sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cartas do Kuluene



Esse é cinema daqui, "feito em Goiás, nas condições de produção de Goiás", como disse o próprio diretor, Pedro Novaes, ao modestamente apresentar a primeira sessão de seu documentário ("que também brinca com ficção") na V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, em fevereiro. Goiás é estado de produção cinematográfica ainda pouco expressiva, e ver um bom longa saindo daqui é algo a ser notado. Cartas do Kuluene (2011) também foi exibido na última Mostra de São Paulo.

De fato, há no filme uma entrega muito grande ao esquema de cartas, gerando curiosa impressão de leituras visuais. São relatos de três indivíduos que tiveram um contato muito próximo com tribos indígenas do Brasil: um anarquista francês do começo do século 20, um antropólogo americano se aventurando na década de 30, e o próprio Pedro, em recente convívio de 40 dias com os índios do Xingu, interesse herdado de seu pai. 

Cartas do Kuluene é carregado de narração, o que talvez possa incomodar alguns, embora o filme tenha duração precisa nesse sentido (menos de 80 minutos) e seja, enfim, muito bem narrado. Os três homens registram suas experiências como uma profunda imersão em um mundo que definitivamente não é o deles, filhos brutos do ocidente tentando se encontrar num universo paralelo de filosofia muito própria. Um tipo curioso de dedicação, sempre.

Os índios são aqui analisados e observados com sensatez e respeito, numa tentativa de compreensão do que, para nós, é "estranho". Ao mesmo tempo fascinado e entediado, Pedro revela experiências dúbias em relação a essa sua atípica quaresma. Em seu terço de filme, imagens do Xingu, "ilustrações" para as cartas, por vezes trazendo a equipe de filmagem à tela. Nos terços dos estrangeiros, cenas de "reconstituição" de um passado relativamente distante, algumas delas meio decalcas, brigando para fazer jus ao que seus autores dizem em off, mas que cumprem seu papel de complemento.

Maior força desse doc epistolar me parece se concentrar nas experiências do próprio diretor, suas "cartas" contendo a pessoalidade mais interessante e envolvente dos três. Pedro fala do pai, da infância, cita sua esposa, seu tesão por antropologia, tudo aparentemente muito sincero, evitando qualquer risco de cair numa egotrip. A escrita tem algo de poesia, tão ou mais literária quanto a dos outros dois, lembrando, em certos aspectos, os documentários de Herzog (O Homem Urso), homem também muito chegado na relação do homem com a natureza, com povos, ele mesmo tendo feito um curto documentário sobre os últimos remanescentes de uma tribo amazônica. A comparação surpreendeu Pedro, que, num papo pós-sessão, disse não ter pensado no grande cineasta alemão ao fazer o filme. Pedi que, na próxima, narrasse em inglês carregado de sotaque germânico.

Texto escrito em fevereiro, na V Mostra O Amor, a Morte e as Paixões

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