terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

19ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela

Usando o gás da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes pra tirar a poeira disso aqui depois de sei lá quanto tempo. Ajuda a organizar o pensamento e, bom, a liberdade de escrever mais molecamente e sem muito compromisso também faz bem.

No geral, foi uma Tiradentes bem mais interessante que a do ano passado. As paralelas ajudaram, esquivando-se de nulidades como A Despedida de Marcelo Galvão ou Órfãos do Eldorado do Guilherme Coelho, presentes na edição anterior. Aparentemente, ninguém gostou do novo do Ruy Guerra (não vi, cheguei depois), que dizem ser desastroso, mas por ser do Guerra valeria a curiosidade de amassar a cara na parede; ou não?

Debates melhores também. Teve até breve barraco no de Filme de Aborto. Ademais, o Hernani Heffner fez, com toda aquela fala calma e esclarecida, uma das melhores apresentações de toda a Mostra durante a mesa "Espaços em Conflito", tema desta edição. Heffner fez todo um histórico do "filmar o inimigo", resumiu caminhos do neo-liberalismo e ainda lembrou do "Poeira de Estrelas" do Moacyr Fenelon, vejam só. Deve ter sido ponto alto dessas mesas, ao lado da fala do Tonacci no segundo dia (e que também perdi).

Sobre a Aurora, também um conjunto forte, mesmo tendo aqueles com os quais chego a ter quase uma aversão. O primeiro a ser exibido, Índios Zoró - Antes, Agora e Depois?, do Luiz Paulino dos Santos (roteirista de Barravento, do qual passou perto de dirigir), tem seus momentos, mas a cada dia ele se esvai na minha memória, o que é uma pena. Já escrevi sobre ele na revista ] Janela [, crítica em que talvez eu tenha sido generoso demais.

O segundo, Aracati, de Aline Portugal e Julia De Simone (e tem coprodução da Alumbramento, esse nome forte lá da cena cearense), me encantou e ainda me encanta. Filma o tempo e parece vir dele, encontrando um ritmo de passagem que não sai da minha cabeça. Dividiu opiniões e pode acabar sendo criticado por sua plasticidade, mas tô longe de seguir esse caminho. Também escrevi na ] Janela [.

A terceira sessão da Aurora foi reservada ao longa goiano Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela, salvo engano a estreia de Goiás na Mostra. Talvez tenha sido meu preferido da competitiva. É atrevido sem deixar de ser delicado; atrevido não por adotar um enfrentamento sangue no olho, mas por evitar o lamento fácil e olhar pra frente, meio que propondo cruzar uma fronteira ainda mais complicada que a demarcação territorial: fronteira do tempo, geracional. É preciso ter coragem para se ter esse tipo de esperança e encerrar um filme tão pesado com um plano final de crianças indígenas brincando ao horizonte. Crítica completa aqui.

Banco Imobiliário, de Miguel Antunes Ramos, inicialmente me atrai por lidar cara a cara com essa cultura do prédio e essas imagens de propaganda de investimento imobiliário. Miguel é da turma que realizou os curtas E. e O Castelo (também exibido em nesta Tiradentes) tem essa visão um tanto interessante de olhar pro concreto hoje como se fosse de um futurismo broxante e cafona. Até aí tudo bem. Mas os curtas são melhores e mais safos; neste longa, Miguel entrevista vendedores e tanto algumas abordagens quanto a montagem parece se colocar alguns degraus acima desses personagens, ridicularizando-os e dando-lhes rasteiras. Miguel e equipe disseram se surpreender com as risadas durante a sessão, demonstrando não terem percebido algo que, ao menos para o espectador, aparecia como ironia e humor evidentes (e, em parte, questionáveis). Inevitável lembrar das questões éticas na realização de Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro; só que Mascaro era mais esperto naquele seu documentário, dava pra perceber que assumia aquela postura desde o princípio, disposto a apanhar por ela.

No mesmo dia de Banco, teve Filme Aborto, o "filme que causou" nesta edição. Dizem que todo ano tem um desses em Tiradentes; o de 2015 teria sido Medo do Escuro, do Ivo Lopes Araújo, um cine-show que, mesmo cambaleando, se revelava uma puta experiência. Filme de Aborto, de Lincoln Péricles (de quem aprecio Homem na Estrada e só), me parece desses filmes esquivos (como bem apontou e questionou o Krefer durante o debate, questionamento legítimo porém não muito bem recebido; ironicamente, a própria resposta de Lincoln - "não entendo o que quer dizer com esquivo" - parecia uma esquiva), a serem defendidos pelo seu tema - importante, urgente, necessário etc, mas e o cinema? - e sem muito para ir além. Ruptura da linguagem dominante e "cinema pedreiro"? Ermmm, ok. Mas acho que desconfio desse discurso ideólogo da imagem como uma espécie de novo caminho de "linguagem revolucionária" ou algo do tipo sempre que lembro do Hurlements en faveur de Sade (1952, mais de meio século atrás), o filme anti-imagem do Guy Debord, em que por cerca de 1h só há tela branca e narração over. Em certo sentido, é um saco, e em outro sentido, uma obra-prima da ruptura máxima (daria pra incluir o Critique de la séparation e o In Girum... no mesmo bolo, aliás). Filme de Aborto me pareceu ser só um porre, mesmo eu sendo pró-escolha - porque, quando se faz filme, identificá-lo como legítimo e concordar com ele é o de menos. Daí a produtora, coroteirista e atriz Talita Araújo, na sua primeira fala do debate no dia seguinte, diz algo como: "Eu adoraria que nós discutíssemos aborto aqui e não o filme". Nada mais esquivo que isso durante um festival de cinema. Mas, enfim, há quem goste e defenda, e isso também interessa.

