dúvida.

Mas faz mais de uma semana desde que assisti a Eles Voltam no Cine Cultura e a lembrança de Truffaut ofusca todos esses. A menina sozinha, depois encontrada e desencontrada; as companhias inesperadas; o sono solitário e independente, quase atrevido; o flagrante na piscina e, pouco depois, já na água, as curtas conversas aparentemente desimportantes sobre a vida; a visita à praia, entre família e uma recém conhecida; os estranhos retornos, reencontros, a menina já um tanto diferente, e incapaz de não contestar frente a frente outra geração (porque, tão jovem, sente que a breve experiência vale tudo, e talvez não esteja de todo errada), à mesa do café da manhã, farta e talvez excessivamente acolhedora.

O que se tem aqui, a princípio, é um filme de abandono. Um casal de irmãos largado pelos pais à beira da estrada. Uma lição aplicada por conta de uma briga, supõe-se. Lá são deixados, e lá devem se virar. Ele, mandão e pouco paciente, mais velho, se vira primeiro. Ela, de nome Cris (Maria Luiza Tavares), então sozinha, toma seu rumo. Encontra pessoas, faz amizades tão fáceis de evaporar, conhece gente e lugares que provavelmente não conheceria não fosse o acaso do abandono inicial. Porque, de certa forma, Eles Voltam é também sobre o protecionismo sufocante, as preocupações de estar "solto por aí" em "lugares que nem se imagina", e não num carro, num condomínio ou atrás do portão gradeado duma garagem.

Acho que a primeira meia-hora, ou quase isso, é toda na estrada, quase sem falas. Lordello toca esse começo tão bem, dando tempo às cenas, ao rosto pensativo e intrigante - ela nunca se desespera - de Maria Luiza, que embora me lembre Truffaut em sua trajetória, talvez tenha olhos de Godard (do nada, e no nada, ela resolve fazer uma panorâmica da estrada à sua frente), que por um instante não nos perguntamos se tudo se passaria ali, ao lado da rodovia. O filme, que aos poucos se torna menos sutil, precisa desses bons minutos, e é preciso coragem para mantê-los, fazer cinema daquilo, do "nada" aparente, e, enfim, soltá-lo no mundo.

Essa não discrição de Lordello, por sinal, encontra lugar no fato de termos em Eles Voltam a perspectiva de uma garota de doze - ou onze? - anos. Não há nenhum receio na distinção de classes que o cineasta quer apresentar, entre aqueles que Cris esbarra no caminho e a preocupadíssima recepção dos entes queridos. Ironicamente, o único perigo real presente no longa não se destina a Cris ou ao seu irmão; sequer aparece na tela, ainda que seja revelado no momento certo.

O rápido confronto com o avô, por sua vez, deixa claro o poder da experiência passada pela garota. No entanto, mais importante que o enfrentamento em si, direto e simples, talvez seja a vontade de enfrentar, e, no caso de Lordello, o que me parece ser uma vontade de fazer com que Cris passe a existir. Pois o primeiro plano de Eles Voltam, hoje penso, não poderia ser diferente: alto, muito aberto, as estrada e os carros distantes, e aqueles dois mal são pessoas, e sim apenas dois pontos arremessados num filme. Depois são filmados cada vez mais próximos, os rostos muito fortes, e Peu (Georgio Kokkosi), o irmão, também deixa a impressão de que daria outro bom filme, mas ele segue pro lado que a câmera prefere não ir. A riqueza de Eles Voltam parece estar nesse processo de transformação da menina Cris (não de uma garota qualquer; dela, aquela experiência é dela), captado por Lordello com tamanha naturalidade.

Truffaut foi o grande cineasta das faces infantis. Filmava como poucos a primeira juventude, curiosa e, ironicamente, em certo conflito com a educação e o aprendizado. O melhor elogio que tenho a Lordello é que seu Eles Voltam leva a uma vontade de rever, mais uma vez, Os Incompreendidos (1959). E, assim como Truffaut e Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, seria um prazer visitar Lordello e Maria Luíza Tavares/Cris mais três ou quatro vezes em filmes futuros.

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