No último dia teve Jovens infelizes ou um homem que grita não é um urso que dança, de Thiago B. Mendonça. Gosto de Piove, il film di Pio, curtinha singelo de Thiago. Neste longa, ele faz um liquidificador de emblemas e ícones (figuras, temas, símbolos, discursos) da esquerda numa narrativa de trás pra frente movida por um grupo artístico revolucionário autointitulado "Os Terroristas". Não se sabe até onde vai a ironia e o lamento (o Cabaré Vermelho prestes a fechar, por ex), a utopia (palavra-chave) de discursos e a realidade na porta de casa e no colo de cada um (militância X paternidade é um conflito colocado no filme em dado momento). Por certo tempo, isso funciona, dá um ritmo interessante conforme tenta-se decifrar esse grupo e esse filme que sabe olhar pra Carlos Reichenbach, escutar Tonacci e zombar de polícias e de um político cópia de Alckmin. Flerta com o cinema marginal mas também sofre de sua exaustão (as repetitivas cenas de orgias...), a ponto de perder o passo. Confesso achar estranho o final, em que um travelling na parede do bar Cabaré Vermelho parece igualar a trupe a fotografias/quadros de Che e imagens do comunismo; na escorregadia ironia, me parece um tanto narcisístico, sob o risco de sabotar seu êxtase final e praticamente incondicional, o que seria lamentável dado que não se trata de um filme qualquer. Esse desfecho a cantar "É preciso destruir pra começar de novo" é fácil de abraçar, e como o exercício crítico se dá em todo lugar, foi conversando e dançando com João Toledo e Laila Pas na sessão-dança Being Boring que esse tipo de questionamento surgiu. O debate do filme tomou caminhos de incontestável aprovação, o que é um tanto frustrante para o acúmulo de discurso político que o filme traz.

Fechando a Aurora, o esperado Animal Político de Tião, que demorou cinco anos pra fazer, já que filmar uma vaca em locais públicos e dentro de shoppings não é exatamente um mel para a produção. É engraçado como isso que já chamam de "grife pernambucana" (evito o termo, acho meio bobo, mas entendo o uso) faz com que se crie uma expectativa em cima de um realizador com poucos curtas. Muro é um acontecimento, sem dúvida, e Sem Coração não é pouca coisa, mas você chega pra ver o primeiro longa do cara, pira um pouco com aquilo, identifica algo de "filme único" (como o Rubens Machado Jr. mesmo definiu o filme durante o debate) na cinematografia brasileira e ainda sente que falta alguma coisa. Animal Político é a prova de que espera-se demais do cinema pernambucano? Eu veria de novo sem pestanejar, aprecio a crítica mordaz (A Pequena Caucasiana, o filme grindhouse dentro do filme, é um achado) e a simplicidade da acidez, mesmo que um tanto óbvia, do casting bovino, mas talvez a expectativa estivesse um tanto acima. Abertura incrível, de todo modo. E, sim, gostei bem.

***

Vi pouco da Mostra Transições. O baiano Tropykaos, de Daniel Lisboa, por exemplo, longa que me irritou durante quase todo o tempo em sua repetitividade, um cãozinho a girar em torno do próprio rabo. Começa curioso, tomando Salvador como uma cidade a ser atingida por um calor inigualável e partindo daí para o que seria uma crítica à baianidade clichês. Mas é tudo tão literal, tão insistente, de imagens a se desgastar minuto a minuto, que soa juvenil e sem muito o que dizer depois de 15 minutos. Saí da sessão e reli a crítica de Júlio só pra confirmar todas essas sensações.

Porém, o também baiano A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas, foi ainda mais difícil, talvez o ponto mais baixo de todo o festival. Começa bem, imagens de arquivo do carnaval (baiano, imagino) e a voz de Dantas, bem pessoal, introduzindo sua relação não tão distante com a ditadura. Tem força, mas logo, em questão de pouquíssimos minutos, entra numa onda de encenar performaticamente torturas e "números de protesto" contra a ditadura, intercalando isso com depoimentos de uma certa elite sobrevivente (professores, artistas, jornalistas etc) e banhando seu documentário com uma estética algo publicitária capaz até mesmo de embelezar uma barata. É verniz demais pra falar de horror, chegando a ser abjeto. Pelo menos desde o Noite e Neblina (1955) do Resnais já se tem noção das complicações de "filmar" o horror de tal maneira, e saí da sessão de A Noite Escura da Alma com a impressão de terem passado esmalte no horror, por mais bem intencionado que o documentário seja.

Também vi Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, novo longa do Petrus Cariry e que encerra sua "trilogia da morte", da qual gosto muito de O Grão e tenho meus problemas com o Mãe e Filha (mas pode ser porque não embarquei naquele papo de "o Sokurov brasileiro" que alguns tentaram vender). Clarisse... é potente e começa literalmente explosivo. É filme capetoso, como todos da trilogia de alguma forma são. Climão satânico maneiro, evidenciado pela chuva e ventania que encobriu o Cine-Tenda, o vento chegando a balançar a tela. Cariry definitivamente não economizando na tristeza marmorizada no rosto de Sabrina Greve e muito menos no sangues e nos urros de porco. Quero ver de novo.

Depois falo de alguns curtas. E escrevo melhor na ] Janela [.

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